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CAPÍTULO 1 REFLEXÕES TEÓRICAS ACERCA DO ATO TRADUTÓRIO

1.5 Aspectos linguísticos e culturais da tradução teatral

1.5.1 Oralidade fingida

1.5.1.2. Registro de fala

Segundo Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2014, p. 425), na perspectiva sociolinguística, registro de fala diz respeito a “uma variedade isolável de uma língua empregada em situações sociais definidas”. Subentende-se, assim, que só há “variedades” de língua porque há uma norma, da qual se pode variar. Braga (2013, p. 28), sobrea transformação da língua,aponta que

a norma padrão representa uma força social minoritária que exclui as mudanças de uma língua em constante transformação. Por utilizar exemplos descontextualizados em sua descrição, a norma padrão, em geral, se afasta do discurso real do falante de um determinado idioma e serve mais como controle de casta do que como uma descrição científica das normas de uma língua. [grifo da autora]

Dessa forma, a existência da norma revela situações sociais estratificadas numa relação de prestígio-estigma, que tem nos variados registros de fala, a expressão heterogênea das desigualdades econômicas, políticas, culturais, educacionais, dentre outras, num movimento consciente de embate entre ambas. Conforme Aryon Rodrigues (2002, p. 12), dividem-se as variações linguísticas em duas categorias: dialetais (geográficos; sociais ou diastráticos; etários; de sexo e; diacrônicas) e de registro (graus de formalismo; variantes de modalidade ou fala e escrita, e variantes de sintonia ou ajustamento do emissor ao receptor). Rodrigues (2002, p. 12) ainda acrescenta que “tanto as variações de primeira ordem [dialetais] como as da segunda [de registro] se superpõem e se entrecortam de diversas maneiras, do que resulta uma situação extremamente complexa”.

Além disso, as variações linguísticas revelam as relações de poder dentro de uma dada sociedade, sendo que o que é “decisivo nas lutas simbólicas é que mesmo aqueles que detêm uma autoridade considerada legítima jamais conseguem obter um monopólio absoluto”, conforme aponta Marcos Alvarez (2002, p. 213). Dessa forma, quando escritas, a língua padrão (standard) e as variantes materializam suas tensões e as expõem, no nível mais básico e primordial da manutenção da sociedade, que é a linguagem.

Com relação ao registro de fala, é necessário abordar o hibridismo linguístico que ocorreu nos países dominados colonialmente. Assim, há, no mínimo duas línguas envolvidas

no processo de pidginização e crioulização da língua39, além da inerente troca de códigos (code-

switching) que acontece para melhor servir aos diferentes meios sociais em que o locutor se encontra. É importante ressaltar, segundo Canepari (2006, p. 240), que o processo de troca de códigos não deve ser confundido com o de mistura de código, uma vez que esta, mistura de código, está relacionada à inserção de palavras ou expressões de uma língua diferente da utilizada no restante da obra, enquanto que aquela, troca de código, diz respeito a elementos mais complexos com a incorporação de aspectos gramaticais da língua.

John Holm (2004, p. 4) salienta que, por muito tempo, as variações linguísticas ocorridas em países que sofreram (ou ainda sofrem) dominação colonial eram tidas como aberrações, ou versões erradas das línguas dominantes, ao invés de línguas novas, sendo os processos dos quais essas línguas surgiram a pidginização e a crioulização.

Para Holm (2004), o pidgin surge do contato de uma língua de substrato i.e., que apresenta menor influência sobre outra, sendo, normalmente, a língua do povo dominado e com outra língua de superstrato que influencia diretamente aquela, por ser a língua do dominador. O contato interlinguístico se dá por meio de formulações gramaticais básicas, cujo uso e sentido podem ser modificados pela língua de substrato. Os falantes do superstrato aceitam tais mudanças linguísticas e começam a usar essa variedade tanto fora de seu próprio grupo quanto dentro, o que gera algum nível de internalização dessas novas regras. Holm (2004, p. 5) destaca, ainda, que esses grupos de superstrato

cooperam com os outros grupos para criar uma língua improvisada para servir às suas necessidades, simplificando ao retirar complicações desnecessárias [...] e reduzir o número de palavras diferentes que utilizam, mas compensando ao estender seus significados ou circunlóquios de uso. Por definição, o pidgin resultante é restrito a um domínio muito limitado, como comércio e não é a língua nativa de ninguém40.

Assim, quando essa variedade é utilizada entre os grupos de substrato, não sendo mais o de superstrato o mais relevante na transferência de características linguísticas, por um período

39 Pidginização e crioulização da língua são processos que acontecem quando há a imposição de uma língua sobre outra, num processo de hibridização cultural. O pidgin, segundo Houaiss (2009), “língua compósita, nascida do contato entre falantes de inglês, francês, espanhol, português etc. com falantes dos idiomas da Índia, da África e das Américas, servindo apenas como segunda língua para fins limitados, esp. comerciais”. Crioulo “diz-se de ou cada uma das línguas mistas nascidas do contato de um idioma europeu com línguas nativas, ou importadas, e que se tornaram línguas maternas de certas comunidades socioculturais”.

40 Em inglês: [They] cooperate with the other groups to create a make-shift language to serve their needs, simplifying by dropping unnecessary complications […] and reducing the number of different words they use, but compensating by extending their meanings or using circumlocutions. By definition, the resulting pidgin is restricted to a very limited domain such as trade, and it is no one’s native language.

muito longo, as necessidades comunicativas se ampliam, o que gera formas mais elaboradas dentre as variações faladas, o que Holm (2004, p. 6) denomina de pidgin expandido. Desse processo, Holm (2004, p. 9) conclui que: a) não pode haver um contato muito próximo entre os grupos de super e substrato, caso contrário o último aprenderia a falar a língua do primeiro, sem a necessidade dessa intermediação, e b) o pidgin acontece para que haja uma relação de poder aproximado entre seus falantes, por meio de uma comunicação mínima. Isso, se for deixado de lado a questão da dominação e da imposição do dominador para que essa comunicação exista.

Se o processo de pidginização é a redução gramatical de dois sistemas linguísticos em apenas um, com a função de exercer uma comunicação rápida e eficiente entre os falantes, o processo de crioulização procura ampliar essa nova realidade ao nível de sistema linguístico, novamente. Tal expansão se dá quando o pidgin se torna língua materna e passa a representar, não mais a realidade linguística de seus pais, mas as suas próprias. Holm (2004, p. 12) diz que

os falantes de crioulo precisam que o vocabulário cubra todos os aspectos de suas vidas, não apenas um domínio como o comércio; onde as palavras estão faltando, elas são providenciadas por vários meios, como as combinações inovadoras [...]. Para muitos linguistas, o aspecto mais fascinante dessa expansão e elaboração era a reorganização da gramática, que varia da criação de um sistema verbal coerente até estruturas complexas de nível frasal, como a incorporação41.

Dentre os fenômenos linguísticos que podem ocorrer na formação não só de uma língua, mas também nas suas variedades linguísticas, os mais comuns, segundo Ribeiro (2000) são os metaplasmos (as mudanças fonéticas que ocorrem nas palavras) que acontecem por adição, supressão, transposição ou transformação.

De acordo com o artigo de Ribeiro (2000) publicado online, os metaplasmos por adição são a prótese (acréscimo de fonema no início da palavra), o epêntese (acréscimo de fonema no interior da palavra) e o paragoge (acréscimo de fonema no final da palavra). Os metaplasmos por supressão são a aférese (queda de fonema no início da palavra), síncope (queda de fonema no interior da palavra), apócope (queda de fonema no final da palavra) e crase (fusão de vogais numa só). Os metaplasmos por transposição são a metátese (transposição dentro da mesma sílaba), hipértese (transposição de uma sílaba para outra) e hiperbibasmo (deslocamento do fonema tônico para frente ou para trás, chamados de sístole e diástole, respectivamente). Por

41 Em inglês: creole speakers need a vocabulary to cover all aspects of their life, not just one domain like trade; where words were missing, they were provided by various means, such as innovative combinations […] For many linguists, the most fascinating aspect of this expansion and elaboration was the reorganization of the grammar, ranging from the creation of a coherent verbal system to complex phrase-level structures such as embedding.

último, os metaplasmos por transformação são a vocalização (transformação de consoante em vogal); consonantização (transformação de vogal em consoante); (des)nasalização (passagem de um fonema nasal em vocálico, ou vice e versa); assimilação (transformar um determinado fonema em outro igual ou semelhante); dissimilação (diferenciação entre dois fonemas iguais); sonorização (transformação de uma consoante surda à sua análoga sonora); palatalização (transformação de um ou mais fonemas em palatal); assibilação (transformação de um ou mais fonema em sibilante); ditongação (transformação de um hiato ou vogal em ditongo); monotongação (redução de um ditongo à vogal); apofonia (mudança de timbre por influência de prefixo) e; metafonia (mudança de timbre por influência de outra vogal).

Para Holm (2004, p. 14), o processo de crioulização também é conhecido como

nativização, uma vez que aquele híbrido linguístico se torna a representação fragmentada de uma identidade, que não pode mais ser reconstruída. Tal aprofundamento deixa de ser linguístico e se torna social, essa é a diferença entre o pidgin expandido e a nativização.

Para Porto (2007, p. 2), a capacidade de um falante de mudar de uma língua para outra, dependendo do contexto em que se encontra, denomina-se troca de códigos (code-switching). Assim, por falar mais de um idioma, esse falante está inserido num contexto híbrido, no qual ele tem acesso a dois sistemas ou subsistemas linguísticos e deles se apropria para melhor se comunicar.