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1.2 Interface discursiva da mobilização social:

1.2.3 O Trecheiro: redistribuição centralmente simbólica

Para compreender a gênese de O Trecheiro, é necessário revisitar a história dos movimentos soci- ais que começaram de maneira embrionária na década de 1980, na cidade de São Paulo (ROSA, 2005). Segundo o que me foi relatado pelos/as editores/as do jornal em uma entrevista, a sua história está integrada a movimentos ligados a diferentes instituições, como a Organização de Auxílio Fraterno (OAF), que promovia a distribuição de alimentos, em especial de um ‘sopão’ produzido “por todos e para todos”, conforme Alderon Costa, atual presidente da Rede Rua e Editor Chefe do jornal O Trecheiro, relatou. Ainda segundo ele, durante as ações de assistência, já em meados de 1980, havia o interesse pela formação política do grupo de pessoas assistidas. Ele conta que:

tinha um grande encontro também que era feito também com essa modalidade da so- pa, era feito com, não era feito para, que era “A Missão”. Esse encontro era preparado quatro meses, até seis meses antes, toda preparação desde o tema que era escolhido à comida que ia ser distribuída nos dias, e não se aceitava doação. (…) E a gente prepa- rava este encontro, e esse encontro, depois que terminava este encontro saía um relató- rio desse encontro em forma de notícias, e aí isso foi constante. O Trecheiro acho que ele tem uma origem aí. E a gente estava sempre muito preocupado com esta questão da formação, era um período que a gente achava que tinha que dar consciência para as pessoas, isso era muito forte, a gente tinha que politizar as pessoas, tinha que instru- mentalizá-las, empoderá-las mesmo do conteúdo que nós achávamos que era o me- lhor, isso é um... Hoje a gente olhando eu acho que era um dos equívocos, que não era tão grave, fazia parte daquele contexto, enfim. E aí a gente começou, bom aí fazia es- ses relatórios, e a gente começou também a preocupar em documentar isso em forma mais sistematizada, aí surgiu o primeiro áudio visual produzido na rua, que foi o do Tatão, chama “O Minhocão”

Assim, um embrião de O Trecheiro era produzido nesses grandes encontros que reuniam a comunidade articulada na assistência a pessoas em situações de vulnerabilidade, sendo ao mes- mo tempo resultado dessa congregação e registro desses eventos. Sobre como eram conduzidos esses eventos, com o distanciamento do tempo, Costa observa como a imposição de determina- dos conceitos não era a ação mais acertada, mas isso revela o caráter político e redistributivo em termos de bens simbólicos originador do que viria a ser o jornal O Trecheiro. A essa articulação entre diferentes grupos e movimentos soma-se:

um ator bem interessante e importante na história do O Trecheiro, que é o Arlindo Pe- reira Dias. O Arlindo ele acaba de ser ordenado padre em 88, tem exatamente 25 anos agora, ele na verdade é o fundador do jornal, a pessoa que acreditou que era possível fazer um jornal e bancou isso, né? (COSTA, em entrevista)

É, então, que um segundo embrião do que seria O Trecheiro começa a ser produzido com o nome de “Jornal da Rua”, como resultado da missão empreendida pelo Pe. Arlindo Dias, a partir de 1987, junto à comunidade de pessoas em situações de rua da região do Parque Dom Pe- dro, em São Paulo. A esse respeito, Alderón Costa relata:

Convergência estrutural: limites e possibilidades

Bom, o Arlindo começa a fazer a documentação dessa missão de uma forma já dife- rente, já faz uma sulfite mais popular com uma linguagem mais... que as pessoas reco- nhecem mais, daí ele surge com o Jornal da Rua, depois passa a missão, ele começa a fazer pequenas notícias, e faz uma folha sulfite e chama Jornal da Rua. Esse Jornal da

Rua ele chega... ele vai chegar em 91, né? 91 ainda é o Jornal da Rua ainda, acho. Bom,

no final de 90 ainda está usando esse jornal, ele não tem uma sistematização, assim uma periodicidade, vai soltando conforme vai conseguindo fazer.

A perspectiva politizada anterior é então moldada para que todos/as pudessem ler e compreender os conteúdos veiculados pelo folheto, por meio de uma “linguagem mais popular”. Essa iniciativa foi desenvolvida entre meados até o final de 1990, contando com seis edições.7

Em seguida, em meio a um contexto favorável que aliava política e igreja católica, com Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo e Dom Paulo Evaristo Arns como cardeal de São Paulo, o jornal emerge a partir de uma articulação de movimentos sociais com a Secretaria de Bem-Estar Social da Prefeitura, que à época era conduzida por Cleisa Moreno Maffei Rosa. A esse respeito, em texto publicado na edição nº 200, comemorativa de vinte anos do jornal, o Arlindo Dias con- ta que:

A ideia de um jornal de rua, de fato, surgiu alguns anos antes de sua materialização. Era parte mais ampla de um projeto de comunicação com, para e a serviço da popula- ção de rua. (…) De uma parceria entre poder público e ONG ligada à Igreja Católica nascia o Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados (CDCM), pro- jeto de comunicação a serviço da população de rua de São Paulo.

Os primeiros dias de trabalho geraram um pequeno folheto batizado com o nome de O Trecheiro. Hoje, mais maduro e com uma fisionomia diferenciada ele entra em sua fa- se adulta. É apenas o começo de uma história a ser contada. Parabéns ao O Trecheiro! Há, ainda, muito trecho a percorrer!

Assim, o jornal passa a ser produzido no âmbito da ação do CDCM. Esse centro foi a al- ternativa encontrada para poder financiar a produção do jornal, que era o foco do movimento encabeçado por Dias. E foi esse recurso que permitiu mobilizar diferentes atores nos momentos inaugurais do jornal.

Em outro texto de Dias, publicado na edição seguinte de O Trecheiro, nº 201, lemos sobre como o jornal foi nomeado:

Após várias discussões sobre que nome dar ao jornal optou-se pelo modo com que as pessoas de rua denominavam a si mesmas: “sou do Trecho, sou Trecheiro!”

Sem grandes pretensões saia o nº 1, em papel sulfite com a manchete “Fala Povo da Rua!” O Formato permaneceria até o nº 14 – setembro de 1994.

O Trecheiro, atualmente, é um jornal mensal/bimestral editado, publicado e distribuído na cidade de São Paulo. Vale dizer também que foi o CDCM que deu lugar à formação da Rede Rua de Comunicação, que hoje conduz diferentes ações no campo simbólico, dentre elas a pro-

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Essas edições, assim como todo praticamente material produzido pelo CDCM e pela Rede Rua, foram cuidadosa- mente catalogadas e estão disponíveis para pesquisa na sede da Rede Rua, no Brás, em São Paulo.

Interface discursiva da mobilização social :os casos ocas” e o trecheiro

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dução de O Trecheiro, como constava na versão do site da ONG que esteve no ar até meados de 2012:

Desde os anos de 1980, a Rede Rua promove comunicação a partir dos excluídos. Do- cumenta e assessora a comunicação de movimentos, entidades e grupos sociais e popu- lares.

Jornal "O Trecheiro": Há 15 anos publica a realidade do povo de rua e registra a histó- ria de luta e de esperança do povo excluído.

Produção de Vídeos: Produz vídeos socioeducativos e documentários, acompanhando a organização dos grupos populares.

Fotografia: Registra fatos e manifestações de interesse social, principalmente, da popu- lação em situação de rua.

Videoteca: Dispõe de 900 títulos que retratam experiências de inclusão social: organi- zação, formação política, humana e religiosa.

Hoje, figuram também como ações da Rede Rua, catalogadas no site atualizado:

Atualmente a Associação Rede Rua desenvolve os seguintes projetos:

- Rede Rua de Comunicação: produção do Jornal “O Trecheiro”, de vídeos educati- vos, a montagem de um acervo fotográfico e articulação com outras organizações e movimentos sociais.

- Refeitório Comunitário Penaforte Mendes: oferece cerca de 500 refeições (café da manhã, almoço e jantar) para pessoas em situação de rua em parceria com a Prefeitu- ra Municipal de São Paulo e outras entidades que colaboram com o fornecimento de alimentação.

- Centro de Acolhida para Adultos por 16 horas – Pousada da Esperança: Em parceria com a Prefeitura de São Paulo, oferece acolhida para 120 pessoas, acompanhamento social que visa à regularização de documentação, elaboração de projeto de vida e en- caminhamentos para a rede socioassistencial.

- Núcleo Santo Dias da Silva: São 80 vagas para a rede de assistência social com o ob- jetivo de dar continuidade ao processo de acolhida e preparar e apoiar os conviventes num processo de empoderamento e de autonomia na busca de saída da rua.

Assim, evidencia-se uma complementariedade entre as ações assistenciais, que visam a redistribuição de recursos materiais e, principalmente, o atendimento a necessidades fundamen- tais de alimentação e abrigo para pessoas em situações de rua, e as ações simbólicas, realizadas na produção de conteúdos textuais e audiovisuais. É necessário observar que, lamentavelmente, dessas ações, a Rede Rua se retirou do Núcleo Santo Dias da Silva, em função de uma divergên- cia com a prefeitura que subsidiava o albergue.

Sobre as pessoas que atuam em O Trecheiro, assim como em Ocas”, praticamente todas as pessoas que trabalham para a produção do jornal prestam serviços voluntariamente, à exceção do serviço de revisão das edições do jornal, que é remunerado. Esse serviço, como será debatido em 4.2, representa o maior grau de tecnologização textual dos procedimentos implicados na pro- dução do jornal, e o fato de a única profissional remunerada do quadro ser a revisora de textos é significativo da relevância que as tecnologias do discurso assumem nessa prática particular.

Quanto à estrutura física, podemos dizer que o jornal, composto por quatro páginas em formato standart, apresenta semelhanças com os jornais de grande circulação, no que tange a sua

Convergência estrutural: limites e possibilidades

organização, sendo um suporte impresso no qual é possível ler textos que materializam gêneros tradicionais do jornalismo – editorial, colunas, reportagens, entrevistas, entre outros. Esses textos são densamente ilustradas com imagens, na grande maioria das vezes fotografias, feitas por Alde- ron Costa, de pessoas em situações de rua e de atos das mobilizações que figuram como notícia. Algumas dessas fotos foram laureadas com prêmios, inclusive da INSP.

Em razão de ser um jornal diminuto, de distribuição gratuita, O Trecheiro focaliza objeti- vamente questões relativas à situação de rua que são sua premissa básica, desde os embriões até a sua gênese propriamente dita. Todas as informações e notícias, por ele veiculadas, orbitam ao redor dessa temática. É possível encontrar no jornal, por exemplo, estudos sobre o trabalho das pessoas em situações de rua, reproduções editadas de cartilhas contra a tuberculose, reflexões so- bre a política nacional, entre outros textos abordando os mais diversos assuntos, mas sempre com o foco na rua. Isso faz d’O Trecheiro um instrumento de resistência social ainda mais forte, na luta pela valorização das pessoas que se encontram em precariedade social, pela forma como é feito e distribuído.

À diferença dos demais periódicos destinados para a população em situação de rua, O Trecheiro não tem como objetivo ser uma ferramenta econômica, tendo em vista que sua distri- buição é gratuita. Conforme observa Alderon Costa, o jornal, mesmo estando catalogado no site da INSP, não faz parte da rede. Em entrevista cedida para esta pesquisa, ele informa:

Nós não pertencemos ao INSP, né? É… primeiro porque ele não tá dentro dos crité- rios… Ah, tem uma discussão, nossos representantes da Ocas" quando vão, a gente sempre demanda essa discussão lá. Porque um dos critérios do INSP é que seja um produto de venda e que seja uma geração de renda. E o jornal não é. Então, ele não entra nessa categoria de Street Paper, né? Que o INSP tem. Agora, é… É uma referên- cia do INSP, o jornal sempre foi, porque… Na verdade, nós nunca nos preocupamos em participar de concurso, de alguma coisa assim, mas o pessoal da Ocas", eles são fan- tásticos nisso, né, a turma da editoria da Ocas", né? Principalmente o Márcio, né? E aí, o pessoal começou: “Ah, Alderon, vamos botar tal matéria? Vamos fazer isso.” E eles mesmos preparam tudo e mandam, né? Por isso nós tivemos dois prêmios, né, lá no INSP.

Essa fala do editor chefe do jornal demonstra articulação em rede, que coaduna com o que foi observado a partir das reflexões de Sousa Santos (2005). Igualmente, há uma intensa liga- ção entre o jornal e a revista, objetos desta investigação, o que, de certo modo, justifica a perti- nência de se associar análises de textos dos dois periódicos para a compreensão das práticas de mobilização social e em especial as ações discursivas desses movimentos. Vale frisar que a ideia de O Trecheiro, em seu embrião Jornal da Rua, é pioneira, não só no Brasil, mas no mundo todo. Porque o The Big Issue, que é tido como o primeiro street paper, lhe é posterior em quase dois anos.

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ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

E O ESFORÇO TRANSDISCIPLINAR

É no contexto dessa discussão que a análise do discurso tem uma grande contribuição a oferecer. Com origem na Linguística, e não por coincidên- cia na década de 1970, que é apontada por D. Harvey (trad. 2000) como o período de início do pós-modernismo, a análise do discurso está voltada para a crítica social. Nessa condição, (...) a análise do discurso pode ser caracterizada como uma contribuição de linguistas e estudiosos de outras disciplinas que adotam essa perspectiva, para o debate de questões ligadas ao racismo, à discriminação de gênero social, ao controle e à manipula- ção institucional, à violência, às identidades, à exclusão social (Maga- lhães, 2005a: 3). Certamente, os desafios são enormes, mas a análise do discurso já estabeleceu um campo de pesquisa e debate internacional.

(MAGALHÃES, 2005, pp. 232-233)

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segundo capítulo desta dissertação é consagrado à retomada da reflexão sobre o funci- onamento social da linguagem proposta pela Análise de Discurso Crítica (ADC), abordando a articulação entre a análise discursiva textualmente orientada e as ciências sociais. Nele, advogo pelo rigor conceitual como forma de assegurar a cientificidade da área e explicito os parâmetros epistemológicos híbridos sobre que erigi a investigação discursiva ora apresentada. Discuto, também, a viabilidade de uma investigação filiada à ADC que focaliza práticas discursi- vas contra-ideológicas. Por fim, traço uma primeira aproximação com o método, sobre como, a partir do arcabouço teórico-metodológico da ADC, a investigação de práticas sociais é viável pe- lo estudo sistemático de textos nelas produzidos. Este capítulo divide-se, pois, em três partes: em 2.1, faço uma primeira aproximação com os conceitos basilares da ADC e evidencio o caráter específico desta dissertação; em 2.2, abordo a opção ontológica adotada e traço uma aproxima- ção com a construção discursiva da inevitabilidade (BOURDIEU, 1999); e, em 2.3, descrevo as ferramentas metodológicas para a realização de análises discursivas críticas, propondo a compre- ensão das categorias analíticas como ferramentas que possibilitam o mapeamento de significados discursivos que são prototipicamente materializados por meio das estruturas semióticas a que essas categorias se associam.

Análise de discurso crítica