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2.1 Análise de discurso crítica

2.2.1 Operacionalização do modelo ‘transformacional

para o estudo discursivo

Para o RC, a estrutura social fornece recursos para ação, ao mesmo tempo em que a constrange, e o potencial que oferece é aberto às imprevisíveis instanciações que se realizam em eventos con- cretos. A realização desse potencial em eventos, entretanto, é mediada por entidades organizaci- onais intermediárias que, como o nome indica, organizam o potencial estruturante e viabilizam sua realização nos diversos campos da atividade humana. A materialização do potencial constitui os eventos sociais realizados, que deixam traços empiricamente observáveis, entre os quais estão os traços discursivos instanciados em eventos: os textos que nos servem de objetos.

Por meio da análise de amostras discursivas historicamente situadas, pode-se perceber a internalização dos componentes das práticas sociais no discurso. As práticas sociais dependem (também) do discurso para serem materializadas em eventos sociais, isto é, para serem concreti- zadas. Assim, é possível associar o mapeamento ontológico de Bhaskar (1989) ao funcionamento do discurso nas práticas sociais. Nessa perspectiva, o potencial da linguagem é também uma es- trutura que oferece recursos e impõe constrangimentos para a ação discursiva. Assim como o po- tencial social estruturante é mediado por práticas sociais para sua realização em eventos, também o potencial semiótico da linguagem é mediado por entidade organizacional intermediária: as or- dens de discurso. As ordens de discurso são, nessa relação, equivalentes às práticas sociais, orga- nizando o vasto potencial semiótico para que este seja realizado por atores sociais, sob a forma de eventos discursivos, nos diversos campos da atividade humana.

Vejamos o quadro 2, que sintetiza essa associação dos níveis de abstração da vida social com os níveis correspondentes na linguagem:

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Quadro 2- Níveis ontológicos da vida social e a relação possível para a

compreensão do funcionamento social da linguagem

Elementos

Ontológicos Sociais Discursivos

Potencial Estruturas

sociais Sistema semiótico Entidades

organizacionais intermediárias

Práticas sociais Ordens de Discurso

Realizado Eventos sociais Eventos discursivos

(Fonte: FAIRCLOUGH, 2003, p. 220, com adaptações)

Como discutimos na Seção 2.1.1, as ordens de discurso são “as combinações particulares de gêneros, discursos e estilos, que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas sociais, a faceta socialmente estruturada da linguagem” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 220). Assim, as ordens de discurso são, igualmente às práticas no que se refere à relação entre estruturas sociais e a agência humana, o ponto de conexão entre o sistema semiótico abstrato (mecanismos e estrutu- ras discursivas) e sua realização concreta (textos). Ordens de discurso específicas participam na composição das práticas sociais e, nessa perspectiva, diferentes discursos, sendo diferentes formas de representar o mundo, estão atrelados a práticas sociais particulares – o mesmo se aplica a gê- neros e estilos particulares. Essas práticas devem ser analisadas segundo a percepção de que são frutos de processos sociais e que na mesma medida os produzem.

Em razão da centralidade das ordens de discurso como entidades organizacionais inter- mediárias, e por seus elementos não serem linguísticos, mas sócio-semióticos, constituem o foco de investigações discursivas crítica, tendo em vista “a natureza constitutiva do discurso”, que “constitui o social, como também os objetos e os sujeitos sociais” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 81). Essa concepção é complementada pelo entendimento de que os discursos são construídos no es- paço da interdiscursividade. Ramalho e Resende (2011) observam, sobre a configuração de redes de ordens de discurso, que estas configuram um sistema social, no sentido de que constituem “um potencial semiótico estruturado que possibilita e regula nossas ações discursivas”. Assim, é necessário compreender como as ordens discursivas, entendidas como “combinações particulares de gêneros, discursos e estilos” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 220), relacionam-se entre si.

É possível associar essa percepção do discurso elencada dos trabalhos de Foucault ao mapeamento ontológico exposto na Seção 2.1.1, e observar que a produção de eventos discursi- vos só é viável pela existência do nível de organização ocupado pelas ordens de discurso, que in- formam a ação discursiva com regras que, ao mesmo tempo em que oferecem recursos para a ação, limitam essa ação. A esse respeito, Fairclough (2001, p.65) observa que:

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Uma formação discursiva consiste de regras de formação para o conjunto particular de enunciados que pertencem a ela e, mais especificamente, de regras para a formação de objetos, de regras para a formação de modalidades enunciativas e posições de sujeito, de regras para a formação de conceitos e de regras para a formação de estratégias. Es- sas regras são constituídas por combinações de elementos discursivos e não-discursivos anteriores, e o processo de articulação desses elementos faz do discurso uma prática social, chamada por Foucault de ‘prática discursiva’. (…) os objetos do discurso são constituídos e transformados em discurso de acordo com as regras de uma formação discursiva específica, ao contrário de existirem independentemente e simplesmente se- rem referidos ou discutidos dentro de um discurso particular.

Assim, há contingências sociais engendradas no discurso e pelo discurso, e são esses re- cursos-constrangimentos, organizados em relação a práticas sociais específicas, que constituem a essência das ordens de discurso. Nessa perspectiva, toda prática social articula ordenações discur- sivas particulares, que viabilizam a atividade discursiva, um de seus momentos. As práticas soci- ais são dinâmicas, sendo cada vez mais evidente, nas práticas contemporâneas, a aproximação de espaços sociais e a hibridação de práticas. Tendo em vista que há sempre ordens de discurso constitutivas e constituídas dessas/nessas práticas, estas também sofrem modificações por meio de trocas promovidas por imbricamento entre as ordens.

A dinâmica das ordens de discurso pode, então, ser compreendida quando uma determi- nada prática social se associa a outras, sendo possível o hibridismo nessas práticas. A maneira como ordens de discurso se relacionam entre si é, igualmente, um desdobramento da percepção discursiva de Foucault (2012 [1972]). Uma vez que as práticas sociais são multifacetadas, uma alteração em qualquer dos momentos da prática espraia-se para os demais, afetando-os em maior ou menor medida. Nesse sentido, podemos estabelecer a mesma relação da adaptação dos níveis de abstração da realidade social para compreender como se produz a atividade discursiva. As or- dens de discurso na contemporaneidade são cada vez mais híbridas, e esses hibridismos se es- praiam para todos os elementos das ordens de discurso postas em contato. Nesse sentido, quando práticas sociais particulares, com suas ordens de discurso também específicas, são postas em hi- bridação, discursos particulares são modificados pelo contato com outros discursos (na interdis- cursividade), gêneros particulares são modificados pelo contato com outros gêneros (na interge- nericidade) e estilos particulares são afetados pelo contato com outros estilos, gerando formas alternativas de identificação discursiva.

Diferentes ordens de discurso podem ser aproximadas para a produção de novas formas de representar – interdiscursividade –, identificar – adoção de estilos – e de agir – intergenericida- de (MEURER, 2001). Há que se compreender que as diferentes práticas sociais compartilham o mesmo estrato e assim informam umas às outras, pela aproximação ou afastamento, em redes que as conectam. A esse respeito, Resende e Ramalho (2006, p. 43) observam que:

A abordagem de redes é importante em ADC por dois motivos: as práticas assim com- preendidas são determinadas umas pelas outras e cada uma pode articular outras ge- rando diversos efeitos sociais. As redes são sustentadas por relações sociais de poder,

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estando as articulações entre práticas ligadas a lutas hegemônicas. Desse modo, per- manências de articulações são compreendidas como efeito de poder sobre redes de prá- ticas, enquanto tensões pela transformação dessas articulações são vistas como lutas hegemônicas. Dado o caráter inerentemente aberto das práticas sociais, toda hegemo- nia é um equilíbrio instável, e a ADC, no seu papel de teoria crítica, trabalho nas bre- chas ou aberturas existentes em toda relação de dominação.

Desse modo, ao mesmo tempo em que esse potencial organizado pelas práticas constran- gem a ação dos indivíduos, oferece a possibilidade de mudança. Isso corrobora, pois, como a ideia de lutas hegemônicas, tendo em vista, que não faria sentido, mobilizar tantos recursos para manter um status quo se não houvesse a possibilidade de resistência.

Ainda, nesse sentido, é necessário pontuar que Foucault (2011, 2012), de quem se opera- cionaliza o conceito de ordem do discurso em ADC, propõe uma relação de assujeitamento dos seres humanos aos grupos que detêm o poder; nesse sentido, para ele não há meios de superação da dominação, sendo, consequentemente, inevitável submeter-se e internalizar os construtos sim- bólicos formulados pela ideologia. Isso, evidentemente, dissona da perspectiva crítica, adotada pela ADC e pelo RC, para quem há a possibilidade de resistência e mudança, lançando mão do conceito gramisciano de luta hegemônica (ver seção 2.1.1). Compreende-se que o poder não se retroalimenta, e sim se erige com base nos espólios alcançados em batalhas pela hegemonia, é possível entender como se dá o esforço em todas as instâncias da atividade social, inclusive no plano discursivo, para a manutenção do poder. O esforço dos grupos hegemônicos na mobiliza- ção de recursos materiais e simbólicos para subsidiar sua luta só se justifica se entendermos o po- der de resistência que atores sociais – que portanto não são assujeitados – apresentam.

Outro ponto que vale destacar é que, à luz da aproximação da compreensão da dinâmica das ordens do discurso e do conceito de hegemonia operacionalizado a partir de Gramsci (1978, 2000), é possível compreender como “jogos de consenso e dissenso que atravessam e condicio- nam a produção simbólica nos meios de comunicação, interferindo na conformação do imaginá- rio social e nas disputas de sentido e de poder na contemporaneidade”(MORAES, 2010, P. 54). Nesse sentido, é possível situar os produtos da mídia tradicional e da mídia alternativa, conforme essas oposições, e é sobre estes que lançaremos os olhos para investigar as práticas que cercam a realidade de pessoas em situação de rua. No entanto, em razão de focalizar produtos midiáticos circunscritos às ordens de discurso das práticas sociais de mobilização e resistência, há que se definir igualmente o que é a contra-hegemonia. Moraes (2010, 73), observa que:

Gramsci (1999, p. 314-315) situa as ações contra-hegemônicas como “instrumentos pa- ra criar uma nova forma ético-política”, cujo alicerce programático é o de denunciar e tentar reverter as condições de marginalização e exclusão impostas a amplos estratos sociais pelo modo de produção capitalista. A contra-hegemonia institui o contraditório e a tensão no que até então parecia uníssono e estável. Gramsci nos faz ver que a he- gemonia não é uma construção monolítica, e sim o resultado das medições de forças entre blocos de classes em dado contexto histórico. Pode ser reelaborada, revertida e modificada, em um longo processo de lutas, contestações e vitórias cumulativas.

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71 A contra-hegemonia, nesse sentido, necessita da formulação de discursos não- ideológicos. E o caráter desse tipo de formação discursiva resulta ser o interesse central, deste trabalho, em uma tentativa de procurar compreender como as ações discursivas das ONGs Rede Rua e OCAS são formuladas como resposta e como proposta. Algumas pistas, como observei em 2.1, podem ser levantadas a partir do contraste entre os modos de operação ideológicos e as estra- tégias textuais empreendidas por atores sociais ligados às práticas de produção da revista Ocas" e do jornal O Trecheiro, passíveis de acesso por meio dos textos. Outra “pista” para o trabalho analí- tico pode ser, igualmente, recolhida de Chauí (2008 [1980], p. 118) que, ao encerrar sua arqueo- logia sobre a ideologia, indica um caminho para a “crítica da ideologia”:

que consiste em preencher as lacunas e os silêncios do pensamento e discurso ideoló- gicos, obrigando-os a dizer tudo que não está dito, pois dessa maneira a lógica da ideologia se desfaz e se desmancha, deixando ver o que estava escondido e assegura- va a exploração econômica, a desigualdade social, a dominação política e a exclusão cultural.

Por esse prisma, é possível chegar a um ponto de equilíbrio entre o lavor científico e o es- forço de resistência originado fora dos muros acadêmicos, havendo uma coerência entre o que fazemos (ou procuramos fazer) e o que grupos de pessoas mobilizados em prol de uma causa so- cial fazem. É dizer. anto na perspectiva do que procuramos fazer em ADC – no sentido de procu- rarmos desvelar discursos que contribuem para a perpetuação de projetos de dominação e explo- ração – quanto do que pode ser configurado como discurso não-ideológico – aquele que dá a ver/ouvir/saber o que a hegemonia cega/silencia/mitiga. Assim, podemos

É necessário delimitar a nossa possibilidade de agência enquanto membros de espaços restritos, como a academia, sendo, nesse sentido, central o papel da sociedade civil quando se trata da construção de forças de resistência, principalmente, como vimos, por ações sociais con- juntas encerradas no bojo de OSCs ou ONGs. Isso se dá, igualmente por meio do discurso, com foco especial nos espaços midiáticos, tendo em vista o caráter hipersemiotizado discutido no Ca- pítulo 1. Nesse sentido, Moraes (2010, p.75) conclui que é:

fundamental a interferência cada vez maior das forças reivindicantes no interior da so- ciedade civil e junto ao poder público, com dois objetivos: a) discutir e reavaliar a cen- tralidade da comunicação no processo de desenvolvimento sociopolítico e cultural; b) pressionar por medidas efetivas em favor da democratização da informação e da pro- dução cultural. Significa desenvolver batalhas permanentes por uma comunicação plu- ral e não oligopolizada, no quadro geral das lutas por outra hegemonia, fundada na justiça social e na diversidade.

Esse potencial para a pressão e a potencial promoção de mudanças é contemplado pelo modelo transformacional da Atividade Social do Realismo Crítico (BHASKAR, 1989), que será retomado na subseção seguinte, evidencia a existência de brechas sistêmicas para a ação social, mesmo em face de constrangimentos e bloqueios engendrados e perpetrados pelas práticas hege- mônicas.

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