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2.1 Análise de discurso crítica

2.1.1 Por um rigor científico em ADC

Na década de 1970, houve a emergência de trabalhos no campo da ciência linguística, no contex- to europeu, que começavam a assumir um posicionamento crítico, abandonando a neutralidade construída pela tradição acadêmica na área. Essa ruptura ensejou a mudança de paradigmas so- bre o desenvolvimento de pesquisas no campo da linguagem, tendo como foco a relação entre texto, ideologia e poder, e como baliza a necessidade de se investigar criticamente essa relação, para além da mera descrição dos processos linguísticos. A Linguística Crítica (LC), que, então, debutava, constituía um desdobramento da perspectiva funcionalista da Linguística Sistêmico Funcional (LSF) de Halliday (1976), para a qual, a linguagem, por ser parte integrante do proces- so social, desempenha “funções externas ao sistema” que “são responsáveis pela organização in- terna do sistema linguístico” (SCHIFFRIN, 1994; apud. RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 12).

Magalhães (2004, p.118) ao retomar Fowler e Kress (1979, p. 185), aponta para a confi- guração de três pressupostos centrais na LC: (i) “a linguagem tem funções específicas e as formas e os processos linguísticos expressam essas funções”; (ii) as seleções feitas pelos falantes no inven- tário total de formas e processos linguísticos são sistemáticas, seguindo determinados princípios; e (iii) “contrariamente à visão de arbitrariedade na relação entre forma e conteúdo, ‘a forma sig- nifica o conteúdo’”. Esses pressupostos orientaram a configuração de uma nova maneira de se estudar a linguagem em sociedade, desse modo os/as linguistas críticos/as promoveram uma ruptu- ra, sendo que, a partir de seus estudos, diferentes desdobramentos foram possíveis.

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Em 1985, com a publicação do artigo “Critical and descriptive goals in discourse analys- is”, no Journal of Pragmatics, Fairclough enseja o desenvolvimento de debates que aproximaram a perspectiva crítica às teorias marxistas. Posteriormente, com a publicação de Linguistic processes in socialcultural practice (KRESS, 1988) e de Language and power (FAIRCLOUGH, 1989) houve a consolidação das “bases para os estudos críticos da linguagem, apresentando conceitos chaves de discurso, gênero discursivo, texto, ideologia e poder” (MAGALHÃES, 2001) para o que então se constituía como Análise de Discurso Crítica (ADC). Muitos dos quais foram operacionalizados a partir da aproximação com outras searas do conhecimento, em especial com os trabalhos de Foucault (1969, 1971, 1982), Gramsci (1971).

Este último trabalho de Fairclough tem um caráter mais teórico, lançando as bases do que, depois, seria consolidado em Discourse and social change (1992) como um arcabouço teórico- metodológico para investigações discursivas. Essa obra apresenta a primeira versão do enquadre metodológico da Teoria Social do Discurso (TSD) – o modelo tridimensional. Neste texto, Fair- clough evidencia a aproximação principalmente com duas teorias: com a perspectiva da LSF (HALLIDAY, 2004) e com a Ciência Social Crítica (BHASKAR, 1989).

Esse enquadre, como o próprio nome já diz, previa três dimensões passíveis de serem analisadas (Fairclough, 2001 [1992]): a prática social – “dimensão relacionada aos conceitos de ideologia e de poder” (MAGALHÃES, 2001, p. 17) –, a prática discursiva – “que focaliza os pro- cessos sociocognitivos de produção, distribuição e consumo do texto” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 28) –, e o texto – como “elementos dos eventos sociais que se relacionam dialeticamente com elementos não-discursivos”(MAGALHÃES, 2004, p. 115). Essa divisão em diferentes dimensões foi elaborada, essencialmente, para fins de análise, não sendo estanques os limites entre estas. Nesse modelo, o foco central era o discurso. Vejamos a figura 3, que sintetiza esse primeiro enquadre teórico-metodológico:

Figura 3 – Enquadre tridimensional do discurso (FAIRCLOUGH, 2001 [1992]) e categorias analíticas propostas para cada nível

Prática Social

Ideologia – sentidos, pressuposições, metáforas –, e Hegemonia – orientações econômicas, políticas, culturais, ideológicas.

Prática Discursiva (produção, distribuição, consumo,

contexto, força, coerência, intertextualidade)

Texto

(vocabulário, gramática, coesão, estrutura textual)

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Posteriormente, em colaboração de Lilie Chouliaraki, Fairclough propõe um refinamen- to, tanto teórico quanto metodológico, a esse “Modelo tridimensional”, no livro Discourse in late modernity - Rethinking Critical Discourse Analysis (1999). Na obra, a autora e o autor mantém as di- mensões anteriores, mas de forma pulverizada, no novo enquadre que formulam, transferindo a centralidade da análise para as práticas sociais, e, assim, aproximando ainda mais na perspectiva do Realismo Crítico de Bhaskar (1989). Segundo observam Resende e Ramalho (2006, p. 30) esse “movimento descentralizador nas análises empíricas são importantes, especialmente no que con- cerne ao foco na dialética e ao caráter emancipatório da prática teórica em ADC”. Com essa no- va configuração teórico-metodológica, Chouliaraki e Fairclough (1999) propõem uma localiza- ção precisa para o discurso no mapeamento ontológico, como sendo um dos momentos das prá- ticas sociais. Em seguida, esse enquadre mais recente será debatido em profundidade.

É necessário, ainda, observar que, segundo Magalhães (2004), a ADC não se constitui como uma continuação da LC, mas como um desdobramento posterior, sendo que seu principal aporte foi a ampliação do escopo inicial delineado pela LC, constituindo “uma contribuição sig- nificativa da linguística para debater questões da vida social contemporânea, como o racismo, o sexismo (a diferença baseada no sexo), o controle e a manipulação institucional, a violência, as transformações identitárias, a exclusão social” (MAGALHÃES, p. 120). De maneira mais am- pla, Fairclough contribuiu, igualmente, para:

‘a criação de um método para o estudo do discurso e seu esforço extraordinário para explicar por que cientistas sociais e estudiosos da mídia precisam dos(as) linguistas’ (Magalhães, 2005, p. 3). Podemos acrescentar a essa lista a relevância que o trabalho de Fairclough assumiu na consolidação do papel do(a) linguista crítico(a) na crítica so- cial contemporânea. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 21)

Ainda assim, é possível afirmar que a LC delineia-se como um dos momentos que fomen- taram a configuração da Análise de Discurso Crítica, juntamente com a Linguística Sistêmico Funcional e a Ciência Social Crítica. Ao mesmo tempo, é impossível falar de uma só ADC, pois sob esse rótulo diferentes perspectivas teóricas para o estudo discursivo são articuladas, havendo, no entanto, elementos de coerência entre essas diferentes abordagens: (i) todas as abordagens de ADC em função de compreender que a linguagem funciona na sociedade, lançam mão da apro- ximação de diferentes campos teóricos a interdisciplinaridade; (ii) todos/as os/as investigado- res/as da área conduzem estudos socialmente posicionados; e (iii) há a prevalência da empiria sobre a teoria que não se impõe sobre o trabalho investigativo, mas que é alimentada por esse trabalho (RESENDE, 2008, p. 39). Nessa perspectiva, a pluralidade de abordagens constitutivas do que se entende como ADC não impede que haja, efetivamente, um construto teórico metodo- lógico coeso, organizado ao redor do binômio discurso e sociedade. Essa multiplicidade se deve centralmente à complexidade dos processos sociais que são o foco dos estudos em ADC, sendo

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possível aos/às investigadores/as discursivos/as acessar diferentes componentes ontológicos em função de seus objetos de estudo, e desse modo definir uma ou outra abordagem.

A ADC constitui-se, desse modo, como uma matriz epistemológica europeia, que reite- ramos e legitimamos, pelo estudos discursivos, no contexto latino-americano. A partir dessa ma- triz, há, de maneira cada vez mais intensa, o desenvolvimento de epistemologias que compreen- dem nossas especificidades culturais, conjunturais, históricas, para o duplo objetivo de contribuir com a superação de assimetrias sociais e com o avanço da ciência linguística. São exemplos os trabalhos de Maria Izabel Magalhães (2000), que é pioneira na área, atuando desde 1986 no Bra- sil; José Meurer (2004); Laura Pardo (2008); Neyla Graciela Pardo Abril (2008); Denize Elena Garcia da Silva (2009); Viviane de Melo Resende (2009); Viviane Sebba Vieira Ramalho (2010); Maria Carmen Aires Gomes (2007), Guilherme Veiga Rios (2012).

Por compreender que o discurso é parte irredutível da vida social, a ADC requer que se utilizem epistemologias de diferentes áreas – tais como ciências sociais críticas e ciências da co- municação, entre outras –, que permitam estudar o sistema semiótico – objeto de estudo da lin- guística –, ativado nas práticas sociais. A seara da ADC constitui, desse modo, um arcabouço teórico-metodológico consolidado interdisciplinarmente. Nesse sentido, os estudos discursivos operacionalizam conceitos de outras áreas, criando interconexões entre diferentes epistemologi- as, geradas em diferentes campos. Esse caráter interdisciplinar vem sendo incrementado por dife- rentes investigações, que buscam aproximar ainda mais o campo da linguística discursiva a ou- tras áreas do conhecimento e que, assim, procuram efetivamente romper as barreiras positivistas que isolam as epistemologias em limites rígidos. O avanço dessas aproximações de mais a mais está fazendo da ADC uma transdisciplina, é dizer, um campo de epistemologias híbridas, gera- das no contato de saberes de diferentes áreas que não são apenas justapostos, mas operacionali- zados.

A investigação sobre a os processos sociais implicados na produção de ações discursivas, tais como a revista Ocas" e o jornal O Trecheiro, exige uma abertura sobre diferentes áreas de co- nhecimento, para que seja efetivamente possível de mapear a conexão entre os aspectos discursi- vos e os não-discursivos de práticas sociais. A compreensão de que a linguagem funciona na so- ciedade orienta o caráter crítico da área, que procura contribuir para a superação de arranjos as- simétricos de poder na sociedade. Por isso, a investigação discursiva só se justifica se estiver ali- nhada a causas sociais, sendo a responsabilidade social uma baliza essencial para o trabalho cien- tífico.

Em razão dessas especificidades da área, faz-se necessário observar que o rigor conceitual é fundamental, tanto para garantir a cientificidade da ADC quanto para fazer dos estudos filiados a essa seara mais que trabalhos científicos, trabalhos sociais, na acepção mais abrangente do ter- mo, legitimados pela sua contribuição ética para o social. O caráter transdisciplinar supracitado tem encontrado grande ressonância na construção de ‘epistemologias do sul’ (SOUSA SANTOS,

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2005) orientadas a partir das especificidades da ADC na América Latina e principalmente no Brasil. Esse desenvolvimento se deve, principalmente à necessidade de ter métodos e teorias ade- quados à(s) realidade(s) do contexto social específico, o que reitera o objetivo de devolver infor- mações para a teoria a partir da empiria, o que caracteriza a ADC desde sua gênese, tendo em vista que esta ciência foi pensada para a abertura. Isso resulta ser um dos grande trunfos da área, segundo Ramalho e Resende (2011, p. 19):

Essa heterogeneidade de abordagens – essa abertura para a diferença, é o que impulsi- ona a ADC para um aperfeiçoamento constante, uma vez que as diferentes abordagens não estão fechadas para o diálogo, e que em pesquisas situadas é possível lançar mão de conceitos e categorias oriundos de diversas perspectivas, a possibilidade de criativi- dade nos desenhos de pesquisa é grande.

Essa abertura não significa falta de rigor científico, na realidade, ela promove a necessi- dade de se pensarem os conceitos abordados de maneira coerente e aprofundada. Nesse sentido, cada uma das investigações tem de contemplar a reflexão teórica em seu ponto de partida, obser- vando as linhas condutoras das epistemologias disponíveis, que são, evidentemente, as ferramen- tas intelectuais que viabilizam o primeiro contato científico com o objeto focalizado. Essa refle- xão tem de ser retomada ao cabo do trabalho investigativo, em seu ponto de chegada, dobrando os resultados obtidos sobre a teoria e, assim, procurando devolver à matriz híbrida de que se par- tiu informações sobre o funcionamento social da linguagem. Nessa perspectiva, os estudos em ADC têm como premissa sempre poder contribuir para ampliar o arcabouço teórico- metodológico, por meio de novos caminhos epistemológicos que possibilitem uma melhor com- preensão dos processos sociais discursivos.

Há, no entanto, que se frisar que não se aceita a possibilidade de nossas epistemologias conseguirem, mesmo em um futuro, mapear integralmente o funcionamento da linguagem na sociedade, e que os objetivos da ADC não se limitam apenas a contribuições para a teoria, há o objetivo de se “investigar criticamente como a desigualdade social é expressa, sinalizada, consti- tuída, legitimada pelo uso do discurso” (WODAK, 2004, p. 225), e com isso devolver para o campo social informações, saberes e epistemologias que possam contribuir com a superação de assimetrias sociais.

Esse retorno à teoria no final da construção da pesquisa é uma etapa fundamental para que efetivamente haja uma contribuição do estudo para a teoria e para o método, do contrário, não há processo dialógico entre as epistemologias iniciais e aquelas a que podemos che- gar/acessar por meio da empiria. Nesse sentido, este capítulo foi construído essencialmente em dois momentos: antes das análises e depois das análises, sendo a relação entre o trabalho empíri- co e a construção de saberes instâncias inseparáveis. Há, também, sob esse prisma, que se apon- tar que por se tratar de um arcabouço teórico-metodológico, a teoria e o método estão sempre parelhos, não sendo possível descolar uma do outro. Isso também se deve ao caráter pós-

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moderno da área, que procura superar fronteiras positivistas pouco produtivas para o trabalho científico. Nesse sentido, o presente capítulo que focaliza a teoria, também traz reflexões acerca do método, e o capítulo seguinte, que se dedica à metodologia, também olha para o construto teórico.

Retomando a ideia supracitada de necessidade de rigor conceitual, é necessário descrever as epistemologias de que partimos e construir um debate informado pela empiria de maneira me- ticulosa para que a cientificidade de nossos estudos seja garantida. A existência de fragilidades conceituais pode levar a resultados falseados, sendo imperioso construir as bases teóricas. Evi- dentemente, por mais rigor que se tenha, a perfeição é intangível, e, por isso, em outros momen- tos, outros/as pesquisadores/as, com o distanciamento e com base em epistemologias mais de- senvolvidas, podem constatar falhas conceituais e propor avanços; mas, o esforço transdisciplinar de que tratei tem também de ser um esforço disciplinar, que discipline o emprego de ferramentas epistemológicas e de ferramentas metodológicas. Assim, nesta seção, discuto, de maneira sucin- ta, os conceitos basilares para a o desenvolvimento do trabalho ora reportado nesta dissertação.