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2 PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: ENTENDIMENTOS E INSTITUIÇÕES DE

3.1 O valor e a valoração

A questão do valor é analisada e investigada pela Teoria dos Valores, campo teórico também conhecido na Filosofia por Axiologia. Essa corrente de pensamento nasceu entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, dentro de um espaço social baseado nos imperativos do mercado e da lei da oferta e da procura. Porém, teria sido a partir da década de 1970 que a Teoria dos Valores havia começado a deixar de lado a preocupação apenas pelo julgamento, e começado a se concentrar na questão do conhecimento, da compreensão, da decodificação e da interpretação32. De acordo com Lins (2015), na reflexão atual, o valor resulta

de uma relação entre sujeito e objeto, exercendo um papel de comunicador. Dessa forma, o valor é o que comunica as necessidades, as prioridades e os desejos dos sujeitos em relação às coisas.

Esse papel informativo do valor do campo filosófico se repete no campo da Teoria da Conservação, aqui o valor comunica quais bens culturais devem ser reconhecidos como bens patrimoniais, direcionando as medidas de conservação e ações de monitoramento dos bens. Lacerda (2012) afirma que cada vez mais o sentido da palavra valor se insere em diferentes tempos e espaços, variando de indivíduo para indivíduo, de sociedade para sociedade. Dessa forma, a autora ressalta a quantidade de significados que o conceito de valor admite, o que torna a sua “análise cada vez mais complexa e incompleta, exigindo continua reflexão” (LACERDA, 2012, p. 44). Assim, pode-se afirmar que o valor possui um conceito polifórmico, que carrega múltiplos significados.

Compreende-se ainda que os valores não existem de forma autônoma, para que se materializem, eles necessitam da existência de um objeto e de um sujeito que atribua a ele significados. Dessa forma, o valor é um conceito abstrato, que representa uma qualidade do objeto pelo qual ele é expressado e captado por um sujeito33. Com isso, o valor abstrato se torna

perceptível sob a forma de qualidades, características e atributos de algum objeto, que para se materializar necessita da existência de um sujeito inserido em um âmbito de relações sociais, culturais e econômicas.34 Assim, pode-se representar a valoração de um objeto pelo gráfico:

Gráfico 1 - Estrutura de valoração do objeto

Fonte: Elaboração própria, 2018

33 Mason (2012), Lacerda (2012), Zancheti (2014) e Lins (2015). 34 Zancheti, 2014.

Zancheti e Hidaka (2014) compreendem que os valores não podem ser considerados definitivos. Eles afirmam que os valores culturais que ganham importância em uma sociedade são aqueles que “são criados por processos intersubjetivos, realizados em períodos relativamente longos” (ZANCHETI E HIDAKA, 2014, p. 05). Os autores ainda afirmam que as modernas concepções de análise entendem que o processo de valoração se caracteriza como um processo de negociação entre os atores sociais. Assim, a apreensão de um sistema múltiplo de valores atribuídos ao bem corresponde ao processo valoração dos objetos.

Existem duas correntes filosóficas que abordam esse processo, sendo elas: a corrente do Relativismo Axiológico e a do Absolutismo dos Valores. Zancheti (2014) afirma que no Relativismo, o valor é considerado extrínseco ao objeto e depende do sujeito que o percebe; enquanto que o Absolutismo corresponde a uma posição oposta, compreendendo que valor é intrínseco, ou seja, é uma característica própria e exclusiva dos objetos e independe da relação com o sujeito. Zancheti (2014) ainda afirma que as duas visões são baseadas em sólidas posições epistemológicas, porém não deve-se aderir de forma irrestrita a nenhuma delas, pois uma não consegue opor-se a outra. Connor (1994) acrescenta a esse entendimento a necessidade de se pensar essas duas correntes, a do absolutismo e a do relativismo, de forma associada, “sob o argumento de que várias versões da tese absolutista e relativista, ao mesmo tempo em que se contradizem, confirmam e regeneram a outra.” (LINS, 2015, p. 78).

Sabe-se que, ao longo dos anos, a forma como os valores foram sendo atribuídos foi se modificando, bem como as relações sujeito e objeto. Contudo, a compreensão dos valores de um bem sempre se apresentou como sendo o norte a ser seguido nas decisões de restauro e conservação do bem. Trazendo para a atualidade, a Teoria Contemporânea da Restauração de Muñoz Viñas (2003) compreende que diferentes entendimentos a respeito do objeto em questão devem ser levados em consideração. Dessa forma, o autor levanta a questão sobre a inclusão da opinião de não-especialistas na identificação dos valores de um bem. O autor entende que o usuário habitual do bem possui não só o direito, mas também motivos e autoridade para opinar a respeito e que limitar esse entendimento aos argumentos acadêmicos e técnico-científicos resulta em informações elitistas e restritivas:

Os argumentos de tipo acadêmico técnico-científico não devem converte-se em únicos em uma atividade cijo objetivo último é de tipo simbólico ou comunicativa: esta forma de enfocar a questão é elistista e restritiva. (MUÑOZ VIÑAS, 2003, p. 162)35

Assim, na Teoria Contemporânea da Restauração é postulada uma relação entre o que pensam os atores responsáveis pela Restauração36 e o conjunto de pessoas afetado por ela. Diante

disso, o autor entende que uma Restauração se torna mais eficaz quando satisfaz desde quem toma as decisões de projeto até os seus usuários. Assim, para Muños Viñas (2003), o valor é atribuído ao objeto por um sujeito, que identifica nele significados, o autor entende que estes significados podem ser de diferentes naturezas, seja de “intelectualidade” (percepção dos aspectos históricos, artísticos, científicos), seja de “identidade coletiva” (percepção dos elementos que caracterizam a cultura dos povos, raça, modos, costumes, língua), “ideológicos” (percepção dos fatores políticos, morais) ou sentimental, que remetem a memórias e sentimentos.

Dessa forma, depreende-se que um objeto qualquer passa a ser um objeto de conservação37

a partir do momento em que um sujeito reconhece nele os seus significados intelectuais, de identidade, ideológico e/ou sentimentais, e devido a isso, atribuem valores a ele. Como cada sujeito pertence a um contexto diferente, a sua percepção de valor sob o mesmo objeto também será variável. Assim, Muñoz Viñas (2003) entende que a enorme variedade de naturezas dos objetos de conservação faz com que a tradicional visão histórica-artística de reconhecimento deles seja uma visão limitada.38 O autor ainda ressalta que o conceito de patrimônio não depende mais de

valores predeterminados, mas de valores que mudam de caso a caso. Dessa forma, o patrimônio deixa de ser algo inerente a seletos grupos de técnicos e especialistas e passa a ser uma construção intelectual das pessoas. Dessa forma, essa teoria destaca novos valores, como: simbólico, religioso, identitários, econômicos, turísticos, pessoais e sentimentais.39

35 Citação no idioma original: Los argumentos de tipo académico o tecnocientífico no deben convertirse en únicos en

una actividad em la que el objetivo ultimo es de tipo simbólico o comunicativo: esta forma de enfocar la cuestión es elitista y restrictiva. (MUÑOZ VIÑAS, 2003, p. 162)

36 Na teoria Contemporânea da Restauração, a expressão Restauración é entendida no sentido amplo da palavra, ou

seja, como sendo sinônimo de restauração e conservação.

37 Zancheti (2014) entende o objeto de conservação como sendo artefatos materiais que adquirem valores reconhecidos

por uma determinada sociedade e considerados importantes s serem transmitidos para gerações futuras (ZANCHETI, 2014, p. 2)

38 Segundo Muñoz Viñas (2003), desde os teóricos clássicos até a Carta de Atenas (1931) e a Carta de Veneza (1964),

os valores históricos e artísticos eram encarados como sendo valores fundamentais e capazes de revelar a verdade do objeto. Entretanto, para o autor, essa prevalência dos “valores de verdade” está sendo questionada na atualidade.

Dentro desse contexto, a significância cultural aparece como sendo um processo de valoração, tendo essa expressão sido definida pela primeira vez pela Carta de Burra (ICOMOS, 1999). O documento apresenta a significância cultural como sendo algo inerente ou adquirido pelos bens culturais com o tempo e, portanto, pode mudar com a chegada de novas informações e com a mudança de atores sociais envolvidos com o local. Dessa forma, a significância cultural está sujeita a transformações contínuas, além de destacar a relação dos atores envolvidos com o patrimônio no processo de reconhecimento dos valores patrimoniais. A Carta de Burra (ICOMOS, 1999) ainda apresenta a significância cultural como sendo uma etapa primária e fundamental no processo de conservação dos bens patrimoniais, contribuindo na gestão desses bens. Assim, a significância deve servir como informação balizadora das ações de conservação dos bens dotados de valores culturais.

Em conformidade com a Carta de Burra (ICOMOS, 1999), Hidaka (2012) define a significância como sendo “algo que remete às qualidades dos monumentos históricos, inerentes ou adquiridos com o tempo a partir das relações destes objetos com o seu contexto social” (HIDAKA, 2012, p. 120). A autora ressalta que a coexistência de valores faz parte da construção da significância cultural e que essa construção é feita a partir da interação dos significados do presente e do passado. Dessa forma, a significância cultural não se trata de um entendimento fixo, podendo novos valores serem reconhecidos ou retirados de acordo com o contexto.

Dentro desse entendimento, Silva (2012) ressalta que a significância se refere a todos os elementos que contribuem para os significados, não se restringindo aos aspectos materiais do objeto. Assim, alguns elementos aparecem como portadores de significados, como por exemplo: o contexto, a história, o uso e valores sociais e espirituais em que cada objeto está inserido. Quanto ao processo de avaliação dos significados transmitidos, a autora afirma que a avaliação é mais eficaz quando envolve uma gama de pessoas e competências, sendo uma oportunidade para abarcar diferentes grupos de pessoas da discussão sobre a valoração de um bem cultural. Para tanto, faz- se necessário analisar um objeto, compreender a sua história e o seu contexto e identificar o seu valor para as comunidades.

Diante do exposto até aqui, a pesquisa compreende que valorar um objeto corresponde a um processo de apreensão de um sistema múltiplo de valores expressados por ele e captado por um sujeito dentro de um contexto. Dessa forma, a valoração é algo estritamente pessoal, o que resulta em uma grande variedade de valores, que indicam quais bens devem ser preservados.

Portanto, é necessário entender quais são esses valores e quais são os seus significados. Assim, o próximo item irá apresentar as categorizações de tipos dos valores trazidas pelos teóricos da conservação e pelas cartas patrimoniais.