• Nenhum resultado encontrado

O objeto da Linguística textual: o texto

PERCURSO TEÓRICO “A linguística de texto pode ser definida como o estudo das

2.3 O objeto da Linguística textual: o texto

Desde as origens da Linguística textual até os dias de hoje, o texto foi visto de diferentes formas. Em um primeiro momento, foi concebido como: a) unidade linguística (do sistema) superior à frase; b) sucessão ou combinação de frases; c) cadeias de pronominalizações ininterruptas; d) cadeia de isotopias; e) complexo de proposições semânticas (cf. KOCH, 1998). Isso mostra que temos sempre à nossa disposição muitas definições para o objeto da Linguística Textual, podendo optar por aquelas que melhor se ajustem a nossa abordagem e ao enfoque teórico de nossas investigações de pesquisa.

Segundo Koch (1998), dentro das orientações de natureza pragmática, a concepção de texto varia de acordo com a teoria. Assim, nas teorias acionais, o texto passou a ser visto como uma sequência de atos de fala; nas vertentes cognitivistas, como fenômeno primariamente psíquico, resultado de processos mentais; e nas orientações que adotam como pressuposto a teoria da atividade verbal, o texto passou a ser visto como parte de atividades mais globais de comunicação, que vão muito além do texto em si, posto que este é apenas uma fase desse processo global.

Dessa forma, ainda de acordo com Koch, o texto deixa de ser entendido como um produto e passa a ser abordado no seu próprio processo de planejamento, verbalização e construção. Com base nesses pontos de vista, a autora concebe o texto como “[...] resultado parcial de nossa atividade comunicativa, que compreende processos, operações e estratégias que têm lugar na mente humana, e que são postos em ação em situações concretas de interação social.” (1998, p. 22). Em seguida, em harmonia com essa linha de pensamento, a autora apresenta outro conceito de texto:

Poder-se-ia, assim, conceituar o texto como uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecionados e ordenados pelos falantes, durante a atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com práticas socioculturais.

Nessa perspectiva, postula-se que o texto é construído na situação de interação em função da atuação de uma complexa rede de fatores linguísticos, cognitivos, socioculturais e interacionais. Em obra mais recente, Koch (2009) destaca algumas concepções de texto que fundamentaram os estudos em Linguística Textual, ressaltando que essas concepções, em determinados momentos, se imbricam. São elas: 1. Concepção de base gramatical: considera o texto como frase complexa ou signo linguístico mais alto na hierarquia do sistema linguístico; 2. Concepção de base semiótica: vê o texto como signo complexo; 3. Concepção de base semântica: o texto é uma expansão tematicamente centrada de macroestruturas; 4. Concepção de base pragmática: nessa perspectiva, o texto é um ato de fala complexo; 5. concepção de base discursiva: considera o texto como discurso congelado, produto acabado de uma ação discursiva; 6. Concepção de base comunicativa: para essa concepção, o texto é o meio específico de realização da comunicação verbal; 7. Concepção de base cognitivista: vê o texto como processo que mobiliza operações e processos cognitivos; 8. Concepção de base sociocognitivista-interacional: o texto é concebido como lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos.

Segundo Bentes (2008), na fase da análise transfrástica e da elaboração das gramáticas textuais, acreditava-se que as propriedades definidoras de um texto estariam expressas na forma de organização do material linguístico. Dessa forma, entendia-se que existissem textos e não-textos. Nessa primeira fase, os conceitos de texto variaram, passando de “unidade linguística superior à frase” a “complexo de proposições semânticas” (cf. KOCH,1998). Por trás de todas essas definições jazia a concepção de texto como uma estrutura pronta e acabada ou ainda os textos eram considerados como “dados primários da linguística” (cf. FÁVERO; KOCH, 2008, p.

19). A ênfase era dada ao aspecto material e/ou formal do texto, o qual era visto como uma unidade delimitada com início e final determinado.

Em um segundo momento, fase de elaboração de uma teoria do texto, a definição de texto passou a levar em consideração que a produção textual seja uma “atividade verbal”, uma “atividade verbal consciente”, uma “atividade interacional” (cf. BENTES, 2008). Essa postura repousa na ideia de que, ao produzirem um texto, os falantes estão praticando atos de fala, ações intencionais, com propósitos comunicativos expressos por meio da manifestação verbal e com o desenvolvimento de estratégias para alcançar esses propósitos. A partir dessa perspectiva, Koch (1998, p. 22) define os textos como os “[...] resultados da atividade verbal de indivíduos socialmente atuantes, na qual estes coordenam suas ações no intuito de alcançar um fim social, de conformidade com as condições sob as quais a atividade verbal se realiza.”. Nessa concepção, o texto já é considerado no processo da sua constituição e não mais como produto acabado.

Com a virada cognitivista da LT, o texto passou a ser visto como o resultado da ativação de processos mentais, adotando-se a noção de modelos cognitivos herdados da Inteligência Artificial e da Psicologia da Cognição, os quais recebem denominações diversas, como frames, scripts, cenários, esquemas,

modelos mentais, modelos episódicos ou de situação, dentre outros. Esses modelos

constituem conjuntos de conhecimentos socioculturalmente determinados e vivencialmente adquiridos, os quais, inicialmente particulares, vão se tornando generalizados, podendo passar a fazer parte da memória enciclopédica ou semântica de um grupo (Cf. KOCH, 2009). Mais tarde, a LT adota, numa perspectiva bakhtiniana, uma concepção interacional (dialógica) da linguagem – motivada pela investigação da separação entre fenômenos mentais e sociais – o texto passa a ser considerado como o próprio lugar da interação em que os interlocutores se constroem e por ele são construídos. Nessa perspectiva, o texto começou a ser visto como lugar de interação, e tanto aquele que escreve como aquele para quem se escreve são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que nele se constroem e são construídos (cf. KOCH; ELIAS, 2010). Com efeito, a LT hoje não se furta a refletir sobre as noções de leitura e de escrita e seus desdobramentos, que contemplam os conceitos de tipologia e de gêneros textuais. Essa reflexão constitui

Em harmonia com a proposta da LT, Marcuschi (2008, p.71) define o texto como “[...] o resultado de uma ação linguística cujas fronteiras são em geral definidas por seus vínculos com o mundo no qual ele surge e funciona”. Para ele, o texto não é apenas uma extensão da frase, mas uma entidade teoricamente nova que exige explicações que excedem as conhecidas análises do nível morfossintático. Trata-se de uma unidade comunicativa (um evento) e de uma unidade de sentido realizada tanto no nível do uso como no nível do sistema. Focalizando o texto por esse prisma, Koch e Elias (2010, p. 34) consideram-no como “[...] um evento comunicativo para o qual concorrem aspectos linguísticos, cognitivos, sociais e interacionais”. Essa noção advém da concepção de Beaugrande (1997), para quem o texto é concebido como “[...] um evento comunicativo em que convergem ações linguísticas, culturais, sociais, cognitivas” e não como uma sequência de frases isoladas. Esse posicionamento atende bem aos propósitos da Linguística Textual, que trabalha com textos delimitados, cujo início e cujo final são determinados de modo mais ou menos explícito (cf. FÁVERO; KOCH, 2008).

O texto também não deve ser considerado como uma grande frase ou uma simples sucessão de frases. Não se trata, pois, de uma grande unidade gramatical, trata-se de um fenômeno que deve ser visto como uma unidade semântica, uma unidade de sentido (cf. ADAM, 2008a [2011a]). Adam critica a concepção de texto como uma sequência de frases ligadas e rejeita a frase como unidade textual, sendo esta uma característica que ele atribui ao período e não à frase. Para ele, a frase é uma “[...] unidade gráfica cujos limites são assinalados por uma maiúscula e um ponto [...]” (2008 [2011a], p. 107). O autor concebe como unidade textual mínima o enunciado e a este acrescenta a proposição, como microunidade sintático-semântica, adotando a proposição-enunciado como uma unidade textual de base, um enunciado mínimo. Adam é enfático ao afirmar que “Um texto não é uma simples sequência de atos de enunciação que possui um certo valor ou força ilocucionária [...], mas uma estrutura de atos de discurso ligados entre si.” (2008 [2011a], p.196).

E é com base nessa ideia de estrutura interligada, que o estruturalista Harald Weinrich (apud KOCH, 2009, p.7) define o texto como “[...] uma sequência linear de lexemas e morfemas que se condicionam reciprocamente e que, também

reciprocamente, constituem o contexto.” Dessa forma, o texto é uma “estrutura determinativa”, onde tudo está necessariamente interligado. Para ele, toda linguística é linguística de texto.

A noção de texto que Adam11 apresenta em Charaudeau e Maingueneau (2008) remete ao fato de que o texto é, na maioria das vezes, plurissemiótico. Essa noção também leva em consideração o contexto, o suporte, já que, para o autor, o julgamento da coerência resulta da articulação do texto com o contexto sociopragmático da interação. Para Adam (2008a [2011a]), todo texto é uma unidade em tensão entre dois princípios: princípio de coesão e princípio de progressão. Com efeito, o texto se define como “uma sequência de enunciados elementares interligados” ou ainda “uma sequência progressiva de enunciados elementares” (2008 [2011a], p. 101). O autor defende que todo texto possui, de um lado, os elementos referenciais recorrentes pressupostos conhecidos pelo contexto, que asseguram a coesão do conjunto, e de outro, os elementos postos como novos, portadores da expansão e da dinâmica da progressão informativa. E, por ser um objeto complexo, o texto requer uma teoria que dê coerência aos conceitos das diferentes ciências da linguagem. É essa teoria que Adam (2008a [2011a], p. 25) propõe:

O texto é, certamente, um objeto empírico tão complexo que sua descrição poderia justificar o recurso a diferentes teorias, mas é de uma teoria desse objeto e de suas relações com o domínio mais vasto do discurso em geral que temos necessidade, para dar aos empréstimos eventuais de conceitos das diferentes ciências da linguagem, um novo quadro e uma indispensável coerência.

Ao propor uma teoria do texto e uma definição de textualidade, Adam reivindica para a linguística textual o status de fornecedora de instrumentos de leitura das produções discursivas humanas, defendendo que a linguística deve se abrir às disciplinas que têm o texto como objeto. Em sua proposta, o autor delineia

11ADAM, Jean-Michel. Texto. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

as bases de uma análise textual dos discursos, oferecendo uma alternativa para a explicação do texto tradicional e análise estilística.

A concepção de texto adotada pela LT é a que defende que todo texto constitui uma proposta de sentidos múltiplos e não de um único sentido, e que todo texto é plurilinear na sua construção (cf. KOCH, 2006). Essa ideia já era postulada por Koch em obras anteriores, em que a autora defendia a construção dos sentidos a partir do texto. Assim, ela defende que “o sentido não está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação” (1998, p. 25). Isso remete ao fenômeno, defendido pela autora, de que, no curso da interação, cada sentido constrói-se em conformidade com o contexto, adequando-se às margens dos parceiros da comunicação e ao tipo de atividade em curso. Uma vez realizada a manifestação linguística e construído um sentido com esses fatores, a coerência é estabelecida, levando os parceiros da comunicação a identificar um texto como texto (cf. KOCK, 1998). Nessa perspectiva, Koch (op. Cit. p. 25), ao tratar da propriedade definidora do texto, postula que

Um texto se constitui enquanto tal no momento em que os parceiros de uma atividade comunicativa global, diante de uma manifestação linguística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes de construir, para ela, determinado sentido.

Esse postulado permite-nos aceitar a ideia de que o texto passa a existir no momento em que um sentido é construído para ele. E esse sentido não é algo que preexista à interação: o sentido de um texto é construído na interação texto- sujeitos. Com efeito, o texto é considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, sujeitos ativos que nele se constroem e são construídos (cf. KOCH, 2006). Esse entendimento do texto como produto construído também se encontra em Adam (2008a [2011a]). Para ele, o texto aparece como uma unidade construída pela análise. O autor endossa a concepção de que “[...] os textos não são dados, mas construções problemáticas decorrentes de diversos procedimentos.” (pp. 72- 73). Dentre esses procedimentos, destaque-se a busca do ouvinte/ leitor pela produção de sentido. Nessa busca, ele mobiliza conhecimentos e estratégias cognitivas diversas para interpretar o texto como dotado de sentido e procura, a

partir da forma como o texto se encontra linguisticamente organizado, “[...] construir uma representação coerente, ativando, para tanto, os conhecimentos prévios e/ou tirando as possíveis conclusões para as quais o texto aponta.” (cf. KOCH, 2006, p. 19).

Esse é o modelo de texto adotado pela LT hoje: o texto enquanto unidade sociognitivo-interacional humana de construção de sentidos. E como observa Koch (2006), essa atividade (sociocomunicativa) requer por parte do produtor e do receptor do texto uma série de estratégias de ordem sociocognitiva, interacional e textual. Da parte do produtor do texto, compreende um projeto de dizer; da parte do interpretador, uma participação ativa na construção do sentido por meio da mobilização do contexto e a partir das pistas e sinalizações que o texto lhe oferece. Essa complexidade do texto é retratada por Cavalcante et al (2010, p.255) quando descrevem todos os elementos implicados no processamento textual:

O texto não representa a materialidade do contexto, nem é somente um conjunto de elementos que se organizam numa superfície material suportada pelo discurso; o texto é uma construção que cada um faz a partir da relação que se estabelece entre enunciador, sentido / referência / tópico / posicionamento discursivo e coenunciador, num dado contexto sociocultural. Por isso está inevitavelmente atrelado a uma enunciação discursiva.

Nessa visão, o texto é apresentado como um evento comunicativo em que estão presentes elementos de natureza diversa, fatores cognitivos, sociais, interacionais. Portanto, em harmonia com os autores a que recorremos, e especialmente com Adam, uma de nossas principais referências, entendemos que o texto só adquire sentido por meio da atividade de interpretação de seus ouvintes/leitores, a qual reconstrói o sentido a partir dos elementos que o texto oferece. Esses elementos funcionam como instrumentos que orientam o leitor em sua interpretação. E, como o próprio Adam nos ensina, todo texto é uma proposição de mundo (Rd) e de sentido, “[...] uma proposição de mundo que solicita do interpretante (auditor ou locutor) uma atividade semelhante, mas não simétrica, de (re)construção dessa proposição de (pequeno) mundo ou Rd.” (2008a [2011a], p.114). Essa concepção será tomada como base principal que ancorará a analise de nosso material: os textos como proposição de mundo e de sentido, os textos como

modelos sobre o mundo, os textos como instrumentos que “permitem ao homem organizar cognitivamente o mundo” (KOCH, comunicação verbal12).

É nessa perspectiva que se inscreve o presente trabalho, adotando-se a noção de texto oriunda da LT, a qual nos permite compreendê-lo como um evento comunicativo em que estão presentes elementos de natureza diversa, fatores cognitivos, sociais, interacionais. São as estratégias de ordem sociocognitiva, interacional e textual que possibilitam construir para o texto e a partir dele uma representação coerente. As análises que se farão neste trabalho partirão do pressuposto de que essa noção de texto mostra-se satisfatória para a investigação do presente objeto de análise, como também para a exploração de elementos textuais que tornem possíveis a análise acurada que essa investigação requer.