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ANÁLISE DOS DADOS “É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando a

3.1 Representações discursivas construídas para LCC no discurso de MA

3.1.4 OS TRABALHOS 1 A sinceridade

(2MA3) As suas “Reminiscências” me causaram uma impressão profunda. [Não tenho] a menor hesitação em dizer que considero essa página admirabilíssima. É uma realização quase perfeita e comove imensamente na sua sinceridade, no seu vácuo.

O fragmento (2MA3) descreve o texto de LCC, cujo tema é apresentado por pré-tematização, com nome próprio precedido de determinante (pronome possessivo). Por meio da operação de retematização, o objeto de discurso introduzido é retomado por anáfora demonstrativa. A expressão referencial “essa página”, escolhida para retomar o referente “Reminiscências”, opera uma reclassificação desse objeto, que é reconstruído e perspectivado de novo ponto de vista. Essa retomada ancora uma nova predicação. Além de fazer aceder ao objeto de discurso já introduzido, a nova designação indica direções argumentativas e sinaliza as representações discursivas construídas por meio da predicação e de propriedades evidenciadas pela modificação. O recurso coesivo da substituição (“Reminiscências” por “essa página”) exerce papel essencial para a coesão desse fragmento, pois serve de base para as duas predicações seguintes: [essa página] é uma realização quase perfeita e [essa página] comove imensamente na sua sinceridade, no seu vácuo.

A escolha de verbo de ação-processo “causaram” confere dinamicidade e precisão semântica ao segmento de texto de (2MA3), enquadrando os objetos da descrição como agente causativo (“Reminiscências”) e agente afetado (“me”). A opção pela construção “me causaram uma impressão profunda” em vez de simplesmente me impressionaram profundamente, por exemplo, suscita a possibilidade de adjetivação do nome “impressão”, qualificado como “profunda”, o que dá mais versatilidade semântica ao que está sendo enunciado. Pelo recurso da elipse, o emprego da cópula confere uma atribuição predicativa ao objeto de discurso, que passa a ser aspectualizado de forma apreciativa como “uma realização quase perfeita” que comove. Essa representação mantém a representação construída em (6MA3) para a fala que é verdadeira e comove. Chamamos a atenção para a imagem que aparece no final do fragmento: “no seu vácuo”. Posta em relação de causalidade com a ação de comover, essa metáfora

revela uma maneira particular de representar aspectos da realidade, e permite atribuir ao referente descrito traços de singeleza e espontaneidade.

3.1.4.2 Pressa e falta de paciência

(5MA1) Às vezes tenho impressão que você escreve um pouco depressa os seus versos e deixa como saíram sem se importar mais com eles [...] Você é tão natural tão verdadeiro nestes poemas que a gente quase que não escuta a dicção de você porque ela desaparece e fica a impressão o quadro que você descreveu vibrando sozinho desimpedidoe bonito.

(7MA1) E mude sua opinião sobre maneira de fazer obra-de-arte que sobre esse ponto de parir só e não educar depois está positivamente errada.

(18MA4) Há nos trabalhos de você dois erros que em trabalhos técnicos, me parecem fundamentais, a falta de paciência e o desprezo da medida [...] seu desprezo da medida faz com que até agora não tivesse paciência pra escrever, senão um livro, pelo menos uma monografia de tema especializado, sobre folclore ao menos do R. Grande do Norte, pra não dizer Nordeste [...] Fiquei num tal estado de irritação pela sua falta de paciência e leviandade de colheita de documentação, que disse palavras duras, te esculhambei mesmo, prá um amigo comum que também quer muito bem você [...] ele concordou logo com o jeito anticientífico do estudo de você, a ausência de dados sobre como foram colhidos os dados, de quem etc. [...] Agora, se um dia escrever sobre Catimbós, num estudo com princípio, meio

e fim, e não assim ao léu do assunto como você fez, este alemão que quase não

saiu de Berlim para escrever sobre a girafa, fará por certo coisa mais fundamental que você. Mas a culpa será de você [...] quero dois estudos por ano pra Revista do

Arquivo, e pago duzentos paus cada. Não precisam ser de 40 páginas de revista

não. Mas precisam ser fundamentais, estudados sérios, com paciência, sem leviandade de colheita e exposição de dados.

Em (5MA1), (7MA1) e (18MA4), MA chama a atenção do amigo para o cuidado com a escrita apressada, alertando sobre a importância da revisão, da releitura do que se produz. Nesse ponto e em outras partes da correspondência, fica sugerido que o escritor natalense não tinha o hábito de refazer, reelaborar seus escritos, o que leva o amigo (em carta de 09/07/1937) a apontar, como defeito nos trabalhos de LCC, a falta de paciência. Para Mário, esses defeitos poderiam ser corrigidos com a releitura, pois fazer obra de arte, na concepção do paulista, não é “parir só e não educar depois”. O escritor paulista sempre insistia nesse aspecto da revisão, do trabalho refletido, “que só pode ser posterior ao momento da criação” (7MA), e argumentava que sem paciência e trabalho refletido não tem quase obra que seja grande, destacando que todos os seus trabalhos, com exceção das cartas,

eram pausadamente pensados. Embora chame a atenção do amigo para a escrita apressada, MA elogia a naturalidade e espontaneidade dos versos sugestivos do escritor potiguar, incentivando o amigo, em (9MA1), a continuar “essas impressões de agreste tão sugestivas e tão simples”.

Em (7MA1), em sequência textual predominantemente injuntiva, MA exorta LCC a reescrever seus poemas, aperfeiçoá-los e enviá-los para ele. Em seguida, adverte o amigo sobre a maneira de conceber obra de arte. Essa advertência é introduzida pelo conector “E”, o qual articula as proposições e dá continuidade aos argumentos desenvolvidos no período anterior. O efeito de sentido produzido pelo “E”, nesse fragmento, além de contribuir para formar com os períodos anteriores uma unidade de sentido, é de arremate. O “E” introduz o desfecho da sequência. No período anterior, é apresentada uma série de argumentos em defesa da necessidade da revisão, em que Mário incita Cascudo a retrabalhar os seus versos. Fechando a sequência, o período iniciado pelo conector “E” apresenta a real intenção de MA: alertar o amigo sobre “sua [de LCC] opinião sobre maneira de fazer obra-de-arte” que estaria “positivamente errada”. Além da conexão, a categoria que constrói a Rd em (7MA1) é, sobretudo, a analogia. MA, mais uma vez, insiste na necessidade de revisão, deixando subentendido que a concepção de LCC sobre a “maneira de fazer obra-de-arte” não incluía essa prática. A escolha lexical em (7MA1) de termos como “parir” e “educar”, empregados metaforicamente, é motivada pela analogia e remete para a orientação que o autor quis emprestar ao significado do seu dizer: onde “parir só e não educar depois” corresponderia a gerar, produzir um trabalho e não o melhorar, aprimorá-lo mais tarde. É possível interpretar nesse fragmento a representação que MA constrói para a “maneira de fazer obra de arte”: um repensar e retrabalhar constantes após o momento da criação. A construção dessa Rd é possível a partir do nosso conhecimento enciclopédico, que estabelece uma relação entre “parir e educar” com o ato de produzir uma obra, transpondo para este domínio a atitude que devem ter os pais em relação aos filhos: formar o caráter, preparar para o mundo. Ao aplicar essa imagem, o enunciador seleciona os traços de “parir’ e “educar” nas acepções de produzir, conceber e aprimorar o produto dessa criação.

Em (18MA4) MA, “no domínio do desagradável”, em carta que ele próprio chama “carta difícil”, destaca “a falta de paciência” e “o desprezo da medida”como

erros fundamentais nos trabalhos de LCC. Em meio a uma série de palavras ríspidas e reprimendas, MA esboça uma qualificação depreciativa desses trabalhos, apontando falhas, como leviandade de colheita de documentação e descomedimento, ao mesmo tempo em que incita o amigo a se dedicar a estudos mais sérios, “necessários e profundos”. MA mais uma vez recorre a uma relação de analogia para mostrar ao amigo que este poderia construir trabalhos mais sérios e fundamentais, já que tinha a riqueza folclórica passando em sua rua a qualquer hora. E ele, Mário, um “alemão que quase não saiu de Berlim para escrever sobre a girafa”, faria por certo trabalho mais fundamental sobre temas nordestinos do que o próprio nordestino. Toda a orientação argumentativa neste texto vai no sentido da advertência ao amigo para que aproveite o que o lugar lhe oferece como temas.

A modificação, sobretudo o emprego dos modificadores de referentes, ou seja, modificação do sintagma nominal, bem como a relação de analogia, constroem, nesses fragmentos, a Rd de Câmara Cascudo com base em aspectos de sua personalidade, como espontaneidade, naturalidade, pressa e falta de paciência. Quanto à referenciação, a dêixis pessoal é preponderante, com o emprego do pronome você, principalmente na posição de sujeito. O interlocutor (você) recebe atributos positivos, como “natural” e “verdadeiro”, mas é censurado por MA, que chama a sua atenção para a falta de paciência e o desprezo da medida, avaliando negativamente seus trabalhos e encorajando-o a produzir estudos mais sérios e necessários.

3.1.4.3 A utilidade

(19MA1) Aliás estive outro dia na Livraria Martins e ele me mostrou as provas de sua antologia folclórica, vai sair um livrão nos dois sentidos. Estive compulsando o seu trabalho. Franqueza: é excelente. Quanta gente agora vai bancar o “científico” citando as fontes através do canal que você lhes abriu.

(20MA1) Quero ver se em quinze dias acabo a leitura de suas provas, puxa que livro enorme, quase seiscentas páginas. Mas que trabalho útil você fez. Só percorri o índice quando o livro estava ainda em projeto e o Martins me consultou, achei muito bom. Agora vou ver.

O conector que abre o período em (19MA1) introduz um ponto de vista complementar e mais importante (Cf. ADAM, 2010); a argumentação vai no mesmo

sentido do cotexto anterior (no parágrafo antecedente, MA informa que vinha citando LCC em seus artigos), mas traz uma informação nova e essencial: ele vira as provas da antologia folclórica do amigo. A designação do referente como “livrão” para nomear a obra do amigo representa uma qualificação positiva por parte de MA. O substantivo no aumentativo é empregado com duplo sentido: intensidade e qualidade. Trata-se do livro Antologia do folclore brasileiro, publicado em 1944 pela editora Martins. Reforçando a ideia de intensidade, o autor renomeia o referente como “trabalho”,essa expressão recategoriza o objeto, conferindo-lhe a acepção de elaboração ou composição de uma obra. Em seguida, esse referente é qualificado de forma positiva pelo modificador “excelente”. A retematização, além de assegurar a coesão semântica da sequência e sua progressão, permite uma reformulação do objeto de discurso, que passa a ser aspectualizado por novas propriedades semânticas. Dessa forma, a retomada do referente “antologia folclórica” por “livrão” e “trabalho” abre espaço para a sua apreciação, primeiro como “livrão nos dois sentidos”, depois como “excelente”, qualidade que é atribuída por meio da forma copulativa “É”.

Para reforçar a avaliação positiva do livro de LCC, Mário acrescenta a informação de que o livro serviria de fonte de pesquisa para outros estudiosos, sendo objeto de citações em pesquisas científicas. Ressaltando a utilidade da obra, informação reforçada em (20MA1), MA considera, com certa ironia, que muitos iriam se fazer passar por científicos fazendo uso dessas citações. Dessa forma, a obra de LCC seria uma ponte, uma abertura para a pesquisa científica. Na expressão “canal que você lhes abriu”, pode-se entender o termo “canal” na acepção de “trilha” ou “caminho”, cujo sentido remete, metaforicamente, à ideia de pioneirismo. Nesse sentido, Cascudo seria precursor e estaria lançando novas ideias no campo das ciências, ideias que, presumivelmente, seriam seguidas por muitos outros que lhe sucederiam.

Em (20MA1), a operação de rematização permite atribuir novas designações ao objeto, que, nomeado primeiramente como “provas”, é recategorizado como “livro” e “trabalho”. O modificador “enorme” atribui ao referente “livro” traços semânticos de intensidade. Essa característica remete ao volume do livro, citado pelo próprio enunciador: quase 600 páginas. “Livro enorme” retoma “livrão” de (19MA1) agora na acepção de intensidade. O segundo período da

sequência é iniciado pelo conector argumentativo “mas”, que apresenta, principalmente, valor discursivo, e indica em menor grau direção de oposição. A expressão referencial “trabalho” renomeia o objeto, que é modificado pelo qualificativo “útil”. Esse modificador usado para o referente livro recupera e complementa as representações discursivas construídas para a inteligência (1MA2), para a linguagem (2MA1) e para o estilo (11MA1). Assim, uma inteligência eficaz se materializa por meio de uma linguagem eficaz, resultando em um trabalho útil, o que vem reforçar a representação do homem que soube ser eficaz (14MA1). Para fazer a avaliação do objeto livro, MA recorre ao verbo opinativo “achei” com adjetivo predicador “bom”, intensificando essa propriedade com o modalizador “muito”.