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Objetos e objetivos do Ensino de Língua Portuguesa

Essas diferentes concepções de linguagem e oralidade e as mudanças teóricas que delas decorrem trazem uma série de consequências para o ensino de língua portuguesa. Há uma mudança de paradigmas que, de acordo com Crescitelli e Reis (2011), deixa os professores inseguros em relação ao que ensinar, à forma como se deve ensinar e aos objetivos do ensino.

Por muito tempo, as escolas brasileiras estiveram exclusivamente voltadas para a elite. Os saberes a serem transmitidos pela escola eram, portanto, aqueles que faziam parte da gama de interesses dessa elite. Soares (1998) afirma que o fato de os alunos fazerem parte de uma mesma classe social fazia com que houvesse menor presença de variedades linguísticas na escola e, como consequência, epistemologicamente a concepção em que se baseavam os professores era primordialmente a de língua como expressão do pensamento.

A mesma autora mostra como, a partir dos anos 1960, com a crescente industrialização brasileira, passa a haver uma demanda por escolarização e uma consequente democratização do acesso à escola, ou seja, as classes menos privilegiadas passaram a ter acesso à sala de aula, apesar de isso não significar uma ampliação efetiva do acesso ao conhecimento.

A presença de classes sociais distintas na escola passa a evidenciar a existência de variedades linguísticas e a necessidade de um tratamento pedagógico da língua que abarcasse essas diferenças. Weber (2009) destaca que é a partir daí que se começa a questionar a escola como reprodutora cultural da classe dominante, evidenciando-se as desigualdades sociais existentes no Brasil.

Louzada (1994) comenta que, mesmo com a expansão do ingresso na escola de indivíduos de classes sociais diversas, continuou-se a ensinar na escola “o que e como se ensinava há 20 ou 30 anos atrás” (p. 13, grifos da autora). Esse é, segundo ela, um dos motivos que justificam o fracasso escolar: o fato de não se considerar para quem se está ensinando, o que levaria à conclusão de que, em geral, quem está na escola não é falante da norma que nela ensinada.

A partir da década de 1980, então, ocorre uma mudança no que sempre havia sido tomado como objeto de ensino da língua. Suassuna (2009, p. 37) mostra como, para compreender essa mudança, é necessário inserir a questão da prática da linguagem no âmbito

da virada pragmática. Essa virada significou “a ruptura com modelos teóricos clássicos da linguística imanente, os quais não levavam em conta dados do processo histórico de produção da linguagem, entre eles, os sujeitos e suas relações.”. A autora defende que tomar a língua como forma de interação implica percebê-la, tal como a sociedade, como “um processo complexo, carregado de contradições” (p. 39). A partir da adoção dessa concepção de linguagem, surge também uma nova meta para o ensino de português, que é ampliar as formas de interação pela linguagem. Assim, a autora defende que é a partir da compreensão da interação que se deve aprender o conteúdo gramatical.

Dessa maneira, a produção da linguagem é tomada como objeto de reflexão no ensino. Nesse contexto, Geraldi (2006b) propõe um ensino que, partindo da interação pela linguagem e tomando, portanto, o texto como objeto de ensino, se baseia em três práticas: leitura, produção de texto e análise linguística.

Rojo e Cordeiro (2004) afirmam que já há um tempo razoável que se considera que o ensino de língua portuguesa no Brasil tem como base o texto. Esse uso do texto na sala de aula, no entanto, nem sempre foi realizado de maneira alinhada à concepção de língua como interação. Muitas vezes o texto é tomado, de acordo com as autoras, como pretexto para a realização do mesmo ensino de antes, pautado na gramática tradicional.

Da mesma forma, Antunes (2003) ressalta o fato de que análises da forma como o ensino de língua se concretiza nas salas de aula demonstram que este ainda se baseia no estudo de palavras e frases descontextualizadas, objetivando a memorização de regras, em detrimento do desenvolvimento da consciência de que a língua só funciona em uso, nas diferentes situações de interação.

Um aspecto que contribuiria para isso seria, na percepção de Rojo e Cordeiro (2004), o fato de algumas teorias relacionadas ao texto generalizarem certos conceitos na busca de uma classificação mais geral, que nem sempre se aplicava a todos os textos que estavam sendo classificados. Além disso, nem sempre as situações de produção dos textos abordados eram levadas em consideração, sendo desvalorizadas em relação às das leituras voltadas para extração de informações.

Essa perspectiva do uso do texto na sala de aula, visto como algo situado social, histórica e culturalmente – inicialmente proposta por Geraldi na década de 1980 – se fortalece no fim da década de 1990, com o lançamento dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), quando os gêneros textuais, tanto escritos como orais, aparecem como a melhor forma de se conduzir o ensino de língua portuguesa que se baseia nos princípios interacionistas. A partir daí, as autoras acima citadas apontam duas principais novidades: o

ensino de linguagem e de gêneros orais (formais públicos) e a valorização dos contextos de uso e de circulação.

Crescitelli e Reis (2011) também destacam a importância dada, nos PCN, ao texto no ensino de língua portuguesa, ou seja, propugna-se um ensino não mais baseado em segmentos da língua fora de contexto, como palavras e sentenças, mas que tome o texto como evento discursivo, indo além da análise textual simplesmente para a identificação de informação e estruturas. Antunes (2003) também afirma que as concepções voltadas para o ensino de língua como interação se fazem presentes nos PCN, que colocam o aprendizado das dimensões discursivas e interacionais da língua como essenciais para que o indivíduo participe adequadamente da vida social.

Antunes (2003) afirma que, a partir dessa nova visão de ensino, o aluno passa a ser considerado o sujeito da aprendizagem, e isso significa que é a partir dele que a interação deve se concretizar, bem como a construção do conhecimento. O professor, por sua vez, deve ser, ao mesmo tempo, educador, linguista e pesquisador, além de ser o principal interlocutor de seus alunos, conforme propõe Geraldi (2010), observando, analisando e refletindo sobre a língua em seus múltiplos usos. Dessa forma, o aluno se torna autônomo e seguro em relação à forma como deve conduzir o trabalho em sala de aula.

O ensino baseado em textos não teria sentido se o objetivo fosse memorizar regras e estruturas. Essa transferência do objeto de ensino de língua portuguesa se deu, dentre outras razões, devido a mudanças nos objetivos de ensino de língua portuguesa, de acordo com Crescitelli e Reis (2011), que passam a se relacionar mais com a apropriação das diferentes situações de uso da língua, através dos mais diversos gêneros textuais orais e escritos.

Nessa perspectiva, o ensino, de acordo com Milanez (1993), constitui-se com o objetivo de permitir que os alunos sejam capazes de fazer uso da língua de maneira adequada nas diferentes relações sociais. A autora afirma que a interação se dá por muitos fatores. O primeiro deles é que, numa mesma interação, um indivíduo pode ser locutor e ouvinte, funções que são mudadas a partir dos turnos de fala. O segundo fator são as interações entre os interlocutores e o contexto da comunicação, este formado por características sociais, espaciais e temporais. Por fim, devem ser consideradas as interações que se dão em diferentes níveis de estruturas, sejam linguísticas, pragmáticas ou ideacionais.

A autora considera que, se esses fatores ligados à interação fossem mais profundamente considerados em sala de aula, seria possível uma aprendizagem mais produtiva por parte dos alunos acerca da língua, bem como uma maior desenvoltura para a produção de discursos. Apesar disso, Milanez aponta para um problema para que essa

interação se efetive em sala de aula: o fato de que, em geral, os professores assumem a palavra de forma praticamente exclusiva ao colocar a preocupação com a correção gramatical acima da utilização da língua em diferentes situações de interação.

Tal postura dos professores apontada pela autora reflete o modelo de ensino adotado e a concepção de língua que permeia a prática dos mesmos. Essa excessiva preocupação com a correção gramatical retoma a concepção de linguagem como expressão do pensamento, a qual foi predominante nas escolas brasileiras por muito tempo, e ainda se faz presente. Além disso, conforme Bezerra (2010), há outros fatores que justificam esse modelo de ensino no Brasil. Primeiramente, o fato de que quem frequentava as escolas eram indivíduos da elite, conforme já mencionamos anteriormente, que faziam uso da variedade da língua tida como culta, e o papel da escola era levar aos conhecimentos sobre as regras dessa variedade linguística. Em segundo lugar, o fato de que esses indivíduos prosseguiam, posteriormente, para o estudo da gramática do latim, cujo modelo de ensino era reproduzido para o ensino da língua portuguesa.

Antunes (2003, p. 108-109) afirma, em relação aos objetivos do ensino de língua, que: A escola não deve ter outra pretensão senão chegar aos usos sociais da língua, na forma em que ela acontece no dia a dia da vida das pessoas. Essa língua é a ‘língua-em-função’ (cf. Schmidt, 1978), a língua que somente acontece entre duas ou mais pessoas, com alguma finalidade, num contexto específico e sob a forma de um texto – mais ou menos longo, mais ou menos formal, desse ou daquele gênero. (grifos da autora).

De acordo com Antunes, a escola deve sempre procurar ampliar as representações do aluno acerca da linguagem, através da leitura e produção de textos, centrando-se nas funções sociais dos mesmos.

Percebemos, pois, que a mudança nas concepções de língua trouxe à escola novas reflexões sobre o que e como ensinar. Acreditamos, portanto, que os objetivos do ensino de língua pautados em uma concepção interacionista devem ser focados nos usos da língua e, por conseguinte, nos textos orais e escritos, materializados em gêneros textuais, a partir do trabalho com leitura, produção de textos e análise linguística. Além disso, esse trabalho deve se dar no sentido de proporcionar aos alunos a participação social em situações diversas em que ele se constitui como sujeito na e pela linguagem.