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5. Princípio da Plena Concorrência no Direito Comunitário

5.10. Observações e conclusões

Havíamos referido no § 5.9.1. desta dissertação que o TJUE assume um papel importantíssimo nos trabalhos de harmonização levados a cabo na UE em matéria de tributação direta, tendo como ponto de partida essencial as liberdades de circulação.

Contudo, e como bem observa Ribeiro (2018: 138), também o instituto dos auxílios de Estado se tem revelado um importante instrumento de defesa e construção do mercado único, e neste domínio em muito se destacam as inúmeras Decisões da Comissão, nomeadamente as dos casos Starbucks e Apple, acima apresentados, ou as dos casos Fiat, Amazon ou McDonald’s.

Contudo o autor, conduz uma crítica à tomada de posição da Comissão face a estas questões referindo que «[…] a solução para as disparidades, tendo em conta que não são imputáveis a um Estado individualmente considerado, passa por legislação que promova uma harmonização e não pela aplicação dos auxílios de Estado» (Ribeiro, 2018: 139-143).

Com o devido respeito, e ressalvando que concordamos em pleno com o autor, uma vez que o recurso aos auxílios de Estado é como um «estancar momentâneo da ferida», a verdade é que a via legislativa, o recurso à hard law, em matéria de tributação direta não se tem revelado uma opção viável para uma parte ainda significativa dos Estados, e não se afigura fácil a alteração do paradigma, embora se reconheçam os esforços plasmados, nomeadamente, em instrumentos como a proposta de Diretiva para estabelecer uma Matéria Coletável Comum Consolidada do Imposto sobre as Sociedades (Ribeiro, 2018: 143).

O ceticismo em relação ao sucesso desta proposta é latente, como aliás referem Haines e Schwance (2016: 34), que realçam as dúvidas que alguns Estados-Membros ainda apresentam relativamente ao impacto positivo da efetivação desta proposta.

Como foi dito, reconhecemos o perigo de se permitir um recurso demasiado alargado à figura dos auxílios de Estado, tal como refere Ribeiro, que se socorre aliás do acórdão do Tribunal Geral acerca do Banco Santander (2018: 140).

Neste acórdão, o Tribunal Geral considerou que a Comissão realizou uma aplicação errada do artigo 107.º n.º 1 do TFUE, na medida em que utilizou uma visão demasiado ampla do que seria a condição da seletividade. O Tribunal Geral refere aliás no § 72 do acórdão em causa que

[…] a perspetiva proposta pela Comissão […] poderia levar a concluir pela existência de uma seletividade para todas as medidas fiscais cujo benefício esteja subordinado a certas condições, ainda que as empresas beneficiárias não partilhem de nenhuma característica própria que permita distingui-las das outras empresas, para além do facto de poderem respeitar as condições a que a atribuição da medida está subordinada.

Entendeu assim o Tribunal que esta medida não era suscetível de ser considerada um auxílio de Estado por não ser seletiva, não favorecendo «certas empresas ou certas produções», como resulta do artigo 107.º n.º 1 do TFUE.

Assim, Ribeiro (2018: 140) alerta para o facto de que «[o] recurso demasiado frequente ao expediente dos auxílios de Estado pode gerar problemas ao nível da articulação entre a competência dos Estados-Membros e a da União Europeia […]». O perigo é facilmente identificável, contudo entendemos que o exercício realizado pela Comissão para identificar a vantagem seletiva de uma medida está conforme o entendimento do TJUE e que a sua fundamentação na generalidade das Decisões analisadas parece consistente. A identificação de um «sistema de referência» comum a empresas integradas e independentes, não sendo essa distinção suficiente para identificar uma situação factual e jurídica distinta entre elas, parece a solução mais justa e que mais se adequada aos princípios subjacentes aos sistemas de tributação direta das sociedades da generalidade dos Estados-Membros.

Byrne (2016: 13) dava conta de uma certa expectativa criada em volta desta decisão do Tribunal Geral.

De acordo com a autora, uma decisão favorável ao Santander poderia vir a dar novo fôlego às restantes Multinacionais que se debatiam contra Decisões da Comissão acerca de determinadas decisões fiscais que, no entender desta última, consubstanciavam auxílios de Estado incompatíveis com o mercado único, nomeadamente o Grupo Apple.

Estas expectativas sairiam, contudo, frustradas considerando que, posteriormente, o TJUE no acórdão de 21 de dezembro de 2016, veio a dar razão à Comissão por entender que o facto de uma aquisição, por uma entidade residente em Espanha, de 5% das participações sociais de uma entidade estrangeira, conferir a essa entidade um benefício fiscal, não concedido às que fizessem igual aquisição, mas das participações sociais de uma entidade também ela residente em Espanha, consubstancia uma vantagem seletiva.

De acordo com o Tribunal Geral, aquela medida em de caráter geral e não seletiva, tendo exigido à Comissão que provasse que esta medida favorecia uma categoria particular de empresas ou produções. O TJUE, em sentido contrário, e tal como plasmado no § 77 do acórdão em causa, veio defender que não pode ser exigido à Comissão que «[…] identifique determinadas características próprias e específicas comuns às empresas que obtêm o benefício fiscal, que permitem distingui-las das que dele são excluídas», ou seja, a inexistência de um setor específico de empresas ou produções que beneficiasse da medida em causa não excluía a sua seletividade. A avaliação do caráter seletivo da medida no sentido da Comissão, confirmada pelo TJUE, não altera o facto de esta intervenção por parte dos órgãos da UE ser entendida por muitos como uma ingerência em assuntos da soberania dos seus Estados-Membros, como aliás refere Kennedy (2016: 37), que entende que a Irlanda perdeu a autonomia para aplicar o seu próprio Direito Fiscal, no âmbito do caso Apple. Não concordamos com esta última afirmação, uma vez que o Direito Fiscal da Irlanda integra, em todo o caso, também o Direito da União Europeia, e é esse o foco das Decisões da Comissão.

Se é verdade que a recuperação retroativa de montantes tão avultados, como os envolvidos no caso Apple, parece chocar, também chocam os efeitos das decisões fiscais em apreço, cujos resultados se parecem afastar por completo do Princípio da Plena Concorrência.

No que concerne a este princípio, entendemos poder dizer com alguma segurança que é já parte integrante do ordenamento jurídico-tributária da UE. A posição da Comissão nos casos Fiat, Starbucks, Apple e Amazon é coerente e ponderada.

A Comissão faz, na generalidade dos casos, a ressalva de que não se trata de uma aplicação direta do princípio, por intermédio do artigo 9.º da Convenção Modelo da OCDE, mas sim de uma aplicação do Princípio da Plena Concorrência enquanto decorrência do regime de auxílios de Estado. O Princípio da Plena Concorrência é, nas Decisões apontadas, considerado um critério de determinação da concessão de uma vantagem seletiva, ou não, por parte da medida em causa. Vejam-se, para esse efeito os § 258 a 264 da Decisão (UE) 2017/502, relativa ao caso Starbucks, os § 225 a 229 da Decisão (UE) 2016/2326, relativa à Fiat, os § 249 a 256 da Decisão (UE) 2017/1283, relativa à Apple e, finalmente, os § 401 a 406 da Decisão (UE) 2018/859.

O princípio é então configurado como uma decorrência natural da proibição de auxílios estatais, embora não seja consagrado de forma expressa. Nas diferentes Decisões da Comissão, e mesmo

nos já mencionados acórdãos do TJUE, o recurso aos comentários da OCDE são constante, e neste contexto consideramos que essa prática é correta pois, pese embora estes não tenham eficácia vinculativa, os desenvolvimentos em sede de preços de transferência no seio da OCDE contam com a participação da Comissão e da generalidade dos Estados-Membros da UE, além de que, como já foi referido, estes comentários não deixam de ter um valor interpretativo elevado.

Nas palavras de Dourado (2017: 158), «[a] Comissão está a construir um princípio da plena concorrência baseado na exigência de livre concorrência no mercado interno, autónomo do Direito interno e das orientações da OCDE».

A abordagem adotada pelos órgãos da UE poderá não ser a mais correta, na medida em que não vem revestida de segurança jurídica, contudo, face às dificuldades de cooperação e harmonização, por parte dos Estados-Membros, no que diz respeito à tributação dos rendimentos das sociedades, deverá ser, por enquanto, a única ao alcance da UE, para garantir o funcionamento do mercado único e a continuação do combate à elisão fiscal.

6. O caso crítico das operações relacionadas com ativos