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Sertão: foco e elemento central desta pesquisa. No entanto, antes de investir na penetração dos recônditos desta noção geográfica, podemos vislumbrar o que ele não é – ou seja, deslindar o panorama do não-sertão. Esta condição é marcadamente, embora não exclusivamente, investida de uma faceta da experimentação ou vivência madura do fenômeno urbano. Portanto, as localidades que se valem de um padrão de vida urbano cosmopolita ou minimamente integrado a uma lógica política, econômica e sociocultural hegemônica não são sertões.

Se os espaços sertanejos aparecem, segundo uma cartografia do poder constituído predominante, como áreas desfocadas, a marcha urbana para a hinterlândia nacional tem sistematicamente diminuído as suas dimensões e os seus “borrões”, nitidizando e alternando tais espaços em não-sertão. Essa marcha urbana pode ser constatada, em caráter conclusivo, já no primeiro parágrafo de A Urbanização Brasileira:

Como se define, hoje, a urbanização brasileira? Alcançamos, neste século, a urbanização da sociedade e a urbanização do território, depois de longo período de urbanização social e territorialmente seletiva. Depois de ser litorânea (antes e mesmo depois da mecanização do território), a urbanização brasileira tornou-se praticamente generalizada a partir do terceiro terço do século XX, evolução quase contemporânea da fase atual de macrourbanização e metropolização. O turbilhão demográfico e a terceirização são fatos notáveis. A urbanização se avoluma e a residência dos trabalhadores agrícolas é cada vez mais urbana. Mais que a separação tradicional entre um Brasil urbano e um Brasil rural, há, hoje, no país, uma verdadeira distinção entre um Brasil urbano (incluindo áreas agrícolas) e um Brasil agrícola (incluindo áreas urbanas). No primeiro, os nexos essenciais devem-se, sobretudo, a atividades de relação complexas e, no segundo, a atividades mais diretamente produtivas. (SANTOS, 2008a, p.9).

A marcha urbanizadora, ou interiorização da urbanização, resultou na constituição mais complexa da rede urbana brasileira4, com a participação de núcleos urbanos heterogêneos da hinterlândia, como pode ser observado no mapa da rede urbana brasileira (Mapa 1), desenvolvido a partir dos estudos da publicação Regiões de Influência das Cidades, 20075. Esse mapa evidencia que o padrão ocupacional do território deixou a sua reclusão histórica mais ou menos atrelada ao litoral, espraiando-se para o interior a partir, no que tange

4 Para uma visualização concisa e panorâmica do padrão da rede urbana brasileira na década de 1960, as suas transformações e a sua dinâmica recente ver Corrêa (2001).

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Esta pesquisa, publicada em 2008 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é a quarta versão dessa linha de pesquisa, interessada em atualizar, periodicamente, o quadro da rede urbana brasileira. As outras publicações foram lançadas em 1972, 1987 e 2000.

ao final do século XX e início do século XXI, da introdução de novas tecnologias e alterações nas redes técnicas, do aprofundamento da globalização da economia nacional e do avanço da fronteira de ocupação territorial (IBGE, 2008).

Mapa 1 – Mapa da rede urbana brasileira, 2007

Fonte: IBGE, 2008.

Essa configuração territorial, concernente às relações urbanas, só corroborou as considerações de Davidovich (1987): para a autora, o quadro urbano brasileiro relaciona-se a

um modelo, conduzido principalmente pelo Estado, de crescimento econômico e célere modernização, em que a indústria representa a principal base produtiva, a expansão do aparato tecnoburocrático e militar configura-se como sustentáculo da maximização do poder e a urbanização como principal estratégia e suporte material desse processo. Para além dos ditames internos, esse quadro urbano também tem que ser relacionado ao padrão econômico mundial, orientado pela expansão do capital global, estruturador de mercados, processos produtivos e relações de trabalho a partir de fluxos intensos de dinheiro e informação.

Nesse contexto, os novos rumos da política econômica envolveram: o reforço do circuito de reprodução e crescimento das metrópoles, principais locus de atuação das indústrias; a expansão urbana das cidades do interior, nós cruciais de apoio para uma difusão da atividade agrícola moderna, mecanizada, voltada para a exportação; e o recrudescimento demográfico da população urbana, em termos relativos, nas áreas de frentes pioneiras do Norte e do Centro-Oeste. (DAVIDOVICH, 1987). Esse novo padrão articulou mudanças no espaço urbano já consolidado, seja nas metrópoles ou na ascensão da importância de capitais estaduais e determinados centros regionais, bem como nos espaços urbanos em via de estruturação nas áreas de fronteira socioeconômica.

O processo de urbanização tem como expressão material espaço-temporal a cidade, sítio espacial que contém todo o amplo movimento para as transformações estruturais, bem como todas as decorrências e imposições advindas do cotidiano (SPÓSITO, 1993). Nesse sentido, o urbano se apresenta como a síntese da antiga dicotomia cidade-campo, um terceiro elemento surgido do esvaziamento da dualidade entre os espaços citadinos e o campo: é, pois, uma manifestação material e socioespacial da contemporânea sociedade urbano-industrial, estendida, virtualmente, para todo o espaço social, para todo o território, por meio do tecido urbano – isto é, pela configuração socioespacial coetânea com a qual a sociedade e o fenômeno urbano se revestem. (MONTE-MÓR, 2006).

De fato, a cidade, tanto em sua forma material quanto em sua organização social, configura-se como a fonte de conceitos centrais da vida contemporânea: da ideia grega de polis deriva o conceito de política, enquanto do latim civitas e civis derivam as noções de cidadão, cidade e civilização; ademais, o sentido de urbano também adveio do latim, a partir de urbanum (arado) – designando o senso de povoação ao referir-se aos sulcos produzidos pelos bois sagrados que demarcavam o território ocupado com os modos de produção e de vida dos romanos – e, a partir de sua simplificação semântica, dos termos urbe e urbs, referindo este a Roma, cidade-império e centro do mundo. (MONTE-MÓR, 2006).

Destarte, se o urbanum demarcava as fronteiras do Senatus Populusque Romanus (SPQR, “O Senado e o Povo Romano”, sigla e nome oficial do Império Romano), e, por consequência, do modo de vida romano – padrões de valores e comportamentos que se enquadravam naquilo que, naquele contexto espaço-temporal, se entendia por civilização –, é possível pensar, transpondo tal configuração para a contemporaneidade, que o modo de vida urbano detém, segundo a lógica hegemônica ou oficial, a codificação do que é civilizado e/ou moderno. Deste modo, a interiorização da urbanização brasileira implica ou indica, na verdade, uma interiorização da civilidade/ modernidade (ou, mais propriamente, de experiências da civilidade/modernidade); em outras palavras, aponta-se o avanço e a afirmação do não-sertão em detrimento de uma redução e negação (superação) dos sertões do território nacional.

É esta ideia da interiorização da (experiência da) civilidade/modernidade, orientada sobremaneira por indicadores socioeconômicos, que norteia a reportagem Especial Cidades: onde o Brasil mais cresce (Revista Veja, n.2180, 01 set. 2010). Dedicada à análise das cidades médias brasileiras – sendo assim consideradas, nesta reportagem, as cidades que, tomadas segundo um critério pragmático e meramente demográfico, possuem uma população entre 100 mil e 500 mil habitantes –, tal matéria do periódico considera que o universo de 233 cidades médias, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2010, responde, na atualidade, como a principal força motriz da economia nacional: no período 2002-2007, enquanto o Brasil cresceu, em média, 4% ao ano, as cidades médias cresceram, em média, 5,4% ao ano; esse maior dinamismo econômico, alavancado por pujantes parques industriais e pelo setor de serviços, configura-se como uma superação da histórica concentração de riquezas nos grandes centros urbanos, situados próximos ou ao longo do litoral.

A despeito de considerações reducionistas, deterministas e unilaterais acerca da medida do progresso local ser exclusivamente fornecida por indicadores quantitativos de crescimento demográfico e econômico, de acordo com a lógica de um capitalismo mercantil e financeiro extremo, a reportagem deixa entrever (ou quer fazer acreditar) que a modernidade, madura ou em curso, encarnada pelas cidades médias, tem alterado o arquétipo do interior subdesenvolvido e atrasado, fazendo com que tais cidades constituam-se, embora não se valha desse termo, em supostos polos de difusão de códigos civilizatórios e de estruturas modernas. O que subjaz aos elogios dos resultados da dinamicidade econômica é a reversão ou transcendência do simples modelo dualista centro-periferia – ou, em outros termos, da clássica dicotomia campo-cidade – em favor de um modelo articulado na complementaridade entre o urbano e o agrário/agrícola: o modo de vida urbano alastrou-se pelo território nacional,

como indicado anteriormente pela tendência já citada de difusão do tecido urbano nas sociedades contemporâneas urbano-industriais ou pelas considerações de Milton Santos sobre a mudança do padrão dualista Brasil urbano/Brasil rural para um novo paradigma, o do Brasil urbano/Brasil agrícola; por conseguinte, a simplificação da correlação campo/interior/atraso e cidade/capital/desenvolvimento perdeu inteiramente – para além das exceções que historicamente relativizaram tais relações – o seu valor explicativo da configuração e organização territorial e socioeconômica do Brasil.

A matéria especial do periódico faz uma defesa dos investimentos do setor privado, pautando-se na retomada de uma simplista linha evolutiva unívoca para os centros urbanos do país: o ápice da linha evolutiva – ou seja, o objetivo último enquanto patamar a ser almejado por todos os centros urbanos – estaria encarnado pelas metrópoles, estatuto designado, na reportagem, aos municípios que, tomados também segundo um critério pragmático e meramente demográfico, sem maiores considerações de indicadores qualitativos de ordem dinâmica, contariam com uma população superior a 500 mil habitantes. Assim, o crescimento econômico e demográfico, para além das questões políticas, ignoradas, representaria a obstinação necessária das cidades médias, como que vaticinando uma regra universal ou espécie de “meta vital” de que toda cidade média deseja tornar-se metrópole, valendo-se, para tanto, dos exemplos de pujança econômica – ao mesmo tempo em que advogam para si a manutenção de melhores indicadores de qualidade de vida – dos grandes centros urbanos. Em resumo, tornar-se metrópole seria, enfim, consoante a bandeira levantada pelo texto do periódico, alcançar o máximo de progresso e de desenvolvimento.

Sob esse pressuposto, essa matéria organiza dois universos distintos de centros urbanos, parcialmente designados como “Aonde o futuro já chegou” – constituído por vinte municípios elencados como os casos mais interessantes dentre as cidades médias do interior brasileiro – e os “5 exemplos a serem seguidos” – constituído por cinco novas metrópoles que aliam, segundo o periódico, o desenvolvimento socioeconômico com a qualidade de vida, configurando-se, pois, como modelos para as cidades médias. A espacialização desses vinte e cinco centros urbanos pelo território nacional pode ser observada no Mapa 2.

A respeito da suposta prosperidade das cidades médias elencadas, o Quadro 1 mostra cada um desses municípios a partir das qualidades socioeconômicas – em termos dos “Motores da economia” e da “Perspectiva” – que os individualizam e destacam no universo da hinterlândia nacional. No movimento rumo ao progresso, um dos principais sustentáculos de modernização desses centros urbanos teria sido, consoante a referida reportagem, a solidificação de uma estrutura social mais complexa, marcada pela ascensão da classe média:

Mais prósperos, esses centros urbanos com mais de 100.000 e menos de 500.000 habitantes passaram a contar com classe média sólida, apta a pagar por produtos e comodidades que antes eram oferecidos apenas nas metrópoles. Muitos deles, agora, dispõem de shoppings, cinemas, teatros e restaurantes que mimetizam o cardápio e a decoração dos paulistanos. Outros têm hospitais que realizam procedimentos complexos ou se converteram em polos de ensino superior. Nestes, formam-se batalhões de trabalhadores qualificados capazes de suprir empresas que desfrutam os atrativos do interior: terrenos mais baratos, mais qualidade de vida, impostos e salários menores que os das capitais. (COUTINHO, 2010, p.117).

Quadro 1 – Polos de desenvolvimentos do interior: motores da economia e perspectiva