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Reflexões sobre a noção de Sertão: o incógnito e o autêntico nas letras e ideologias da

S ERTÃO E L ITORAL NO PENSAMENTO SOCIAL E NA LITERATURA BRASILEIRA

2.1 Reflexões sobre a noção de Sertão: o incógnito e o autêntico nas letras e ideologias da

intelligentsia brasileira

A partir do entendimento histórico do Sertão, podemos vislumbrar a compreensão dos diversos caminhos assumidos para a construção da brasilidade, uma vez que, segundo Oliveira (1998), o sucesso das interpretações que versam acerca da singularidade brasileira a partir da conquista e ocupação do espaço é mais notório do que o sucesso porventura adquirido por interpretações que buscam construir o sentido da nacionalidade a partir dos eventos históricos. Assim, os ditames da conquista e ocupação do espaço incorporaram no

referencial sertanejo um código emblemático para pensar o país desde o momento da descoberta (ou “achamento”) do novo continente, quando o imaginário do Novo Mundo – e consequentemente do Brasil – foi edificado sob uma geografia fantástica, a partir de imagens extraordinariamente positivas, edênicas, ou terrivelmente ameaçadoras. Foi essa base interpretativa sobre os novos espaços que emergiu dos textos literários que buscavam dar conta da identidade do país.

A formação societária e estatal do Novo Mundo teve, pois, no domínio do espaço geográfico o seu sustentáculo genético, suplantando a busca das essências identitárias em passados mitológicos ou traços culturais pioneiros das raças fundantes – no caso brasileiro, os portugueses, os índios e os negros. Como a miscigenação étnica (ou racial, para ser fiel ao termo usado ao longo de grande parte da historiografia nacional) configurou-se como uma construção simbólica que mais problematizou do que solucionou as idiossincrasias brasileiras – isto é, produziu mais consciência da distinção do que da integração social –, a consciência do espaço e da territorialidade forneceu bases mais sólidas para a formulação de um projeto de nação. (OLIVEIRA, 1998). Dessa forma, pode-se melhor apreender a manutenção do ufanismo enquanto ideologia fundada no caráter natural/territorial, base do sentimento de identidade nacional.

Essa presença marcante do território enquanto mote definidor da nacionalidade brasileira nos permite apreender a ubiquidade da imagem do Sertão no pensamento social e na literatura nacional. Segundo Amado (1995), a ideia de Sertão configura-se como uma das categorias mais recorrentes ao longo da historiografia brasileira, sobretudo no período entre 1870 e 1940, quando adquiriu uma dimensão fundamental para a interpretação da nação brasileira. Na cultura, essa categoria também encontrou brechas favoráveis para a sua difusão, produzindo profundos ecos, sobretudo na seara artístico-literária, onde povoa obras desde a poesia e prosa românticas do século XIX (sobretudo em José de Alencar e Bernardo Guimarães), passando por escritores realistas e/ou naturalistas do final do Oitocentos e início do Novecentos (como Franklin Távora, Coelho Neto e Afonso Arinos), e da “geração de 30” (Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado etc.), até culminar em Guimarães Rosa. “A literatura brasileira povoou os variados sertões que construiu com personagens colossais, poderosos símbolos, narrativas míticas, marcando com eles forte, funda e definitivamente, o imaginário brasileiro.” (AMADO, 1995, p.146).

Souza (1997) e Lima (1999) também vão notar o caráter ubíquo de representações do Brasil a partir do Sertão – e, mais precisamente, a partir do dialogismo entre o Sertão e o seu contraponto, em geral identificado como Litoral.

Das retóricas narrativas do pensamento social brasileiro que qualificam o espaço físico e social da nação emergem representações nacionais cunhadas nesse dialogismo Sertão/Litoral. O tom ensaístico dos discursos interpretativos do Brasil reconhece estas denominações como categorias articulantes e classificações aptas a comunicar o processo permanente de formação nacional, configurando-se enquanto recursos nominadores capazes de ajudar na apreensão da estruturação do país. (SOUZA, 1997). Dotadas de uma centralidade cultural na formação e representação do Brasil, tais ideias incorporaram-se ao léxico dos discursos interpretativos do país, de modo que os mapas desenhados pela análise sociográfica brasileira apresentam, de modo corriqueiro, os divisores geográficos de Sertão e Litoral30, padrões descritivos de contraste entre partes distintivas que compõem o território brasileiro. “As clivagens políticas, sociais e econômicas, encontradas na observação da ‘realidade’ nacional, são inteligíveis, para os pensadores do Brasil, mediante esta bipartição geográfica e cultural do território nacional.” (SOUZA, 1997, p.39).

O que se tem é, portanto, uma tradição temática e uma perspectiva de interpretação social brasileira a partir das imagens de Sertão e Litoral. Nesse sentido, duas perspectivas opostas conviveram na sanha interpretativa/explicativa da brasilidade a partir dessas porções territoriais: a ideia de um país moderno no Litoral em contraposição a um país refratário aos ditames da modernização no interior, espaço da “barbárie” ou do “atraso” cultural; e a concepção de autenticidade do Sertão contrastante ao “parasitismo” e “superficialidade” litorâneos. (LIMA, 1999). Esta autora coloca que, enquanto matriz do pensamento e da interpretação de Brasil, a visão dualista das representações geográfico-sociais calcada no par Litoral/Sertão transformou-se em eixo central do processo de nation-building, tendo como objeto primordial o homem das regiões interioranas, quer fosse este tipificado como sertanejo, caboclo ou caipira31.

Assim, frente a esse “homem do interior”, o estranhamento foi uma constante em relação ao “outro” típico dos sertões nacionais, atualizando historicamente, sob a perspectiva do intelectual que detém a fala – e que, portanto, torna-se um legítimo julgador e propositor de mudanças –, o contraste entre o Brasil do interior e o Brasil litorâneo:

Imagens da sociedade brasileira que, por vezes, surpreendem pela sua semelhança, são construídas por intelectuais de épocas diferentes, formados segundo cânones distintos de trabalho acadêmico, mas que parecem compartilhar os mesmos

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Souza (1997) coloca, em nota, que: “As denominações de sertão e litoral são as mais utilizadas para identificar essas duas regiões [partes distintas que compõem o todo Brasil]. No entanto, também surgem outras nomeações equivalentes, tais como hinterlândia, interior, Oeste, correspondentes ao lugar sertão; e marinha,

costa para indicar o lugar litoral.” (SOUZA, 1997, p.83, grifos da autora).

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A respeito da vida dos caipiras, ver CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos meios de vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

sentimentos de estranhamento diante de seu lugar como intelectuais e em relação a esse ‘outro’ representado pelo homem brasileiro – visto como isolado, abandonado, doente, nômade, atrasado, resistente à mudança ou despossuído. (LIMA, 1999, p.32).

Esse contraste “Brasil litorâneo” versus “Brasil dos sertões” pode ser correlacionado a outras experiências históricas em que divisões geográficas assumiram um grande poder simbólico no âmbito das sociedades nacionais, atribuindo aos espaços subordinados – como o Sertão – versões positivas ou negativas, encarando o dilema do processo civilizatório ora como inevitável, ora como passível de algumas alternativas: “Podemos lembrar, entre outras, a linha divisória entre o Oeste e o Leste alemães, que mereceu a atenção de Max Weber, a questão meridional na Itália, tal como a abordou Antonio Gramsci, além da busca incessante da historiografia americana pela especificidade do Sul.” (LIMA, 1999, p.35).

Nos discursos dos intelectuais da sociografia, o Sertão oscila entre “problema insolvível” e “esperança resistente”, interessando enquanto fonte de “alimento material e espiritual para a nação.” (SOUZA, 1997, p.127) e encarado como polo de atenção para a missão de construção da brasilidade: “Urgência primeira entre as missões de construção do grande Brasil, a transformação do vazio de civilização pleno de riquezas é meta nomeada e definida de muitos modos nessas falas dos brasileiros.” (SOUZA, 1997, p.127).

Tentando penetrar nos recônditos do conceito de Sertão, a investigação das origens etimológicas desse vocábulo pode contribuir na apreensão de sua essência. Pautando-se no trabalho de Maria Elisa S. Mader (1995)32, Lima (1999) coloca que a palavra seria derivada do vocábulo “desertão”, sendo seu sentido estabelecido, de acordo com dicionários da língua portuguesa dos séculos XVI e XVII, a partir de duas ideias: um sentido espacial, atrelado à concepção de interior; e um sentido social, correspondente à noção de deserto, região pouco povoada33. No Brasil colonial quinhentista e seiscentista, o Sertão transcendia o sentido de uma delimitação espacial determinada e, mais do que em contraposição ao Litoral, esse vocábulo se impunha contra a ideia de região colonial, espaço ocupado pelo colonizador e dominado pela Igreja e pelo Estado enquanto instâncias de poder. Dessa forma, o Sertão aparecia como:

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MADER, Maria Elisa Noronha de Sá. O vazio: o sertão no imaginário da colônia nos séculos XVI e XVII. 1995. 104p. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.

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Em nota, a autora considera que: “Ainda que não exista consenso a respeito da etimologia da palavra sertão, a conotação de deserto e de tudo o que se encontra distante da civilização é bastante freqüente e duradoura no pensamento social brasileiro. Este ponto é sublinhado, por exemplo, na análise de Roberto Ventura sobre os textos elaborados por Euclides da Cunha, com referência às viagens por este realizadas a Canudos e à Amazônia.” (LIMA, 1999, p.57). Referenciada em Ventura, a autora coloca que o sertão euclidiano corresponde àquele que não integra a história ou o “espaço civilizado”, constituindo-se em terra de inversão de valores e lugar da “barbárie” e da “incultura”, locais ainda não sistematicamente cartografados e inventariados.

o território do vazio, o domínio do desconhecido, o espaço ainda não preenchido pela colonização. É, por isso, o mundo da desordem, domínio da barbárie, da selvageria, do diabo. Ao mesmo tempo, se conhecido, pode ser ordenado através da ocupação e da colonização, deixando de ser sertão para constituir-se em região colonial. (MADER, 1995, p.13 apud LIMA, 1999, p.58).

Em consonância a esta linha interpretativa, Amado (1995) argumenta que, desde o século XII (ou, certamente, desde o século XIV), o “sertão” (ou “certão”) referia-se a áreas situadas no interior de Portugal, mas distantes da capital, Lisboa. A partir do século XV, o uso desse termo se alastrou para designar os espaços “vazios”, interiores, dentro dos limites das áreas recentemente conquistadas ou contíguas a elas, mas sobre as quais pouco ou nada se sabia. Nesse momento histórico, no âmbito da formação do Império Colonial Português, as colônias portuguesas (como o Brasil) assumiram, além da concepção original lusitana – de espaços vastos, pouco habitados, longínquos e incógnitos – um novo sentido conceitual: eram “terras ‘sem fé, lei ou rei’, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza indomada, habitadas por índios ‘selvagens’ e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, legais ou religiosas, detinham pouca informação e controle insuficiente.” (AMADO, 1995, p.148). Esta concepção adquirida se aproxima muito, pois, das reflexões de Mader (1995) sobre o conceito de Sertão oposto à região colonial, acima referido.

Em Portugal, à medida que o império colonial foi ruindo, a categoria passou a conter, em termos oficiais semânticos, apenas a noção generalista de “interior”; no Brasil (e demais colônias), no entanto, o Sertão não se esvaziou de seu significado político. (AMADO, 1995). Esse “esvaziamento” semântico também foi notado por Lima (1999), a qual considerou a posterior tendência à naturalização do vocábulo, esgotando o termo em uma referência simplista a um espaço físico delimitado, apartando tal noção de sua riqueza simbólica inerente. Destarte, para além das áreas despovoadas da hinterlândia, duas outras conotações mostraram-se possíveis, desde o século XIX, para a compreensão reduzida e simplificada de “sertão”, no Brasil: na primeira concepção, próxima ao uso atual, os espaços sertanejos são associados ao semiárido do atual Nordeste brasileiro; na outra, também usual nos autores contemporâneos, associa-se o “sertão” a um padrão específico de atividades econômicas e modos de organização social, aproximando-o à “civilização do couro”.

Esta associação da vida sertaneja ao modo de vida pecuarista é ressaltada por egrégios autores do pensamento social, dos quais se pode elencar, entre outros, Capistrano de Abreu, Oliveira Vianna e Nelson Werneck Sodré. (SOUZA, 1997). Todavia, mais do que o modo de vida, um denominador comum para o termo “sertão” encontra-se na ideia de distanciamento em relação ao poder público e a projetos modernizadores, de modo a se configurar como um

dos polos do dualismo modernidade/atraso, sendo “analisado com freqüência como o espaço dominado pela natureza e barbárie. No outro pólo, litoral não significa simplesmente a faixa de terra junto ao mar, mas principalmente o espaço da civilização.” (LIMA, 1999, p.60). Este sentido simbólico e metafórico transmuta-se em um qualificativo que pode ser imposto a uma diversidade de lugares34, considerados os contextos históricos e a posição socioideológica de quem enuncia – em geral, um colonizador, que fala a partir do não-sertão.

Essa variação espacial (e temporal) dos locais qualificados como Sertão é uma das essências deste termo:

Se, para um habitante de Lisboa, o Brasil todo era um grande sertão, para o habitante do Rio de Janeiro, no século XVI, ele começaria logo além dos limites da cidade (por exemplo, na atual Nova Iguaçu), no obscuro, desconhecido espaço dos indígenas, feras e espíritos indomáveis; para o bandeirante paulista do século XVII ou XVIII, o sertão eram os atuais Minas, Mato Grosso e Goiás, interiores perigosos mas dourados, fontes de mortandades e riquezas, locus do desejo; para os governantes lusos dessas mesmas capitanias, entretanto, o sertão era o exílio a que haviam sido temporariamente relegados, em seus tão bons serviços prestados à Coroa... Variando segundo a posição espacial e social do enunciante, “sertão” pôde ter significados tão amplos, diversos e aparentemente antagônicos. (AMADO, 1995, p.149, grifo da autora).

Outras interpretações da origem etimológica do termo “sertão” se aproximam dessa noção de encarar tal referente ao local de exílio: Amado (1995) argumenta que, segundo Gilberto Mendonça Teles (1991)35, o termo proviria do latim clássico serere, sertanum (trançado, entrelaçado, embrulhado), ao passo que Vicentini (1998), pautando-se neste mesmo autor, completa que o termo “sertão” adviria de De-Sertum, supino de desere, significando “o que sai da fileira”, sendo incorporado pela linguagem militar para indicar aquele que deserta, que sai da ordem e/ou desaparece; assim, o substantivo desertanum passou a referir-se ao lugar desconhecido para o qual fora o desertor, promovendo uma nítida oposição entre

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Amado (1995) coloca que “durante a época colonial (à medida, portanto, que a colonização avançava sobre as terras), ‘sertão’ foi empregado para nomear áreas tão distintas quanto, por exemplo, o interior da capitania de São Vicente (Prado, 1961:234), a atual Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro (Santos, 1965:118), a Amazônia (Jobim, 1957:179), a cidade do Recife (Freyre, 1977a:147), a capitania de Minas Gerais (Goulart, 1961:49), as áreas contíguas ao Recôncavo Baiano, plantado com cana-de-açúcar (Brandão s.d.:28), o aldeamento indígena de Mossâmedes, no atual Goiás (Souza, 1978:12), e a ilha de Santa Catarina (Prado, 1961:337)!” (AMADO, 1995, p.149). Lima (1999) cita referências que compreendem, em parte, as listadas por Janaína Amado, além de outras identificadas ao longo de sua pesquisa: “Este sentido metafórico evidencia-se na diversidade de lugares e contextos em que a expressão foi utilizada: para nomear o interior da capitania de São Vicente (Prado, 1961, p.234); o Oeste paulista nas primeiras décadas do século XX (Figueirôa, 1997); a Amazônia (Rondon, 1915; Jobim, 1957, p.179); a cidade do Recife (Freyre, 1977b, p.147); a capitania de Minas Gerais (Goulart, 1961, p.49); a ilha de Santa Catarina (Prado, idem, p.337); áreas do Nordeste e Centro-Oeste brasileiros (Penna e Neiva, 1916); o Norte de Goiás (Albuquerque, Benchimol et alli, 1991); subúrbios da cidade do Rio de Janeiro (Peixoto, 1918).” (LIMA, 1999, p.60). Como não diz respeito à temática propriamente desta pesquisa, para maiores informações destes sertões elencados, consultar as referências citadas por tais autoras.

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TELES, Gilberto Mendonça. O lugar do sertão na poesia brasileira. In: LEROY, Silvia Menezes. Sertão: realité, mythe, fiction. Rennes: [s.n.], 1991. (mimeo.).

supostos “lugares certos” e “lugares incertos”, estes encarados sob a perspectiva do incógnito, do desconhecido e impenetrável. Ademais, ainda se pautando em Teles (1991), a autora observa que o adjetivo latino certum, componente da expressão domicilium certum, pode, a partir da forma que assumiu na língua portuguesa arcaica (“certão”), “haver contagiado a significação (não a forma) de desertanum como ‘lugar incerto’, sertão, vocábulo que aponta sempre para um sítio oposto e distante de quem está falando.” (VICENTINI, 1998, p.45, grifos da autora).

Portanto, repõe-se a ideia de uma ambivalência e flexibilidade situacional de uso do termo “sertão”, indicando uma duplicidade valorativa quando tal termo é empregado no âmbito do par Litoral/Sertão: o Sertão pode ser o polo negativo, indicando uma resistência ao moderno e à civilização, a partir de uma interpretação cunhada nos referenciais da “raça” e da natureza; ou o Sertão pode ser o polo positivo, foco da possibilidade de desenvolvimento de uma autêntica consciência nacional, uma vez que o Litoral seria encarado enquanto local da inautenticidade, antítese da nação. (LIMA, 1999).

No escopo do tratamento do fenômeno sertanejo, Amado (1995) encara o Sertão como uma categoria geográfica, entendendo-o como um predicável que se imputa a um conceito em sua relação com materializações espaciais/territoriais específicas – em outras palavras, a categorização do Sertão indica, no que concerne à ciência geográfica, uma referência espacial delimitada para este. Assim, talvez seja preferível tratar o Sertão como uma noção (ou, formalmente, um conceito), ao entendê-lo como uma representação mental de um objeto, destacando-se o seu aspecto informante, sob uma perspectiva abstrata. Sob esse ponto de vista, mais do que uma referencialidade material, o Sertão designa uma essencialidade qualitativa que pode referir-se a um conjunto mais amplo e concreto de localidades, sendo estas caracterizadas, a partir da ótica assumida, como uma ou mais categorias geográficas (território, lugar, ambiente, paisagem, região etc.).

É óbvio que a noção de Sertão, ao se considerar o constructo discursivo de emprego deste termo, não inviabiliza a referencialidade territorialmente demarcada e estabelecida; no entanto, ao encarar o Sertão como uma noção – e, nesse sentido, mais como uma categoria do pensamento do que uma categoria geográfica propriamente dita –, ficam resguardadas as suas características de flexibilidade e relatividade de referência aos espaços concretos.

Essa perspectiva se coaduna com as reflexões de Moraes (2009), para o qual o Sertão não se caracteriza como uma materialidade que resulta de processos naturais de modelagem de uma porção da superfície terrestre (como um bioma, um ecossistema, um compartimento geomorfológico etc.), nem, tampouco, como um espaço produzido pela sociedade (como uma

plantação, vila, cidade etc.): isso significa que o Sertão não corresponde propriamente a um compartimento fisiográfico – ainda que em sua qualificação predominem o ritmo e a força naturais – ou uma paisagem culturalmente elaborada, sendo mais apropriada a correlação dos espaços sertanejos aos “vazios demográficos” ou “terras desocupadas”. (MACHADO, 1995).

O que se coloca como sustentáculo, então, é a concepção de que o Sertão não se configura como um lugar (no sentido de designar prioritariamente uma materialidade terrestre localizável, passível de ser precisamente delimitada e cartografada), mas uma condição (um qualificativo básico imposto, implicando no processo de valoração de determinadas condições locacionais), revelando ser uma ideologia geográfica geralmente negativa:

Trata-se de um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes nesse processo. O objeto empírico desta qualificação varia espacialmente, assim como variam as áreas sobre as quais incide tal denominação. Em todos os casos, trata-se da construção de uma imagem, à qual se associam valores culturais geralmente – mas não necessariamente – negativos, os quais introduzem objetivos práticos de ocupação ou reocupação dos espaços enfocados. Nesse sentido, a adjetivação sertaneja expressa uma forma preliminar de apropriação simbólica de um dado lugar. (MORAES, 2009, p.89). Por estar mais afeito à ordem discursiva, o Sertão não possui uma precisão geográfica determinada. Nesse sentido, Normano (1945) vai refletir que o Sertão é um cenário invisível onde se dá o desenvolvimento brasileiro, resguardando, pois, seu caráter enigmático; assim, em termos locacionais, este intelectual vai dizer que o Sertão encontra-se onde a fronteira ainda não está: “a localização geográfica do sertão não é estável, mudando com o movimento ou deslocação da fronteira, produto do desenvolvimento econômico.” (NORMANO, 1945, p.8736 apud SOUZA, 1997, p.145). Argumentando em favor da dificuldade em estabelecer contornos geográficos precisos para o Sertão, Lima (1999) pensa-o como um espaço simbólico e ideia referida a características fundamentais na formação social brasileira, ligando-se ao processo de expansão da “fronteira civilizada”. Para a autora, o mais importante não é saber “o que os sertões de fato foram, são ou têm sido, mas por que essas representações têm início e como se tornam paradigmáticas para se pensar a natureza das sociedades e o tema da identidade nacional.” (LIMA, 1999, p.44).

Considerada essa dificuldade de expressividade da delimitação espacial do Sertão – condição que dificulta, também, o estabelecimento de suas particularidades –, o aspecto sertanejo vai figurar no pensamento social brasileiro sob uma “roupagem” alegórica, a fim de comunicar proposições acerca da nacionalidade, uma vez que os espaços sertanejos são uma parcela significativa da totalidade correspondente ao território brasileiro. Estabelece-se, pois,

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um Sertão genérico: “Deparamo-nos, então, com descrições macroscópicas do sertão como saídas de mapeamentos feitos à distância, de onde só se percebem impressões que