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2. CARACTERÍSTICAS E CONDIÇÕES DE FUNCIONAMENTO DO MERCADO ARTÍSTICO DA

2.2. C ONSTITUIÇÃO DA CLIENTELA , TIPOS DE ENCOMENDA E LOCAIS DE PRODUÇÃO

2.2.2. As oficinas nacionais e estrangeiras

Esboçados que estão o perfil sócio-económico dos comitentes e os tipos de encomenda, põe-se a questão da origem das peças, locais, autores e oficinas. Sabemos da existência da excepcional quantidade e qualidade de pintura flamenga, na sua maioria conservada no Museu de Arte Sacra do Funchal, que nos continua a chegar até sensivelmente à década de trinta do século XVI, período coincidente com o apogeu da produção açucareira. Bruges e Antuérpia são os centros de produção artística mais bem representados na ilha, com obras de Dieric Bouts, Mestre do Santo Sangue, Mestre do Tríptico de Morrison, Gérard David, Joos Van Clève, Jan Provost, Jan Gossaert, Marinus Van Reymerswaele e Pieter Coeck Van Aelst388, lista a que cremos também poder acrescentar a oficina de Quentin Metsys.

Na década de 40 do século XVI, continua-se a recorrer ao mercado flamengo, caso do quadro para a Confraria do Amparo da Sé datado de 1543, ou do desparecido retábulo mandado vir da Flandres por volta de 1546 para a capela da Piedade do Convento de S.Francisco389, mas começam a ser feitas aquisições em Lisboa, que acabará por se tornar o alvo preferencial das encomendas. Assim, uma das mais notáveis peças desta viragem de gosto e de mercado será o retábulo da matriz de Santa Cruz, atribuível a uma parceria lisboeta. Da oficina de Diogo de Contreiras terão saído os quadros da capela do Espírito Santo na matriz de Machico, um retábulo, hoje desmembrado, para a igreja do Campanário, e outro na capela da Madre de Deus, no Caniço. O retábulo da matriz da Ponta do Sol enquadra-se nas características do Mestre de Arruda dos Vinhos, e vários quadros da igreja

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Segundo as atribuições de Fernando António Baptista Pereira e Luiza Clode no catálogo Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, Edicarte,1997.

389 Foram pagos, pelos filhos de João Ferreira de Carvalho, 37000 réis e mais 3000 de frete e seguro de dívida de um retábulo vindo de Flandres e já colocado na capela de Nª Srª da Piedade do capítulo do Convento de S. Francisco, JRC, Testamento de João Lourenço Leitão, fls. 359 vº, 365. (Informação amavelmente cedida por Luís de Sousa Melo)

119 do Arco da Calheta são atribuíveis ao Mestre de Abrantes. Como vemos, são escolhidas as mais destacadas oficinas deste período.

As encomendas de pintura conhecem um incremento nas duas últimas décadas do século XVI, período excepcionalmente bem documentado e do qual sobreviveram peças de grande qualidade390. Muitas das referências documentais correspondem, no entanto, a obras entretanto desaparecidas nas remodelações subsequentes: há um pagamento de 40000 réis ao pintor para os retábulos da igrejas da Ponta do Pargo e do Estreito de Câmara de Lobos em1581; alvarás vindos em 1589 para o retábulo do Porto Moniz; as traças dos retábulos para as igrejas de Água de Pena e dos Canhas foram feitas por Mateus Fernandes em 1589; vieram provisões em 1590 para se fazer o retábulo da igreja de Câmara de Lobos, e em 1591 para se fazer capela-mor, retábulo e sacristia das igrejas de S. Jorge e da Tabua; veio um mandado do Bispo de 4000 réis para fixar e assentar o retábulo da igreja de S. Roque em 1596; foram enviados por Filipe II 70 000 reis em 1612 para o retábulo de Santo António da Serra e 140 000 reis em 1612 para a Calheta; o retábulo da Fajã da Ovelha, que ficou dourado em 1615. Consta ainda um mandado do Bispo de pagamento, em 1604, ao pintor Manuel Vieira relativo a pintura, ouro, traça e outras coisas necessárias para o retábulo S. Pedro.

Na actividade conhecida das confrarias também se nota o empenho em ornar de retábulos os seus altares: para esse fim, a confraria de Nª Srª do Rosário da Sé recebia do Bispo, em 1583, uma ajuda de 16 000 reis e a de S. Jorge tinha mandado fazer em Lisboa um retábulo em 1590. A Confraria do Santíssimo Sacramento tinha, em 1592, começado a dourar o retábulo. Várias confrarias mais pequenas se empenharam também em arranjar altares, como a Confraria do Senhor Jesus e Almas de S. Martinho, que compra um retábulo já usado em 1585 para o altar do Nome de Deus e entre 1591 e 1598 faz um retábulo. A Confraria de S. Martinho acaba de pagar em 1583 o imagem e retábulo de Nª Srª do Rosário e, em 1598, adquire um Painel das Almas. A Confraria de Nª Srª da Assunção de Ponta Delgada principia em 1619 um retábulo, que só ficará dourado em 1650. Também há notícia de um retábulo da Misericórdia de Santa Cruz que dataria de 1617. A única encomenda com explicitação do nome do pintor é para a capela do Senhor Jesus da Ribeira Brava, cuja confraria paga a Fernão Gomes 34 000 reis de pintar e dourar um retábulo feito em Lisboa, em 1588.

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Consulte-se o quadro «Referências a retábulos entre 1525 e 1650» no vol. II deste trabalho, pp.146-156, onde indicamos as fontes. Nem todas as referências se reportam a pintura, incluem também traças, execução e douramento da talha.

120 Acrescentamos algumas das inúmeras iniciativas particulares, para além das já referidas no capítulo anterior, lembrando António Rodrigues Canha, clérigo, que deixa foros da sua terça e 1000 reis para fazer um pequeno retábulo na Capela dos Anjos da Ponta do Sol, que segundo Gaspar Frutuoso era «fresco e bem ornado». Na demolida capela de S. Bartolomeu, Lançarote Teixeira de Velosa faz topos, retábulo dourado e outras obras em 1595. O cónego Vaz Corte deixa, em 1608, 20 000 reis para ajuda de um retábulo que estava a ser feito para a Confraria de Nª Srª da Candelária de S. Pedro.

Centrando-nos agora nas peças deste período que chegaram até nós, salientamos duas peças do Museu de Arte Sacra do Funchal atribuíveis a Francisco Venegas, S. Bento e S. Vicente, provenientes, povavelmente, da demolida capela de S. Sebastião. Um núcleo bastante representativo de peças são atribuíveis a Fernão Gomes: uma Ascensão proveniente da Confraria da Ascensão da Sé do Funchal, uma Nª Srª dos Remédios com doadores da demolida capela dos Remédios na Quinta Grande, uma Procissão de Nª Srª das Neves na capela das Neves, em S. Gonçalo, uma Assunção e Coroação da Virgem do Convento de Santa Clara do Funchal, um S. Lourenço na capela do Corpo Santo e, possivelmente também um Quo Vadis? (MASF), uma Lamentação sobre o Corpo de Cristo, hoje na igreja de Santa Luzia e o pequeno retábulo da capela da Quinta do Faial com uma tábua de Imaculada Conceição com Santa Ana e S. Joaquim e um Padre Eterno.

Próximas de Diogo Teixeira, estão as pinturas S. Bernardino de Siena e S. Boaventura, do Museu de Arte Sacra do Funchal, o Calvário do Coro Baixo do Convento de Santa Clara do Funchal e a Nª Srª do Socorro, da igreja do Socorro. Os modelos de Simão Rodrigues encontram-se em Nascimento de S. João Baptista, proveniente do Convento de Santa Clara (MASF) e nas duas tábuas do retábulo da capela dedicada a Santa Ana, nos Álamos.

Englobámos sob a genérica designação de «outras oficinas» a restante pintura, que, embora de produção nacional — o quadro de Santo Antão do Caniço, veio comprovadamente de Lisboa conforme alvará de 1589 — , não apresenta características marcantes de nenhuma das oficinas mais operosas nesta época, e ainda alguma pintura de produção local. A maioria das das peças estudadas neste subcapítulo estão deslocadas dos seus locais de origem: ou isoladas como a Nª Srª da Candelária da sacristia da igreja de igreja de S. Pedro e Nª Srª da Esperança (MASF); ou incluídas em arranjos eclécticos como as diversas peças da capela do Corpo Santo (S. Pedro Gonçalves Telmo e o conjunto com a Imaculada Conceição, S. Bernardo S. Lourenço e Cena Bíblica), as tábuas

121 provenientes das desaparecidas capelas dos claustros do Convento de Santa Clara (Cristo e Virgem, Santo António e S. Miguel Arcanjo hoje no MASF) e ainda o Padre Eterno e Degolação de S. Brás(?) da matriz do Porto Santo; ou dispersas, como as tábuas de Nª Srª do Leite e S. Domingos e S. Francisco da capela de Nª Srª da Candelária da Tabua (MASF). Deste núcleo há também pintura ainda no local de origem como o Pentecostes da capela da Consolação no Caniço e, embora já com intervenções, o Padre Eterno da capela de S. Paulo e todo o altar de Nª Srª da Consolação do Coro de Cima do Convento de Santa Clara.

A alteração no mercado artístico ao longo do final do segundo quartel de quinhentos, dá-se quer pela crescente oferta de oficinas portuguesas, que entretanto se afirmavam, quer pelas alterações da conjuntura local, onde houve um abrandamento no ritmo das construções e das encomendas, após o período de prosperidade do ciclo do açúcar, que coincide também, em termos políticos com uma maior concentração de esforços no Oriente e, em matéria de organização religiosa, com a circunstância de haver bispos não residentes ou fases de Sé vacante, o que não favorece nem empreendimentos de vulto, nem a continuidade de iniciativas391. Uma fase de recrudescimento da actividade artística dá-se com a aplicação sistemática das directrizes tridentinas por parte dos bispos D. Jeónimo Barreto e, sobretudo, D. Luís Figueiredo de Lemos e foi potenciada pelo empenho do próprio Filipe II. A nova conjuntura política justifica a vinda de pinturas de Michael Coxcie, pintor régio deste monarca, para o altar do Senhor Jesus da Sé do Funchal (1581). A presença de peças deste pintor flamengo com significativa obra no Escorial, testemunha o reactivar da ligação à Flandres, desta vez através da via espanhola, mercê da situação política que ligava então Flandres, Espanha e Portugal. Também nos parece terem existido laços com oficinas espanholas, como seja a de Vasco Pereira Lusitano, que trabalhou em Sevilha e a de Luís de Morales, que trabalhou em Badajoz, Cáceres e Alentejo, com as quais relacionámos, respectivamente, o quadro Nª Srª com o Menino e Anjos Músicos, da capela da Alegria, em S. Roque e o da Deposição da Cruz da igreja do Socorro.

A documentação do Cabido da Sé do Funchal dá-nos conta do papel que desempenhavam as pessoas encarregadas de cuidar, em Lisboa, dos negócios do bispado. Nuno Vares é um dos nomes que repetidamente aparece, entre 1589 e 1597, recebendo um

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Lembramos que só entre 1558 e 1563 se fixou pela primeira vez um bispo na ilha, D. Jorge de Lemos, e tal prática só se estabiliza com D. Jerónimo Barreto (1574-1585), a quem se segue D. Luís Figueiredo de Lemos (1586-1608) e D. Frei Lourenço de Távora (1610-1618, que residiu apenas de 1611 a 1617.

122 ordenado fixo de 10 000 reis por ocupar-se dos trâmites necessários para obter alvarás régios e provisões e, provavelmente, também das diligências para aquisições de retábulos e peças392.

Encomendar aos grandes centros era a solução numa ilha distante, para onde era difícil deslocar equipas de trabalho à altura das exigências dos comitentes e onde a vitalidade do comércio viabilizava, por seu lado, o acesso a esses centros e o transporte das peças. Havia, no entanto, alguma resposta local às necessidades do mercado, cujos contornos passamos a considerar.

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