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1.2. E SPECIFICIDADES DO CASO PORTUGUÊS

1.2.2. Principais oficinas e condições da produção pictórica

Durante a primeira metade do século XVI mantém-se ainda a integração dos pintores no esquema de aprendizagem e de trabalho de tradição medieval, com as obrigações gremiais semelhantes aos restantes oficiais mecânicos, e solicitados para execução das mais diversas tarefas: «eram executantes de retábulos de óleo, mas também douradores e estofadores de imaginária e marcenaria (caso de Jorge Afonso), debuxadores de quadros, de livros, de tapeçarias e de “divisas” nobres (caso de Cristóvão de Figueiredo), examinadores de ofício nas suas várias modalidades, iluminadores de nobiliários e missais, cartógrafos ou “pintores de cartas de marear”, policromadores de arcos festivos ou caixas de esmolas, fresquistas de “grotesco” ou de figuras, decoradores de proas de navios, avaliadores de retábulos, etc.(…)»118. A enumeração das diferentes solicitações de que era alvo o pintor, é feita por Francisco de Holanda de forma sistemática

118 Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo, Lisboa, Presença. 2002, p.84. Sobre as condições de trabalho nas oficinas de pintura e o funcionamento das parcerias ver do mesmo autor O Maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses; ainda de Vítor Serrão e Manuel Batoréo «O retábulo de S. Bartolomeu da Sé de Lisboa» in Garcia Fernandes, Lisboa, Museu de S. Roque, 1998, pp.97- 100; de Emília Matos e Vítor Serrão «A prática de atelier na pintura portuguesa da primeira metade do século

55 em Da Ciência do Desenho, onde discrimina tudo o que pode ser feito ao serviço de Deus, do rei ou da guerra e, para além disso, faz a apologia da indispensável cultura visual do próprio comitente, para «um entendimento do desenho e da pintura»119.

O trabalho produzido então nas oficinas pautava-se por um conceito de autoria distante ainda da individualização e da hierarquização de géneros que se viria a impor mais tarde, escassas são as obras assinadas, e eram prática corrente as empreitadas conjuntas e os trabalhos executados em parceria. A intervenção de diversas mãos e a consequente dificuldade em distinguir as contribuições específicas de cada participante, levou alguns historiadores a optar pela metafórica designação de nebulosa ao reportar-se a oficinas ou parcerias onde a marca do trabalho colectivo é mais evidente. Encontramos o termo aplicado sobretudo a conjuntos de obras que dão continuidade aos modelos de Gregório Lopes e, sobretudo, nas parcerias englobadas por Luís Reis-Santos na designação de «Mestres de Ferreirim», em virtude da encomenda para este convento feita a Cristóvão de Figueiredo, em que colaboraram Gregório Lopes, Garcia Fernandes, e seus ajudantes120.

Um trabalho mais recente acerca do retábulo de S. Bartolomeu da Sé de Lisboa reencontra este ambiente de parceria e resume assim a situação: « O estudo do ambiente de trabalho vigente em Portugal nestes anos de 1530-1550 é essencial para melhor se compreender o espírito das obras remanescentes e, também a fluida identidade das diversas “escolas” cosmopolitas que, de Lisboa, trabalham, para os quatro cantos do Império, muitas delas geradas no seio da oficina desse enigmático Jorge Afonso. É caminho que persiste por decifrar e que no caso da nebulosa Ferreirim se torna imperioso seguir: se Gregório Lopes (pintor e cavaleiro da Ordem de Santiago, com obras absolutamente identificadas: Charola do Convento de Cristo de Tomar, Santuário do Bom Jesus de Valverde…) escapará com o seu estilo mais pessoalizado a esse panorama geralmente colectivista, já as obras dos seus contemporâneos Garcia Fernandes, Cristóvão de Figueiredo, e também Jorge Leal e Brás Gonçalves, e ainda Afonso Gonçalves, Manuel André e os chamados Mestres de Arruda dos Vinhos (Cristóvão de Utreque?) e de Abrantes (Cristóvão Lopes?),

XVI» in Estudo da Pintura Portuguesa. Oficina de Gregório Lopes,pp.39-45; e de Myron Malkiel- Jimoursky, Pintura à sombra dos mosteiros, Lisboa, 1957.

119 Francisco de Holanda, Da Ciência do Desenho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, p. 37- 39.

120 «A nebulosa Gregório Lopes» é título de capítulo da obra José Alberto Seabra Carvalho, Gregório Lopes, Lisboa, Inapa, 1999, p. 101. Encontramos o termo em José Luís Porfírio, Vítor Serrão e outros.

56 se confundem muitas vezes entre si, precisamente por agirem no quadro de rígidas “parcerias”» 121.

Para além dos citados pintores destaca-se a figura de Diogo de Contreiras, activo de 1521 a 1565, que embora tendo também trabalhado em parcerias, tem um conjunto de peças que formam um corpus individualizável, marcado por um novo entendimento da da lição italiana e por uma expressiva utilização da plasticidade, da cor, da figura serpentinata e do escorço. Francisco de Campos, natural dos Países Baixos, que trabalha em Málaga e depois se fixa em Portugal, entre 1555 e 1580, é um exemplo de internacionalização, não só no seu percurso, como no diálogo entre as marcas antuerpianas e uma emergente linguagem maneirista, na sua decidida opção pela recusa do naturalismo, recorrendo a espaços distendidos e distorções anatómicas. Como ele, à escala das suas possibilidades e das regiões onde trabalharam, António Nogueira e Ambrósio Dias constituem exemplos de actualização de formulários, ainda por via indirecta.

O contacto directo com Itália, tanto nas suas novidades como nas suas antigualhas, torna-se imprescindível para a formação de um artista, na esteira do impulso humanista da corte de D. João III e de alguns mecenas mais esclarecidos122. Após a passagem por Roma de Francisco de Holanda, em 1538-40, cujos frutos ele vai transpor sobretudo para a tratadística, segue para lá António Campelo (act.1552-1586), que trabalhou nos círculos de Daniele da Volterra e seus colaboradores e assimilou a bella maniera. Se no regresso a Portugal não foi contemplado com cargos e encomendas oficiais, a sua qualidade não deixou de impressionar outros pintores que repetiram composições suas como Simão Rodrigues, Diogo Teixeira e outros. Gaspar Dias (act. 1560-1591), também formado em Roma, deixa bem patente na sua Aparição do Anjo a S. Roque (igreja de S. Roque, c.1584) os ecos de Parmigianino nos alongamentos e poses das figuras, na lateralização dos eixos perspécticos, e na teatralização das luzes. Ao contrário de Campelo, obteve os cargos de pintor dos Armazéns e Casa da Mina e da Índia e de examinador dos pintores de óleo e de têmpera.

O andaluz Lourenço de Salzedo (activo em Lisboa de 1564 a 1577, data da sua morte), pintor de D. Catarina, também estadeou em Roma, e bastaria a encomenda do retábulo do Mosteiro dos Jerónimos, para deixar claro o prestígio de que gozava perante a

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Manuel Batoréo e Vítor Serrão «O retábulo de São Bartolomeu da Sé de Lisboa. Garcia Fernandes numa obra de “Parceria”» in Garcia Fernandes. Um pintor do Renascimento eleitor da Misericórdia de Lisboa, 1998, p.99,100.

57 rainha. De cunho romanista, a sua obra é eivada de uma monumentalidade e de uma preferência pela forma cúbica de raiz miguelagelesca.

Francisco Venegas (†1594) formado em Sevilha com Luís de Vargas, e natural desta cidade, vem, após passagem por Roma, fixar-se em Lisboa, pelo menos a partir de 1578. Foi pintor régio do cardeal D. Henrique e de Filipe II (1583) e destaca-se pelo seu modo pessoal de organizar as diversas influências recebidas de Miguel Ângelo, de Spranger e de Vasari, pela segurança e desenvoltura do seu desenho e pela sensualidade de algumas das suas figuras.

As directrizes do decoro tridentino depressa disciplinam tais ousadias. A pintura do Padre Giuseppe Valeriano (1542-1596), a quem D. Henrique recorre em 1579, é exemplo cabal de como pôr o conhecimento dos mestres ao serviço da ortodoxia religiosa. Por seu lado, a recolhida piedade das obras de Luís de Morales (1515-1568), que trabalha em Évora, Elvas e Portalegre, encontrou eco em diversos pintores portugueses. Datam das duas últimas décadas de quinhentos e o início do século XVII grandes conjuntos retabulares, como o da capela-mor da Sé de Portalegre, o da igreja da Luz de Carnide, o da igreja do Carmo em Coimbra, o da capela da Universidade de Coimbra, que atestam o alinhamento por uma arte senza tempo de pintores como Fernão Gomes, Diogo Teixeira, Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão.

Diogo Teixeira (c.1540-1612) conseguiu superar, através do contacto com a obra de Venegas e de Gaspar Dias, a circunstância de não se ter deslocado Itália, sendo um dos mais operosos pintores do seu tempo. Também foi um empenhado defensor da nobreza da arte da pintura e da sua consequente desvinculação dos vínculos gremiais.

Fernão Gomes, nascido em Castela, fez a sua aprendizagem com Anthonis Blocklandt e fixou-se em Lisboa em 1573. De modo muito próprio, alia ao contributo nórdico a forma cúbica de Miguel Ângelo, bem como soluções de Zuccari e Tibaldi, entre outros. Teve o cargo de pintor régio a partir de 1594 e de pintor dos Mestrados das Ordens Militares em 1601, e a sua intensa actividade estendeu-se à ilha da Madeira.

Simão Rodrigues (c. 1560-1628), também estadeou em Roma, como foi confirmado recentemente123, colhendo no Oratorio della Confraternitá del Crocifisso modelos e assunto para futuras composições, a que somará ressaibos vasarianos e moralescos. Entre a muita e

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Vítor Serrão fez um recente balanço em «O Maneirismo na pintura portuguesa. Roma, os artistas e o seu contexto social» in Actas do Simpósio Internacional La Recepcion del Modelo Italiano en la Peninsula Ibérica durante el Renacimiento, Valladolid, 2003, a publicar.

58 desigual pintura que executou, de acessível leitura e em tudo cumprindo os requisitos devocionais trabalhou em diversas empreitadas em estreita colaboração com Domingos Vieira Serrão, constituindo assim um exemplo de continuidade das parcerias. Dificulta a delimitação do corpus da sua obra a quantidade de colaboradores e seguidores que teve — de novo uma nebulosa no dizer de Vítor Serrão —, cuja existência comprova a receptividade que tiveram as suas fórmulas.

Domingos Vieira Serrão (c.1570-1632) pintor régio de Filipe III, conhecedor da obra dos pintores italianos das campanhas do Escorial, revela-se mais seguro e erudito que Simão Rodrigues.

Amaro do Vale (c. 1550-1619), que passou por Roma e Milão e, de regresso, trabalhou em Espanha, foi pintor régio de Filipe III entre 1612 e 1619, e, exímio desenhador, mas com pouca pintura retabular conservada, situa-se já na fronteira do Maneirismo tardio com o naturalismo tenebrista.

Um outro pintor régio de Filipe II, de quem, embora não tendo trabalhado em Portugal, fazemos menção por ter obra na ilha da Madeira é Michael Coxcie (1499-1592), natural de Malines, discípulo de Van Orley em Bruxelas e estante em Roma entre 1531 e 1539124. Capaz de assumir a direcção da Real Manufactura de Tapeçarias de Bruxelas, de satisfazer numerosa obra retabulística e retratística, tem uma obra vasta que, sem perder o recorte flamengo, adopta, entre outros, modelos de Miguel Ângelo, Rafael, Tiziano. É significativo que também satisfaça a encomenda de Filipe II de uma cópia do Cordeiro Místico de Van Eyck, o que prova o prestígio que gozava a pintura desse velho mestre, em nada deslustrado pela concorrência das novidades italianas.

Esta breve súmula teve de deixar necessariamente de lado muitas das figuras activas entre o segundo quartel de quinhentos e o primeiro de seiscentos, para assinalar apenas os nomes mais marcantes da pintura portuguesa deste período. Deixa também visível a mobilidade dos pintores, nomeadamente entre Portugal e Espanha, área em que muito está ainda por esclarecer, como também sublinha o deslocamento para Itália, por via directa ou indirecta, do centro de gravidade da criação artística.

No que respeita à emergência da individualidade do autor ao longo deste período, assiste-se à passagem das parcerias colectivistas para outras formas de organização de

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Vítor Serrão «Simão Rodrigues em Roma. A influência do Oratorio del Crocifisso na pintura maneirista portuguesa», Promontoria-Revista do Departamento de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve, Ano I, nº 1, 2003, pp. 95-114.

59 trabalho, que, embora mantendo as empreitadas conjuntas necessárias para garantir o desejado andamento das obras, deixam espaço para a afirmação de personalidades distintas, dentro dos limites impostos pelas condicionantes da encomenda religiosa: é o caso das colaborações de Diogo Teixeira e Francisco Venegas em Carnide; de Fernão Gomes e Simão Rodrigues em Portalegre ou deste e de Domingos Vieira Serrão em Coimbra. As reivindicações individuais e colectivas em torno da alteração de estatuto dos pintores, ganham visibilidade com a criação da Irmandade de S. Lucas, em 1602, fundada por Fernão Gomes, Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão, com sede numa capela do Convento da Anunciada. As condicionantes locais não permitiram, no entanto, que esta Irmandade evoluísse para a formação de uma Academia de Desenho e Pintura, à maneira italiana,

Se o termo nebulosa se configura sem limite definido, não deixando no entanto de ser lida como um conjunto consistente, um outro termo é recorrentemente aplicado a obras não directamente imputáveis à mão de um determinado pintor, mas tributárias dos seus formulários. É o termo círculo, que circunscreve uma irradiação em volta de um centro, neste caso de uma personalidade mais vincada a que se reportam os seus colaboradores e seguidores. Ultrapassando a dimensão da oficina, o círculo, no entanto, não chega a ter a dimensão de uma escola. As oficinas mais solicitadas directamente com encomendas, funcionaram também como locais de formação e como paradigmas na produção do seu tempo, e tiveram assim maior poder de irradiação, pois os seus modelos compositivos espalharam-se pelo país, entre oficinas e mestres de presença menos marcante, mas de maior poder de penetração nos pequenos centros de periferia, adequando-se aos gostos e posses de clientelas locais.

Veremos agora, de toda esta produção artística, o que chegou às ilhas da Madeira e Porto Santo e em que circunstâncias.

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Na sequência do colóquio internacional realizado em Malines em 5 e 6 de Junho de 1992, foi publicada de Raphaël de Smedt, «Michiel Coxcie, pictor Regis (1499-1592)», Handelingen van de Koninklijke Kring voor Oudeheidkunde, Letteren en Kunst van Mechelen 96, nº2, Mechelen, 1993.

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2. Características e condições de funcionamento do mercado

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