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2. CARACTERÍSTICAS E CONDIÇÕES DE FUNCIONAMENTO DO MERCADO ARTÍSTICO DA

2.2. C ONSTITUIÇÃO DA CLIENTELA , TIPOS DE ENCOMENDA E LOCAIS DE PRODUÇÃO

2.2.3. Oficinas regionais

A existência de oficinas regionais, dentro das balizas cronológicas por nós trabalhadas, está, por enquanto, escassamente documentada, pelo que apenas se pode adiantar algumas hipóteses, cruzando informações dessa documentação com a presença de importações de obras de centros de produção nacionais e estrangeiros, e comparando com a situação de outras zonas distantes desses centros.

Se, como já vimos, os mercados da Flandres e, depois, de Lisboa, dominaram as importações de obras mais custosas, as pequenas necessidades do quotidiano tinham de ser resolvidas localmente. Por vezes, havia que recorrer a pessoas sem habilitação reconhecida, como comprova a decisão de autorizar um correeiro pintar as varas para a Câmara, datada de 30 de Outubro de 1546, que abaixo citamos: «Ha dita vereaçam veo Pero Delgado correiro e lhe foy encomendado que quisese pimtar as varas pera a camara e niso nom acresentase o preço daquelo aque ate ora custaram e por ele foy dito que elle as pimtaria porem que lhe era necessarjo fazer asy outras pimturas que hûus lhe pediam como rodelas e cousas de pouca sustancia [pedia] liçença de suas merces pera jso e pera com concerto dellase fazer ousas de que esta terra havia necesidade e pera que nom avia oficiaes e se temia levarem lhe a praça por nom ter carta de examinação e por os ditos ofyciaes foy dicto que era prol da cidade fazer elas e pimtar e nom era prejuizo porque nom ha obras forçadas senam que os homens faziam de sua vontade e que por jso lhe dauam licença e podia usar sem examinação visto como nam avia quem o examinase e disto se mandou fazer este asemto pera em todo tempo se ver que se lhe deu a licença desta maneira»393.

A esta data, faltavam, pois, oficiais de pintura que pudessem não só executar mas também examinar. Os dados que encontrámos no campo dos ofícios relacionados com as

392 AN/TT, Cabido da Sé do Funchal, Livro da Fºábrica da Sé, Lº 6, fl.190-237, passim 393 Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Primeira metade do século XVI., p. 370,371.

123 artes394, são já de 1576 em diante, e acusam uma flutuação da terminologia entre entalhador e imaginário, tal como entre dourador e pintor, que reflecte a fluidez de fronteiras entre os mesteres.

Vejamos os nomes que nos surgem com actividade referenciada até 1620, e aqueles que, mesmo referenciados depois dessa data, estariam, eventualmente, já então activos. A começar pelos imaginários, temos em 1576 o imaginário e entalhador Luís Ferreira, bem como Frei António de Estremoz, do Convento de S. Francisco, que vê as suas imagens serem reconhecidas como ortodoxas na Visita da Inquisição de 1591. Há ainda João da

Costa entre 1602 e 1611, data em que faz um conserto na sacristia da Sé, e Álvaro Luís

documentado a partir de 1603, que foi procurador dos mesteres em 1627, e morre em 1630.

Jorge Fernandes está documentado em 1617; José Fernandes de Morim, cuja data de

início de actividade é desconhecida, fez em 1631 o pagamento do foro de uma casa, fez parte da mesa da Misericórdia em 1643 e foi procurador dos mesteres em 1644 e 49. Em 1630 é pago o foro de uma casa de Álvaro Rodrigues pelos seus herdeiros.

Com a designação de pintores e douradores, que não teriam necessariamente actividade diferenciada, encontramos o pintor Jerónimo de Fontiveras, recebendo a quantia de 6 000 reis pelo conserto e pintura do retábulo de Santana, e 3 800 reis por pintar um crucifixo para a Ponta Delgada, em 1582. Diogo Gomes é um dourador documentado entre 1592 e 1598, a quem foram cometidas obras de grande responsabilidade. Aparece a trabalhar para a confraria de S. Tiago em 1592, ano em que era mordomo dela Zenóbio Acciaioli. Pouco tempo depois serviu de testemunha na redacção do testamento deste, o que nos leva a supor que, sendo da confiança deste fidalgo, lhe teriam sido entregues outros trabalhos como o douramento do retábulo da capela da Quinta da Boa Vista e a do capítulo do Convento de S. Francisco onde estava o jazigo da família395. Em 1594 é referenciado a limpar o retábulo do altar-mor, encarnar e estofar imagens na Sé, pintar e dourar o pé do círio pascal; e trabalhou também no douramento do retábulo da Confraria de Senhor Jesus e Almas de S. Martinho, que, por sua morte, em 1598, não pôde acabar. Não se conhece a actividade do pintor Francisco Moreira, que surge como proprietário de um escravo em

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Ver no vol. II deste trabalho o quadro cronológico «Referências a pintores, douradores e imaginários». Pp.166-174 e os mesmo dados ordenados alfabeticamente nas pp.157-165.

395 António Aragão, Para a História. do Funchal…, 2ª ed., p. 220 afirma, sem indicação de fonte: «Do século XVI só descobrimos, em 1593, um dourador que provavelmente teria dourado "o retabolo que esta em branco" na capela de Zenóbio Accaiuolli, a qual se situava no capítulo de convento de São Francisco». Cremos que se a fonte foi a que consultámos, o testamento de Zenóbio Acciaioli, redigido em 1593 e aprovado em 1598, o retábulo que estava em branco era o da capela do Santíssimo Sacramento da Sé, o que não invalida a hipótese de que ele tivesse dourado o da capela do convento. Como morreu em 1598 já não pode ter sido Diogo Gomes a acabar de dourar o referido retábulo da Sé.

124 1600 e como réu de uma contenda quatro anos depois. O dourador Jermão Dias encarnou uma imagem de Nª Srª e o Menino na capela da Graça, no Porto Santo, em 1600, e é referido também em 1611. João Catalão, também dourador, trabalha no retábulo de Santana em 1604 e, no mesmo ano, Manuel Vieira, pintor, recebe um pagamento do retábulo de S. Pedro. Domingues Nunes Teixeira, pintor, casou em 1610 e fez um contrato de aforamento em 1611. Domingos Ferreira, dourador, está activo em 1615. Em 1615 e 1616 uma série de telas na capela do Corpo Santo estão assinadas com um monograma ALVS (ou LSA ou LVS)396, iniciais que não correspondem a nenhum pintor ou dourador de actividade conhecida neste período. Rita Rodrigues pôs a hipótese, que nos parece plausível, de se tratarem das iniciais do imaginário Álvaro Luís. Não incluímos a análise das peças deste pintor no nosso trabalho, embora estejam dentro das balizas temporais que demarcámos, por apontarem já para alguma soluções tenebristas do protobarroco. António Dias, pintor, casou em 1624. Jorge Fernandes é mencionado em 1617. João Domingos, pintor, foi padrinho de um baptismo em 1645 e não sabemos se será o mesmo João pintor que fez, em 1620, um negócio de trigo. Há ainda o pintor Silva a dourar em 1633 um nicho na Misericórdia e o óbito de Jacques Rodrigues, pintor flamengo que morreu pobre em 1658. Deixaremos de parte alguns douradores que trabalharam no camarim da Sé do Funchal com o imaginário Manuel Pereira, como Manuel Duarte (doc.de 1637 a 1655) e Baltazar Gomes (doc. de 1644 a 1693), e os pintores Sebastião Barbosa (doc. de 1634? a 1648) que pinta um azulejo para a Misericórdia e Manuel Coelho (doc. de 1650 a 1655), pois parecem-nos ter desenvolvido actividade fora do âmbito cronológico que nos interessa.

São mais abundantes e muito mais antigas as notícias sobre ourives do que sobre douradores e imaginários, em parte devido à existência do Livro de Fianças dos Ofícios Mecânicos, de 1552-53. Assinalamos os nomes e datas de actividade e de óbito que conseguimos apurar397: em 1552 João Dias, Afonso Dias, Francisco Darmas (activo ainda em 1583), e Rodrigo de Unhate; em 1553 Sebastião Rodrigues e Tomé Gonçalves (†), Simão Barbosa (1557), Manuel Barbosa (1567-†1619), António Ribeiro (†1571),

Diogo Caldeira (1574-†1581), Tiago Caldeira (†1579), Francisco Dias (1583-†1634), Marcos Agostinho (1584-1651), Salvador Rodrigues (1584-1603), Pedro Gonçalves

396 O imaginário Álvaro Luís está activo nestas datas, e o monograma pode ler-se como as letras ALV de Álvaro entrecruzadas com LVIS. Rita Rodrigues na tese de mestrado de Martim Conrado…, Anexos, p.35. 397 Os dados que adiantamos em relação a ourives foram colhidos na diversa documentação e bibliografia por nós consultada, bem como no artigo de Fátima Freitas «Ourives madeirenses: séculos XVI a XIX», Islenha nº

125 (1591), Gaspar de Mendonça (1591), Bento Dias (1602), Tristão Ribeiro (1607),

António Ferreira (1611), Sebastião de Çea (1614), João Afonso Magalhães (1612), Faustino Dias (†1620), Diogo Coelho (†1631).

É importante referir a actividade na ilha dos mestres das obras reais e as suas intervenções em obras da diocese. A vinda de Mateus Fernandes para a ilha, ainda que ditada por necessidades defensivas que o saque de 1566 pôs a nu, não se confinou à actividade de fortificador nem só a projectos de arquitectura. Fez várias obras entretanto desparecidas, como o debuxo do sacrário do Caniço em 1583 e os retábulos para as igrejas dos Canhas e de Água de Pena em 1589 com «traças asi por debuxo como por escrito»398. Em 1591, depois de um temporal que levou parte das terras junto à igreja da Ribeira Brava, deslocou-se com outros oficiais ver que providências podiam ser tomadas. Também

Jerónimo Jorge, que lhe sucede em 1595, fez, no ano seguinte, a coluna do círio pascal da

Sé e, em 1604, as «traças e diligencias no sítio do seminário tocantes às casas episcopais»399.

O texto generalista das Constituições Sinodais do Bispado do Funchal, bem como o laconismo dos textos de Visitações no que respeita à produção de imagens, parece-nos poder ser lido como um dado significativo acerca da escassez de oficinas locais, que só a partir do final do 1º quartel do século XVII se teriam começado a desenvolver. Os pintores, no entanto, mantiveram-se temporalmente desfasados das reivindicações estatutárias dos seus congéneres lisboetas e socialmente equiparados a outros ofícios. É significativa a notícia que nos dá António Aragão400 de que, em 1696, foram multados imaginários, pintores, calafates e cordoeiros por não terem comparecido com a dança na procissão de S. Tiago.

Temos, pois, alguns nomes documentados, na maior parte dos casos citados a propósito de actos burocráticos que não nos elucidam acerca da sua actividade artística. Também não existem obras assinadas, à excepção do misterioso monogramista das telas do Corpo Santo. As obras que associámos a oficinas locais, como as predelas com S. Francisco e Santo António da capela da Consolação no Caniço, as pinturas do retábulo de Nª Srª da Assunção do Convento de Santa Clara, ou o Cristo e a Virgem provenientes deste convento que estão no Museu de Arte Sacra do Funchal, fizémos-lo por não se enquadrem

10, e Rita Rodrigues, ibidem, «Referências a imaginários, pintores, escultores, entalhadores, ourives do ouro, prateiros e fortificadores activos na Madeira no século XVII».

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AN/TT, Cabido da Sé do Funchal, Receitas e Despesas da Sé, Lº 6, fl. 147, 187, 200vº. 399 Ibidem, fl. 233, 279.

126 estilisticamente nos padrões das oficinas lisboetas. Julgamos que a actividade das oficinas regionais terá ultrapassado certamente a escassez que documentação escrita sugere. É de crer que outros pintores não documentados estivessem activos no período que estudámos e, decerto, muitas obras se perderam. Aos mestres locais eram solicitadas peças novas, mas também intervenções de conserto ou restauro em obras antigas, que com o passar do tempo se deterioravam. Tal como noutras zonas distantes dos grandes centros de produção teriam estado activos mais pintores e imaginários, respondendo às muitas solicitações esteticamente menos exigentes. Tanto no convento de S. Francisco, pois o exemplo de Frei António de Estremoz não deverá ter sido único, como no de Santa Clara, podem bem ter sido executadas obras de carácter devocional cujos autores não ficaram registados, que explicariam alguma da produção não atribuível a oficinas nacionais que chegou aos nossos dias.

Existiam, em suma, a par de encomendas de uma clientela com possibilidades de recorrer a Contreiras, ao Mestre de Abrantes ou a Fernão Gomes, outras soluções com programas iconográficos singelos e recurso à mão de obra local. O legado deste período sofreu, de um modo geral, sucessivas modificações provocadas ora pela incúria, ora pelas intempéries, ora pelas mudanças de gosto, apresentando-se-nos hoje disperso, alterado, degradado, tornando difícil a reconstituição da sua leitura original. É essa dispersão que passaremos a analisar, tentando recriar os laços desfeitos pelo tempo.

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3. Pintura na ilha da Madeira da introdução do modo de Itália ao

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