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ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Desde o final da década de 1970, o Brasil vem empreendendo importantes discussões no campo social e político, facilitadas pelo movimento de abertura política que culminou com a chamada Nova República, e também pelo processo de luta pela descentralização da Saúde, que configurou o Movimento da Reforma Sanitária, comentadas no tópico anterior.

Neste contexto social e político surge o Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira (MRPB), inicialmente protagonizada pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, (MTSM). Segundo Amarante (1995, p. 113) “é o ator e sujeito político privilegiado na conceituação, divulgação, mobilização e implantação das práticas transformadoras”. O Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira e o Movimento da Reforma Sanitária possuem “uma estreita vinculação, ambos tratam a saúde como uma questão revolucionária, no eixo da luta pela transformação da sociedade” (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2002, p. 13).

Precisamente na década de 1970, os movimentos de contestação, de críticas ao sistema de Saúde e os anseios por mudanças foram

muito fecundos, a sociedade brasileira clamava por reformas na assistência à Saúde Geral e na Saúde Mental. Havia muitas críticas a respeito da assistência psiquiátrica pública e privada, baseada exclusivamente no tratamento hospitalar e uma grande parte deles, ainda atuando como herança da era alienista, e funcionando de forma indigna (AMARANTE, 2003).

O Movimento da Luta Antimanicomial juntou os trabalhadores da saúde mental e pessoas da sociedade civil simpatizantes com a causa e exerceu também grande importância no processo da Reforma Psiquiátrica, mantendo um constante diálogo na luta contra o modelo manicomial de tratamento vigente (ANAYA, 2005).

A Lei Federal proposta pelo deputado federal Paulo Delgado (Projeto de Lei nº 3.657/89) foi um marco no avanço da Reforma Psiquiátrica, propôs o debate, discussões e medidas legais que asseguravam os direitos das pessoas com sofrimento psíquico, e dava vários direcionamentos de ruptura definitiva com o modelo asilar, por meio da redução progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos, tendo como conseqüência o seu fechamento definitivo e proporcionava outras providências na assistência psiquiátrica.

Obteve aprovação como Lei Federal nº 10.216 em 06 de abril de 2001, após sofrer várias modificações em seu texto original. Mesmo assim, foi considerada pelo Ministério da Saúde como “marco legal da Reforma Psiquiátrica, ratificou de forma histórica, as diretrizes básicas que constituem o Sistema Único de Saúde e possibilitou uma nova estratégia de atenção chamada a Atenção psicossocial” (BRASIL, 2004c, p. 6).

A Declaração de Caracas, aprovada em 14 de novembro de 1990, durante a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, constitui-se em um documento privilegiado de forças das organizações, associações, autoridades de saúde, profissionais de saúde mental, legisladores e juristas, no empenho de reestruturar a assistência em saúde mental, referendada pela Organização Pan-americana de Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OPAS, 1990).

O documento contém em seu texto, recomendações sobre a promoção de modelos alternativos, centrados na comunidade, com internações psiquiátricas realizadas pelo hospital clínico e compartilhamento com as redes sociais. Estabelecem como forma de cuidado e tratamento, o respeito à dignidade pessoal e os direitos humanos e civis.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica apresenta um percurso nos eixos teóricos de discussões críticas, Amarante (1995, p. 59) traça esse percurso e enfatiza o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) como “ator e sujeito político” no projeto da RP explicitado abaixo:

a) Movimento para a transformação da assistência psiquiátrica, crítica ao modelo oficial vigente, hospitalocêntrico (o hospital como o centro de tratamento). Denúncia aos maus-tratos a quem eram submetidas às pessoas em sofrimento psíquico. b) Criação de assistência alternativa, substitutiva à internação

psiquiátrica: proposta de desospitalização.

c) Crítica ao saber da Ciência moderna e do saber psiquiátrico, que penalizou o homem com a loucura.

d) Construção do processo de cidadania para as pessoas em sofrimento psíquico.

e) Os conceitos de desinstitucionalização, como processo de desconstrução e rupturas com a instituição psiquiátrica e sua lógica.

A partir dos momentos conceituais estabelecidos pela Reforma Psiquiátrica, pela Reforma Sanitária e pela noção de “processo social complexo”1

de Franco Rotelli (1990, p. 18). Amarante (2003, p. 48, 53) situa quatro

1 Um processo social complexo tende a mobilizar como atores os sujeitos sociais, tende a

transformar as relações de poder entre os pacientes e as instituições e produzir estruturas de Saúde Mental que substituam inteiramente a internação no Hospital Psiquiátrico.

dimensões conceituais do processo da RP, considerando as transformações e mudanças que ela indica em seu momento atual.

a) A primeira dimensão refere-se ao campo epistemológico ou

teórico-conceitual, situado no campo da produção do saber

sobre a loucura, produzido pela psiquiatria e pela Ciência. Enfoca a desconstrução desses saberes, embasados nos conceitos de alienação, normalidade, anormalidade, degenerescência e doença mental, e conceitos de isolamento terapêutico, tratamento moral e cura. Essa dimensão vai além dos conceitos da psiquiatria e dos conceitos fundamentais no campo das ciências como produtoras de Verdades. O sujeito, fora deste saber produzido e incompreensível, pode aflorar em sua alteridade.

b) A segunda dimensão técnico-assistencial propõe a construção

de uma nova forma de atenção substitutiva à da assistência asilar baseada no isolamento, na tutela, na custódia, na vigilância e na suposta periculosidade dos ditos doentes mentais. A construção da atenção nesses novos dispositivos terapêuticos deve proporcionar a construção da cidadania e a possibilidade de um olhar não alienante sobre o sujeito.

c) A terceira dimensão diz respeito ao campo jurídico-político,

redefinição de noções que associam a doença mental, à incapacidade, irracionalidade e irresponsabilidade civil. Para tal, é necessário revisão da legislação que enfoque os direitos civis, garantias sociais, políticas, de trabalho. Produção de relações sociais e civis tendo como base a cidadania.

d) A quarta dimensão é a sociocultural, expressão maior do

processo da reforma psiquiátrica e visa transformar o imaginário social referente à loucura. É o campo dialético para as transformações no processo histórico e social, o qual transformou a loucura num defeito, num desvio, em periculosidade social. Esta dimensão convoca a construção de uma outra relação social entre a loucura e a sociedade.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira, segundo o mesmo autor é um processo permanente de construção de reflexões e transformações que ocorrem a um só tempo, nos campos assistencial, cultural e conceitual. Segundo Rotelli (1990, p. 89) “a instituição que colocamos em questão nos últimos vinte anos não foi o manicômio mas a loucura”. É importante que a sociedade tenha conhecimento das transformações no campo da Saúde Mental, para evitar o desvirtuamento de sua essência por forças de interesses opositores dominantes e instituídos no corpo social.

1.4 A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA PARA A