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século XXI. In: NASSER, Salem Hikmat; REI, Fernando (Org.) Direito Internacional do Meio Ambiente.

1.4 O DIREITO DE ACESSO À ÁGUA NA HISTÓRIA DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

1.4.1 A Opção por um Antropocentrismo Moderado na Defesa do Bem Jurídico Água Potável

A expressão antropocentrismo tem origem greco-latina composta da palavra oriunda do grego anthropos, que significa o homem, e da palavra oriunda do latim: centrum, que significa o centro, o centrado. Até bem pouco tempo prevalecia o entendimento de que o homem ocupava o centro do universo e de que tudo o mais além dele gravitava ao seu redor, exercendo um papel, tão-somente, secundário, subalterno e condicionado.

Decerto, que a corrente antropocêntrica teve grande força no mundo ocidental em virtude das posições racionalistas, eis que se partia do pressuposto de que a razão é atributo unicamente do homem e por isso se constitui no valor maior e determinante da finalidade das coisas.

Não obstante, também a tradição judaico-cristã fortaleceu sobremaneira a difusão do pensamento antropocêntrico, eis que, logo no livro inaugural de suas Sagradas Escrituras – Gênesis, capítulo 2, versículo 27-28 –, apresenta que todas as coisas foram criadas para o homem e para que sobre elas exercesse seu domínio119.

Assim, o relacionamento homem-natureza era reforçado por uma interpretação deturpada das Sagradas Escrituras, que fomentava o entendimento de um relacionamento de sobreposição do homem em relação à natureza e seus bens. Talvez, por isso, François Ost120

tenha colocado as três grandes religiões – judaísmo, cristianismo e islamismo – como colaboradoras da dessacralização da natureza.

Tal visão foi ainda reforçada com o advento do renascimento, entre os séculos XV e XVI. Isso porque, durante aquele período, muito embora o homem ocupasse o centro do universo não por determinação divina, reconheceu-se que esse encerrava em si um valor que o diferenciava das demais coisas criadas, justamente por ser um ser pensante e dotado de razão. Isso justificava, por exemplo, a utilização em larga escala dos recursos ambientais para promoção do desenvolvimento tecno-científico e para o alargamento da produção de riquezas artificiais, sem qualquer controle e preocupação com a possível finitude de tais bens.

119 BÍBLIA Sagrada. 62. ed. São Paulo: Ave Maria, 1988. Em seu capítulo 1º, versículos 26-29, do livro do

Gênesis: “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra. Deus criou o homem e a mulher. Deus os abençoou: ‘Frutificai, disse ele, e multiplicai- vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”.

120 OST, François. A natureza à margem da lei: ecologia à prova do direito. Tradução Joana Chaves. Lisboa:

Somente mais recentemente, começou a surgir teorias visando à correção da distorcida visão de que todas as coisas foram criadas para o homem, independentemente da forma com que esse as administra e utiliza. Para tanto, contribuiu sobremaneira o reconhecimento de que os recursos ambientais são finitos, em que pese o fato de muitos deles serem encontrados abundantemente no planeta, a exemplo da água.

De certo modo, o biocentrismo abalou a soberania do antropocentrismo na medida em que concentrou grande ênfase no valor da vida em seu sentido mais amplo, e esse passou a ser um referencial inovador para as intervenções do homem no mundo natural.

Avessa à concepção de que o planeta Terra é mero celeiro de recursos à disposição das variadas e infinitas necessidades humanas, o ecocentrismo finca seus alicerces na aceitação explícita da idéia de que o mundo não existe apenas para o homem e de que a vida, e todos os aspectos a ela inerentes, deve ser o valor mais expressivo do ecossistema.

Segundo Milaré e Coimbra121, o ecossistema planetário tem um valor que lhe é

intrínseco por força do ordenamento do Universo e isso lhe assegura a tutela do direito independentemente das avaliações e dos interesses humanos. Nesse jaez, os seres não- humanos não podem ser sujeitos de direitos e deveres, uma vez que, pelo simples fato de existirem e comporem o quadro do mundo natural essencial à vida, todavia, esses mesmos seres não-humanos constituem objeto de direito dada à inter-relação existente entre eles e o homem.

Cumpre salientar que não basta a tutela do ambiente sob o fundamento notadamente utilitarista, ou melhor, como um objetivo decretado pelo homem para seu exclusivo benefício, mas a tutela do ambiente a partir do reconhecimento de ser esse dotado de um valor em si mesmo e não como objeto122. A partir desse reconhecimento justificar-se-á, por exemplo, a

interferência penal às condutas humanas que ameaçam o equilíbrio do ecossistema, pois não há que falar em vida dissociada dos elementos que a compõem e que lhe são indissociáveis.

Verifica-se, assim, que ainda não há supremacia da visão econcêntrica sobre a antropocêntrica, porquanto a importância da tutela do meio ambiente ainda encontra justificação na idéia de sua indispensabilidade à vida e à saúde humana. Afinal, ainda se

121 MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo, ano 9, n. 3, out/dez. 2004. p. 19.

122 Visão essa defendida por Hinkelammert, para quem a reprodução material da vida humana é a última

instância de toda a vida humana e, portanto, de sua liberdade. O homem morto – ou ameaçado de morte – deixa de ser livre, independentemente do contexto social em que vive. Assim afirma que “O meio ambiente não é um fim em si, mas a mediação material imprescindível da reprodução da vida humana em seus termos materiais”. (HINKELARMMERT, Franz J. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 91-92).

considera o homem o valor-fonte de todos os valores, conquanto não mais subsista a idéia de que a variante ecológica é algo meramente simbólico e relativo.

De fato, o meio ambiente é uma realidade concreta de seres concretos que existem e se relacionam entre si, em processo ininterrupto de interações, formando uma rede ou cadeia, da qual o ser humano é apenas um entre, e com, os demais seres. No entanto, não se pode negar que desponta o homem como principal sujeito do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Assim, por ser o homem o principal sujeito dos benefícios ambientais é que a ele se impõe o dever de preservá-los valendo-se, para tanto, do direito, do processo de judicialização. Ademais, ao ser erigido à categoria de direito fundamental, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é atribuído à pessoa individualmente, em que pese ser um direito de natureza difusa.

Guilherme Figueiredo123 considerando a necessidade da adoção de uma visão

antropocêntrica moderada em se tratando da tutela penal do meio ambiente, afirma que: [...] só será típica a conduta quando expuser a perigo, por meio da afetação de elementos naturais, algum daqueles interesses humanos coenvolvidos: vida, integridade física, patrimônio, economia, segurança, bem-estar, conservação das formas físicas, geológicas, geomorfológicas e biológicas etc. Torna-se claro, a essa luz, que a afetação do equilíbrio dos sistemas naturais e a afetação daqueles interesses humanos não são coisas distintas, na justa medida em que o interesse por um meio ambiente equilibrado só possui dignidade penal enquanto interesse poli- instrumental à satisfação de necessidades do homem (considerado aqui na sua dimensão de ser social). Vale por dizer: são interesses entrecruzados numa mesma

linha de ataque. Por outro lado, também parece claro que uma tal concepção não se confunde com o antropocentrismo radical de Frankfurt, porque não restringe a punição somente a casos em que a conduta afeta diretamente a vida ou a saúde das pessoas.

A par disso, faz-se mister reconhecer a necessidade de se evitar tanto o exagero de uma postura puramente antropocêntrica, despida da consciência de que o meio ambiente detém um valor em si mesmo, como também evitar uma espécie de totalitarismo biocêntrico que negue ao homem a primazia no exercício de direitos em relação aos demais seres criados.

Para Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas124 faz-se necessário

conciliar as duas correntes, de modo que nem pode o meio ambiente ser autônomo, sem qualquer finalidade para o homem, nem tampouco considerado algo a ser destinado pura e simplesmente à satisfação dos desejos dos seres humanos.

123 FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Crimes ambientais à luz do conceito de bem jurídico-penal:

(des)criminalização, redação típica e (in)ofensividade. São Paulo: IBCCRM, 2008. p. 253.

124 FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Crimes contra a natureza: de acordo com a

Antunes125 também corrobora com o presente entendimento ao asseverar que:

A incorporação da tutela dos ecossistemas no texto constitucional implica, efetivamente, uma profunda alteração do próprio conceito de sujeito de direito não antropológico, muito mais “incrível” é a inclusão do biocentrismo como novo conceito central do direito. Obviamente, não se trata de uma superação dos conceitos antropocêntricos ou biocêntricos, mas, pelo contrário, um reconhecimento de ambos como sujeitos de direito, e mesmo o reconhecimento de que, no interior de um determinado ecossistema, é possível a titularização de direitos por “sujeitos abióticos”.

Faz-se necessária, portanto, a conjugação das duas visões, eis que impende o reconhecimento de que o meio ambiente natural detém um valor em si mesmo, porém, na medida em que compete ao homem valorar todas as coisas, não se pode ignorar que no processo de valoração o próprio homem, inevitavelmente, o fará conforme suas necessidades e o ideal de ver preservada a sua dignidade.

Conforme Suzani Souza e Carlos Eduardo Souza126, mesmo que se fale em ecologia, é

sempre humano falando, por isso, uma vez que o homem é o construtor do discurso, ele não pode dizer do ponto de vista da natureza, pois a linguagem que conhece é constituída por ele mesmo. Não obstante assevera:

Bem, sabemos que a ciência é construída pelos seres humanos! Sendo assim, é inevitável que se fale na posição humana. Nesse enfoque, o antropocentrismo, pela sua inerência humana, é e certamente nunca deixará de ser contemporânea, pois é o homem e a mulher falando na sua própria posição [...]. Quando se coloca num texto “a água ferve”, essa observação só foi possível pela existência desse ser que observa. Foi nessa atmosfera de confluência de juízos de valor acerca do meio ambiente que a Constituição Federal, em seu artigo 225, erigiu o meio ambiente ecologicamente equilibrado à categoria de direito fundamental. Tal reconhecimento contribuiu para que atualmente se pudesse falar na existência de um bem jurídico ambiental ou, até mesmo, do meio ambiente como bem jurídico penal.

Assim sendo, a água potável, elemento indispensável à vida de todo o ecossistema, é reconhecida como bem jurídico, cujo acesso e disponibilidade entre todos os indivíduos se impõem como autêntico direito subjetivo. Sua importância encontra respaldo na convicção firmada de que sem água é impossível a vida no planeta, ou melhor, a vida humana e o equilíbrio entre as diversas formas de vida existentes na Terra.

125 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 76.

126 SOUZA, Suzani Cassiani de; SOUZA, Carlos Eduardo Pillaggi de. Se a linguagem e os pensamentos são

humanos... é possível fugir do antropocentrismo? In: (Org.) BRÜGGER, Paula et al. Tecendo subjetividades