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ORDEM, SEGURANÇA E INSTABILIDADE POLÍTICA (ZONA NORTE E CENTRO)

8.1. Indicadores estruturais

Indicadores estruturais normativos

A situação da ordem e segurança públicas nas Zonas Norte e Centro têm em comum o facto de em ambos os casos se estar perante uma insubordinação contra o Estado, no primeiro caso através de um fenómeno de insurgência que tem por base a radicalização islâmica dos seus membros e no segundo uma luta intrapartidária da RENAMO que resvalou para ataques a alvos civis.

Imagem 4: Vista Parcial de uma casa queimada no distrito de Palma, Cabo Delgado (DW).

De acordo com o disposto no artigo 39 da CRM, todos os actos visando atentar contra a unidade nacio-nal, prejudicar a harmonia social, criar o divisionismo, situações de privilégios ou discriminação com base na cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, condição física ou mental, estado civil dos pais, profi ssão ou opção política, são punidos por lei. Na sequência desta disposição constitucional, o Código Penal, aprovado pela Lei n.º 15/2014, de 31 de Dezembro, vigente no período a que se reporta o presente relatório, prevê uma diversidade de crimes que enquadram em termos jurídico-penais os actos praticados no Norte e Centro do País, dos quais se destacam os crimes contra o Estado, nomeadamente, crimes contra a segurança do Estado, tais como os crimes de alta traição, previstos e punidos com a pena de 20 a 24 anos de prisão maior112; conspi-ração113, cuja pena varia entre prisão simples de seis meses a dois anos e prisão maior de dois a oito

112 Cfr. Art.º 362 do CP 113 Cfr. Art.º 364 do CP

anos; espionagem114 e danifi cação de obras militares115, ambos puníveis com pena de prisão maior até 16 anos; para além do cometimento de crimes contra pessoas e bens, tais como homicídio voluntário116 ou qualifi cado117 e crimes hediondos118, puníveis com pena até 24 anos de prisão maior, conforme for o caso; ofensas corporais119, puníveis com pena que pode variar de seis meses até ao máximo de 1 ano de prisão; e coacção física120, cuja pena pode variar de um mês e um ano de prisão.

Imagem 5: Aldeia destruída em consequência dos ataques em Cabo Delgado (DW)

No plano regional africano, Moçambique é membro da Convenção da União Africana relativa à Pre-venção e Combate do Terrorismo e o Protocolo da ConPre-venção da União Africana relativa à PrePre-venção e Combate ao Terrorismo, que, entre outros fundamentos, assentam na necessidade de promoção de valores morais e direitos humanos baseados na tolerância e rejeição de todas as formas de terrorismo e respectiva motivação, bem como o incremento da cooperação dos estados africanos na prevenção e combate ao fenómeno do terrorismo.

114 Cfr. Art.º 366 do CP 115 Cfr. Art.º 355 do CP 116 Cfr. Art.º 155 do CP 117 Cfr. Art.º 157 do CP 118 Cfr. Art. 160 do CP 119 Cfr. Art.ºs 170 e seguintes do CP 120 Cfr. Art.º 197 do CP

8.2. Indicadores processuais

Nos termos do conceito que se tem vindo a seguir, os indicadores processuais indicam o nível do esforço humano, financeiro, organizacional e material, com vista a dar cobertura às necessidades de realização de direitos humanos. No quadro da instabilidade militar, escusado é referir que o bem jurídico mais importante a proteger é o direito à vida e integridade física dos cidadãos, por força do disposto no artigo 40 da CRM, segundo o qual todo o cidadão tem direito à vida e à integridade física, sendo que o artigo 56, também da CRM, dispõe que os direitos e liberdades individuais são garantidos pelo Estado, o que quer dizer que compete ao Estado proteger o cidadão contra os ataques terroristas.

Do ponto de vista do esforço humano, pode-se dizer que o envio das FDS, nomeadamente, as Forças Armadas e a PRM121, incluindo a contratação de uma Empresa de Segurança Russa, é um indicador da preocupação do Estado em defender pessoas e bens contra os ataques nas zonas Centro e Norte.

Contudo, paira em alguns círculos nacionais e internacionais o sentimento de Moçambique não tem uma Estratégia Nacional de Resposta ao Terrorismo. Segundo o Departamento de Estado, “Moçambique não tem uma estratégia contra o terrorismo para guiar as operações no Norte e as agências de manutenção da lei não possuem treino, equipamento e capacidade global para detectarem e impedirem proactivamente actos de terrorismo”122.

A conclusão do Departamento de Estado Americano, segundo o qual “a segurança das fronteiras perma-nece um desafio de segurança significativo para Moçambique”, aponta, por exemplo, a Tanzânia com “um ponto de trânsito e recrutamento para organizações terroristas e criminais”, com base em alguns estudos realizados no terreno. Tais estudos apuraram o facto de que nos estágios iniciais de implantação dos insurgentes em Mocímboa da Praia, diversos estrangeiros, vindos do Uganda, Tanzânia e Grandes Lagos, entraram no País e usaram, entre várias estratégias, os laços de casamento com cidadãs nacionais para se integrarem socialmente, o que demonstra a vulnerabilidade do País à entrada descontrolada de estrangeiros no território nacional123. Conforme escreve Nuno Rogério, As mesquitas e madraças de Cabo Delgado passaram a ser grandes centros de discussão teológica com consequências sociais e, no fim, políticas, com o período 2013‑2016 a ver chegar muitos pregadores que tinham contactado com grupos militares jihadistas do Quénia, dos Grandes Lagos, da Arábia Saudita, da Líbia e do Sudão, da Argélia e da Somália124.

Os estudos existentes em Cabo Delgado sugerem falhas graves ao nível da inteligência policial e militar ao longo dos anos que precederam o primeiro ataque a Mocímboa da Praia, uma vez que os avanços da radicalização islâmica em algumas mesquitas e madraças foram dados a conhecer às autoridades, as quais trataram a questão com alguma leviandade125. Com efeito, pesquisadores que trabalharam no terreno encontraram evidências de que este grupo começou as suas investidas em 2010 na forma de movimento religioso que pretendia introduzir mudanças na interpretação do alcorão, mas que a partir de

121 Jornal DW. Moçambique: Governo Reforça Comando Operacional de Combate a Grupos Armados, www.dw.com/ pt-002/moçambique-governo-reforça-comando-operacional-de-combate-a-grupos-armados/a-44166825

122 DW. Moçambique sem Estratégia para Combater Terrorismo, diz Departamento de Estado Americano, disponível em www.voaportugues.com/a/moçambique-sem-estratégia-para-combater-terrorismo-departamento-de-estado/5476289. html (11.06.2018)

123 HABIBE, Saide, FORQUILHA, Salvador e PEREIRA, João. Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique. O

Caso de Mocímboa da Paira, IESE, Cadernos IESE N.º 17/201, p. 15-17.

124 ROGÉRIO, Nuno. O Cabo do Medo. O Daesh em Moçambique. Junho de 2019 – 2020, 1.ª Edição, D. Quixote, Alfra-gide, p. 39.

125 HABIBE, Saide, FORQUILHA, Salvador e PEREIRA, João. Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique. O

2015 alterou a sua estratégia de actuação, passando a criar células militares, que culminaram no ataque de 5 de Outubro de 2017.

Imagem 6: Distrito de Palma, o epicentro dos ataques em Cabo Delgado

Em 2019, Moçambique começou a envidar esforços com vista à aprovação de instrumentos orienta-dores de resposta ao terrorismo, como é o caso do Maputo Roadmap126, actualmente em processo de desenvolvimento em colaboração com a UNODC. Aponta-se também a existência de diversos contactos militares com a Rússia, através dos quais o Ministério da Defesa Nacional solicitou, formalmente, apoio a 4 de Abril de 2018, para o envio de conselheiros de defesa e segurança no âmbito dos protocolos de Cooperação Técnico-Militar celebrados em 2015 e 2016127. Dentro da União Africana e da SADC não existem registos de em 2018 e 2019 terem sido accionados os mecanismos de cooperação para a preven-ção e combate ao terrorismo existentes.

A motivação do terrorismo em Cabo Delgado é multifacetada indo para além de questões religiosas, uma vez que os estudos no terreno sugerem a infl uência de questões étnicas e socioeconómicas128. Por causa desta natureza multifacetada, há um entendimento de que a prevenção e o combate ao terrorismo em Cabo Delgado devem incluir medidas de política pública que responda às motivações socioeconó-micas do confl ito129. Estes posicionamentos conformam a visão integrada dos direitos humanos, que defende a indivisibilidade e interdependência dos direitos civis e políticos e os direitos económicos, sociais e culturais.

126 UNDC and Mozambique discuss Trategic Roadmap Against Transnational Organized Crime, Drugs and Terrorism, www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2019/September/unodc-and-mozambique-discuss-a-comprehensive-strategic -roadmap-against-transnational-organized-crime--drugs-and-terrorism.html

127 ROGÉRIO, Nuno. O Cabo do Medo. O Daesh em Moçambique. Junho de 2019 – 2020, 1.ª Edição, D. Quixote, Alfra-gide, p. 123.

128 João Feijõ. Jornal DW. Cabo Delgado: Estudo aponta pobreza como causa de ataques, Observatório do Meio Rural, https://www.dw.com/pt-002/cabo-delgado-estudo-aponta-pobreza-como-causa-de-ataques-armados/a-49658029 129 SITOE, Rufi no. Jornal DW. Resposta aos ataques em Cabo Delgado passa por políticas públicas, defende

investi-gador www.dw.com/pt-002/resposta-aos-ataques-em-cabo-delgado-passa-por-políticas-públicas-defende-investi-gador/a-54716638; Jornal Observador. Terrorismo em Moçambique só pode ser Resolvido com Confi ança entre Comunidades Local e Políticos, disponível em https://observador.pt/2020/05/16/terrorismo-em-mocambique-so-pode-ser-resolvido-com-confi anca-entre-comunidade-local-e-politicos-dizem-especialistas/ (16 de Maio de 2020).

Constatação

Os esforços do Governo na manutenção da ordem e segurança pública em Cabo Delgado são no-tórios e de louvar. Contudo, no plano dos indicadores processuais das obrigações do Estado de proteger o direito à vida, integridade física e propriedade das populações, os estudos disponíveis demonstram algumas falhas, conforme atrás identificadas, sendo a mais notória a aparente falta de uma estratégia de prevenção e combate ao terrorismo. Com a excepção do UNODC, Moçambique parece ter desperdiçado as janelas de cooperação internacional na prevenção e combate ao terroris-mo decorrentes da sua adesão à Convenção da União Africana relativa à Prevenção e Combate ao Terrorismo.

8.3.

Indicadores de resultado

Embora não existam números precisos, estima-se que entre 2017 e 2019, a insurgência em Cabo Del-gado tenha vitimado entre 300130 a 500 pessoas e provocado um movimento de 162 mil deslocados internos, provocando uma crise humanitária sem precedentes131. Estima-se que entre 5 de Outubro de 2017, primeiro dia dos ataques, até finais de 2019, tenham ocorrido cerca de 229 ataques132, correspon-dentes a 6 ataques em 2017, 60 incursões armadas em 2018 e 163 ataques em 2019. Segundo os dados desagregados por organizações especializadas, os referidos ataques, quando distribuídos por anos e semestres em cada ano mostram um recrudescimento da violência. Com efeito, no primeiro semestre de 2018 registaram-se 18 ataques, ao passo que no período homólogo de 2019 se registaram 69 ataques terroristas em Cabo Delgado, o mesmo acontecendo no segundo semestre dos anos em referência, com 42 e 94 ataques respectivamente.

No que diz respeito à Zona Centro, apesar de ter sido celebrado o Acordo de Paz em Agosto de 2018, continuaram a registar-se ataques. Aliás, logo após o Presidente da República ter anunciado no Parla-mento que iria assinar o acordo de cessação das hostilidades militares, foram registados ataques mili-tares em Nhamapadza, província de Sofala, a 200 quilómetros do distrito de Gorongosa.133 Os ataques foram atribuídos à auto-proclamada Junta Militar da RENAMO, um grupo dissidente da RENAMO liderado por Mariano Nyongo, um antigo guerrilheiro desta força política, acusado pelos pares do seu partido de ser um sabotador.134

A auto-proclamada Junta Militar da RENAMO surgiu em oposição ao líder da RENAMO eleito, Ossufo Momade, cuja autoridade não o reconhecem. Consequentemente, a auto-proclamada Junta Militar da RENAMO não se identifica com o acordo de cessação de hostilidades militares. Nyongo afirmara ter sob sua liderança cerca de 500 homens e que se oporia, ainda que fosse pela força das armas, à realiza-ção das eleições de Outubro de 2019, uma pretensão que não impediu a realizarealiza-ção das eleições135.

130 Jornal O País, 6 de Outubro de 2019

131 Jornal DW. Quem olha pelos Deslocados Internos de Cabo Delgado?, disponível em https://www.dw.com/pt-002/ quem-olha-pelos-deslocados-internos-de-cabo-delgado/a-44244127

132 Jornal CartaMoz, 25 de Novembro de 2019, apud Opperman, Jasmine. Terrorism Research & Analysis Consortium, Africa Desk

133 https://www.dw.com/pt-002/mo%C3%A7ambique-autocarro-de-passageiros-e-cami%C3%A3o-atacados-em-sofa-la/a-49843224

134 Pronunciamentos de um membro sénior e membro da Comissão Política da RENAMO e deputada da Assembleia da República, durante a consulta pública com partidos políticos na Cidade de Maputo (Agosto de 2020).

135 https://www.dw.com/en/no-peace-no-election-in-mozambique-RENAMO-junta-leader-tells-dw/a-50198676 (data de acesso: 21 de Outubro de 2020)

Desde então, vêm-se sucedendo uma série de ataques a civis e destruição de bens privados e do Estado no centro do país, cuja autoria tem sido atribuída à auto-proclamada Junta Militar da RENAMO. Um de entre vários ataques contra civis e propriedades públicas e privadas aconteceu em Gondola, província de Manica, que resultou na vandalização e saqueamento de medicamentos do Centro de Saúde de Chi-pindaumue136.

Constatação

De um modo geral, pode-se dizer que apesar dos esforços do Governo no sentido de travar a insur-gência militar em Cabo Delgado, a situação militar e humanitária tendeu a agravar-se em termos de aumento do número de vítimas humanas, de refugiados e de ataques. Com base nestes dados, pode-se concluir que, do ponto de vista da protecção do direito à vida, integridade física e bens, os indicadores de direitos humanos são negativos.