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2 PENSANDO O CAMPO DA EDUCAÇÃO

2.1 O PAPEL DA HEGEMONIA NA ORGANIZAÇÃO DA CULTURA

2.1.1 A Organização da Cultura

Uma simples pesquisa sobre o conceito de cultura revelará sua complexidade, pois a palavra reúne diversos significados. Segundo Williams (2008, p. 10-11), a etimologia da palavra “cultura” está relacionada a “processo” e começou a ser empregada para descrever o processo de cultivo de vegetais, criação e reprodução de animais e posteriormente se estendeu ao “[...] cultivo da mente humana”. Apenas no final do século XVIII, o termo passou a ser usado pela antropologia e sociologia como “[...] modo de vida global [...]” de um povo. Mais tarde o termo passou a ser empregado no plural: “culturas”, para acabar com qualquer sentido “unilinear” de civilização que pudesse indicar. Assim passou a ser entendido como “[...] modo de vida global e característico”.

A despeito de todas as mutações que o termo foi sofrendo no decorrer da história, Williams (2008, p. 13), defende que a cultura pode ser compreendida, em sentido mais amplo ou em sentido restrito, entretanto observando ainda que tratada de maneira mais específica, deva ser considerada interrelacionada com as outras atividades sociais.

Conforme este autor, “[...] a cultura pode ser entendida de forma ampla como ‘o

sistema de significações mediante o qual necessariamente (se bem que entre outros

meios) uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada’ (WILLIAMS, 2008, p. 13, grifos do autor)”. Esse sistema de significações geral inclui não só as “artes e as atividades intelectuais”, como geralmente se pensa, mas toda e qualquer prática significativa, como a linguagem, a filosofia, o jornalismo, a publicidade, a ideologia, a educação, etc. (WILLIAMS, 2008).

É apreendendo este significado mais amplo, que conforme Simionatto (2004), a análise gramsciana demonstra preocupação com a cultura. Pois, segundo essa autora, Gramsci compreende que a luta pela emancipação da classe trabalhadora

não se dá apenas no campo econômico. Uma vez que as classes populares, historicamente, têm sido subordinadas intelectualmente, há a necessidade de um novo projeto cultural, possível de propiciar o desenvolvimento de uma vontade coletiva, que se sobreponha, independente do domínio ideológico da burguesia (SIMIONATTO, 2004).

Vemos em Portelli (1977, p. 15), que a concepção de cultura no pensamento de Gramsci está relacionada ao conceito de bloco histórico, “[...] isto é, uma situação histórica global [...]”, sendo este um dos principais aspectos do pensamento político grasmciano. Segundo esse autor, o conceito de bloco histórico deve levar em conta três pontos. Primeiro, que “[...] o ponto essencial das relações estrutura- superestrutura reside, na realidade, no estudo do vínculo que realiza sua unidade”. Segundo, o estudo do bloco histórico deve considerar “[...] a análise da maneira como um sistema de valores culturais (o que Gramsci chama de ideologia) impregna, penetra, socializa e integra um sistema social”. E em terceiro, é a partir desse conceito que “[...] Gramsci estuda como se desagrega a hegemonia da classe dirigente, edifica-se um novo sistema hegemônico e cria-se, pois, um novo bloco histórico (PORTLELLI, 1977, p. 15-16)”.

Apesar desta evidente importância da cultura nos estudos marxistas, é recorrente a análise de que a base é a determinante e a superestrutura (da qual a cultura faria parte) é determinada, ou seja, a cultura é apontada como mero “reflexo”, “determinação” ou “reprodução” da base (WILLIAMS, 2011).

Segundo Williams (2011), o conceito de base deve ser entendido como se referindo a processo e, portanto, sem propriedades fixas. Nesse sentido, esse autor considera que

[...] temos que reavaliar a “superestrutura” em direção a uma gama de práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido, reproduzido ou especificamente dependente. E, fundamentalmente, temos de reavaliar “a base”, afastando-a da noção de uma abstração econômica e tecnológica fixa e aproximando-a das atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre em um estado de processo dinâmico (WILLIAMS, 2011, p. 47).

Ou seja, a cultura deve ser compreendida como parte integrante da práxis, como veremos mais adiante, portanto fundamental à produção e reprodução de qualquer ordem social, pois falar de reprodução, conforme Williams (2008), é procurar apreender os elementos essenciais sem os quais determinado sistema social não poderia sobreviver.

Portanto, a cultura deve ser compreendida com uma leitura da totalidade. Entretanto, como mostra Williams (2011), a análise que considera a noção de totalidade social, em detrimento da divisão base e estrutura, que se tornou mais comum nas interpretações marxistas sobre a cultura, pode estar sendo esvaziada de seu conteúdo, inclusive esquecendo-se do caráter de classe de uma determinada sociedade.

Pois embora seja verdade que qualquer sociedade é um todo complexo de tais práticas11, também é verdade que toda a sociedade tem uma organização e uma estrutura específicas, e que os princípios dessa organização e estrutura podem ser vistos como diretamente relacionados a certas intenções sociais, pelas quais definimos a sociedade, intenções que, em toda a nossa experiência, têm sido regidas por uma classe em particular (WILLIAMS, 2011, p. 50).

Nesse sentido, conforme Williams (2011), a concepção de totalidade para compreensão da cultura deve ser usada combinada ao conceito de hegemonia, conceito este que para o autor foi abordado com profundidade por Gramsci. Próxima a esta análise, Abreu afirma que “[...] determinada cultura, como totalidade, expressa-se no bloco histórico, ou seja, na unidade orgânica entre a estrutura e a superestrutura sob hegemonia de uma determinada classe (ABREU, 2002, p. 29)”. O entendimento da organização da cultura, só é possível se, conforme mostra Williams (2011, p. 53-54), “[...] compreendermos o processo real do qual ela12

depende: refiro-me ao processo de incorporação”. É esta conceituação mais ampla apresentada por Williams (2008) a forma como, neste trabalho, estaremos abordando a cultura, tal como entendemos ser o posicionamento de Gramsci (1982). Consideramos o sistema de significações que dada ordem social global precisa criar e difundir para garantir sua (re)produção. Procuramos perceber os “modos de

11 O autor se refere, no trecho, às práticas culturais. 12 No trecho, o autor se refere à cultura dominante.

incorporação”, conforme Williams (2011) ou o “sistema global de internalização”, nas palavras de Mészáros (2008), que forja a sociabilidade capitalista, para então, apontarmos o papel da educação no movimento (contra) hegemônico.

Isto significa que a compreensão da organização da cultura deve considerar que “[...] os grupos dominantes nem sempre controlam (historicamente, de fato, muitas vezes não o fazem) o sistema de significações global de um povo; tipicamente são antes dominantes dentro dele do que sobre e acima dele (WILLIAMS, 2008, p. 217)”, sendo a organização da cultura um processo contraditório, fruto das relações entre as classes sociais. Por outro lado, devemos entender que a dominação pode ser potencializada pela apropriação do sistema global de significação de um povo por uma determinada classe. Ou seja, a concepção de hegemonia atrelada à leitura da totalidade permite-nos compreender a contradição, sem perder de vista a “[...] realidade da dominação (WILLIAMS, 2011, p. 52)”.

Ainda na trilha do pensamento de Williams (2008), alguns elementos são importantes para pensar a cultura no sistema capitalista, dentre os quais estão a educação e o sufrágio universais. Estes foram importantes instrumentos para a constituição do capitalismo e da burguesia como classe dominante, sendo o Estado um elemento chave nesta configuração como veremos mais adiante.

Outro elemento apontado pelo autor, como produto do desenvolvimento da sociedade capitalista, é a universalização da mídia, principalmente da televisão, o que fez com que a reprodução social e cultural, antes mais centralizada na educação escolar, se ampliasse para este campo. No caso dos meios de comunicação, o monopólio por parte da classe dominante lhe permite utilizar desses meios não só com fins econômicos, para obtenção do lucro, mas também, como instrumento político-ideológico, visando universalizar uma cultura capitalista, pautada no consumismo e no individualismo.

Portanto, como bem mostra Williams (2011), o processo de incorporação que garante a reprodução cultural dominante de dada ordem social, apesar de ter nas instituições educacionais suas principais agências, ultrapassa as mesmas, ou seja,

os processos de educação devem ser compreendidos de forma mais ampla, considerando todas as instituições sociais.

É nesse sentido, que conforme Abreu (2002, p. 18), Gramsci compreenderá a cultura, como civilitá, ou seja, como “modo de vida, de sentir, de pensar e de agir”. É a partir dessa compreensão, conforme mostra a autora, que o princípio educativo para Gramsci, a ser tomado no processo de luta pela hegemonia, deve considerar

[...] a construção de um padrão produtivo e de trabalho e a organização de uma ordem intelectual e moral pelas classes subalternas, princípio esse que se objetiva na constituição de um processo mais amplo de superação da racionalidade da produção capitalista pelas citadas classes e instauração de uma nova e superior cultura – uma nova sociabilidade (ABREU, 2002, p.18- 19).

Para Abreu (2002), as análises do elo existente entre as relações pedagógicas e a cultura, podem acabar pendendo para duas tendências: uma que reduz as funções hegemônicas à direção intelectual e moral e outra em que a hegemonia se realiza apenas na sociedade civil, o que a restringiria à dimensão superestrutural. Na interpretação da autora, essas tendências acabam levando a equívocos teóricos que acarretam uma “[...] visão mistificada e mistificadora das relações pedagógicas e da função destas no conjunto das relações sociais (ABREU, 2002, p. 20)”.

No pensamento gramsciano, as exigências históricas de construção da hegemonia pelas classes subalternas como estratégia revolucionária redefinem o lugar da cultura como condição necessária do processo de emancipação político-ideológica dessas classes, do qual faz parte a luta pela constituição e redimensionamento das relações de força e a conquista do poder do Estado. Este processo integra o amplo movimento ideológico- político-militar de superação da ordem burguesa e de construção de uma nova sociabilidade pelas referidas classes [...] (ABREU, 2002, p. 24).

Nesse sentido, conforme afirma a autora, a reforma intelectual e moral proposta por Gramsci é parte de um amplo processo de destruição da cultura dominante e formação de uma cultura que corresponda aos interesses de uma “[...] vontade coletiva nacional-popular [...]”, esta se refere à “[...] consciência atuante de uma necessidade histórica como protagonista de um real e efetivo drama histórico (GRAMSCI apud ABREU, 2002, p. 25)”.

Desta feita, Abreu (2002) interpreta que a formação de uma nova cultura pelas classes subalternas deve ser compreendida no interior do movimento revolucionário de transformação da sociedade capitalista, considerando as mudanças estruturais e superestruturais, observando que “[...] o nexo entre estrutura e superestrutura efetiva-se pela mediação do trabalho dos intelectuais (ABREU, 2002, p. 29)”.

Diante do exposto, seguiremos com um aprofundamento da categoria central de análise nesta reflexão, no caso, a hegemonia, considerando, de antemão, que a discussão acerca deste conceito, em Gramsci, é complexa, e por isso o debate que se segue não tem a intenção de esgotar o tema. Ao contrário, a sua natureza é bastante exploratória, entretanto – supomos - suficiente para demonstrar a essencialidade do tema para a compreensão da educação popular.