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2 PENSANDO O CAMPO DA EDUCAÇÃO

2.4 A EDUCAÇÃO POPULAR COMO RELAÇÃO DE CONTRA-HEGEMONIA

2.4.4 Terceira Fase da Educação Popular

De acordo com Marques (2008), a terceira fase na construção do campo (repertórios) da educação popular, iniciados desde os anos de 1990 é de desagregação e renovação, criando uma instabilidade no campo em que a educação popular não possui um substrato comum, levando a vários sentidos apropriados por diferentes grupos.

Desta feita como mostra Marques (2008), o momento é de inflexão no repertório da educação popular em que o “popular” não está mais sendo compreendido como ligado à classe trabalhadora.

Conforme Gohn (2001, p. 45), com a hegemonia neoliberal, aos poucos, a cultura popular com bases na “cultura de resistência” foi sendo substituída por uma “cultura propositiva”, que visa a estabelecer propostas e agir ativamente. A autora pontua que isso acarretou mudanças no associativismo dos movimentos sociais, sobretudo, os populares (GOHN, 2001, p.45). O que a autora procura demonstrar é que

[...] a política, vista por um ângulo liberal, deu seu toque ao introduzir as noções de consciência cívica e cidadania. O envolvimento e a participação dos indivíduos em assuntos da coletividade e o respeito às leis e às autoridades passaram a ser destacadas como elementos de um modelo de cidadania. Ou seja, a estrutura e a cultura política eram associadas, segundo uma perspectiva de “consciência cívica” dos cidadãos (GOHN, 2001, p.48).

Conforme a autora, a discussão acerca da cultura política deve levar em consideração o contexto histórico, buscando compreender as ações da coletividade,

no que tange à participação sociopolítica, na construção da cidadania, na luta pelos direitos, dentre outras questões. Nesse sentido, afirma que

[...] no Brasil, nos anos 70-80, as ONGs cidadãs e militantes estiveram por detrás da maioria dos movimentos sociais populares urbanos que delinearam um cenário de participação na sociedade civil, trazendo para a cena pública novos personagens, contribuindo decisivamente para a queda do regime militar no país (GOHN, 2001, p. 76, grifo da autora).

Entretanto, segundo a autora, nos anos de 1990, o cenário global marcado pela hegemonia do neoliberalismo acarretou grande impacto nas ONGs, que passaram a centrar-se em atividades produtivas, colocando a militância política para segundo plano. Surgiram também novas entidades que buscavam ações propositivas e afirmativas em parceria com o Estado. Além disso, surgiram ainda movimentos culturais, em torno de questões como gênero, raça, etnia, visando muito mais à afirmação do grupo do que à negação ou contestação da ordem vigente (GOHN, 2001).

Na mesma direção, Doimo mostra que:

[...] de pequenos organismos de assessoria que eram, em geral financiados por associações privadas confessionais do Primeiro Mundo, hoje as Ongs passam cada vez mais a ser concebidas como veículos confiáveis do chamado desenvolvimento sustentável e a receber apoio de instituições oficiais, multilaterais e até mesmo o Banco Mundial. Além disso, cresce também sua legitimidade como entidades de elaboração e de avaliação de políticas públicas (DOIMO, 2008, p. 245).

Segundo Doimo (2008), as ONGs que assumiram a "educação popular" em tempos de autoritarismo político, assim que instituída a Constituição de 1988, converteram sua ação para a o campo da cidadania.

[...] Assim, de veículos que eram da chamada "educação popular", pela qual veiculavam-se códigos ético-políticos genéricos como autonomia em relação ao Estado, independência em relação aos partidos políticos e, sobretudo, "democracia de base", as Ongs passam cada vez mais a falar a linguagem da mediação, da negociação e do estabelecimento de parcerias, inclusive com o Estado, colocando-se como instrumentos de conquista da ampliação dos direitos de cidadania e como agências privadas de formulação de políticas públicas. Para muitas delas, tal mudança de perfil tem significado desde a desativação de suas funções até seu completo desaparecimento. Outras, no entanto, têm se reciclado mantendo suas atividades em outro patamar (DOIMO, 2008, p. 265).

A mudança de orientação das ONGs no campo nacional também foi acompanhada em Vitória. Segundo a autora, a FASE Vitória entrou, na década de 1990, em um período marcado por crises internas, que culminou no desligamento da maioria do corpo técnico e desativação de seus programas e projetos. Segundo uma das entrevistadas por Doimo, a crise ocorreu devido à proposta da FASE Nacional que retirava o trabalho de base, ou seja, de assessoria direta junto aos movimentos populares e “[...] propunha programas de capacitação técnica e profissional para uma atuação mais qualificada junto à sociedade civil (DOIMO, 2008, p. 246)”.

Conforme Doimo (2008), o CECOPES demonstrava dificuldades para se adaptar ao período, principalmente, no que tange a interação com o Estado. Isso decorria tanto pelo fim do financiamento externo e quanto pela vitória de partidos identificados com a causa popular, várias lideranças dos movimentos sociais passaram a participar da gestão municipal e membros do CECOPES passaram a ser convidados a assessorar algumas iniciativas governamentais.

O fim do financiamento externo contribuiu para que muitas dessas ONGs, tornassem-se dependentes do Estado e com isso reorientassem seus trabalhos para áreas que possibilitassem o financiamento público. Esse processo abriu uma lacuna no que tange aos espaços para a formação política das lideranças populares e, consequentemente, no processo educativo desenvolvido entre liderança-base no interior dos movimentos populares.

Nesse sentido, gostaríamos de fazer uma pequena abordagem quanto ao espaço das Universidades Públicas e ao papel que os intelectuais da classe trabalhadora que ali se encontram poderiam cumprir no processo de formação política, utilizando- se das atividades não só de pesquisa, retomando a temática da educação popular por uma perspectiva crítica, mas, principalmente, das atividades de extensão, apropriando-se desse espaço como forma de aproximação dos movimentos populares, na busca de assessorar e contribuir com a problematização teórica de suas ações, minimizando assim, a lacuna deixada por estas ONGs.

No próximo capítulo veremos com maior amplitude as mudanças no cenário histórico atual que repercutiram nas ações das ONGs. Por ora gostaríamos apenas de

mostrar que esse quadro conjuntural, é expresso pelo CEPIS como um período de “[...] crise estrutural e civilizatória [...]”, com fortes ofensivas do capital e perda de “[...] referência na esquerda (CELEST FON, 2008)”. De forma que

[...] O Movimento Popular expressa desânimo da militância e no baixo nível ideológico de muitas coordenações/direções que, mesmo com discurso radical repetem o voluntarismo, o assistencialismo e o reformismo, que não resolvem o conflito social (CELEST FON, 2008, p. 17).

As transformações históricas no mundo do trabalho levaram muitos autores a defender que a teoria marxista não traria elementos para explicar os “novos movimentos sociais”. Pautada neste discurso, surge uma corrente pós-moderna da “educação popular”, que

[...] sob o pretexto de adequar-se aos tempos e públicos atuais, de incorporar dimensões negadas ou esquecidas em processos anteriores, essa tendência se restringe à defesa de temas ligados ao comportamento (etnia, gênero, idade, opção sexual, meio ambiente...) como se fosse possível acabar com a dominação sem eliminar, pela raiz, a realidade da exploração que a sustenta. Como não relaciona tais dimensões à luta de classes, reduz o processo de formação popular a uma proposta pragmática relativista e culturalista e, com ela, nega a prática social acumulada, a existência de princípios ideológicos e qualquer sistema lógico de pensamento (CELEST FON, 2008, p. 24).

Com isso vemos que, na verdade, a educação popular reflete o quadro conjuntural caracterizado pela ofensiva neoliberal e ascensão do discurso pós-moderno que culminou no refluxo dos movimentos sociais populares, ênfase das lutas nos chamados “novos movimentos sociais”, mudanças ocorridas no PT - no que se refere à orientação teórica e práticas políticas, refletidas no projeto de sociedade ao assumir o governo -, mudança do sindicalismo antes opositor para um sindicalismo propositivo, mudança nas CEBs da Igreja Católica, de uma visão pautada na Teologia da Libertação para uma visão mais pragmática, voltada a angariar fiéis, a ascensão de ONGs que passam a atuar, sobretudo, nas periferias levando um substrato educativo do modelo hegemônico com a confluência de termos usados na educação popular, como autonomia e participação popular, mas agora reorientados em sentido oposto.