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Origem e adaptação do método documentário à pesquisa qualitativa

O método documentário na análise de dados gerados nos grupos de discussão tem como finalidade a interpretação das visões de mundo, em alemão

Weltanschuung. O termo encontra-se em um artigo escrito por Karl Mannheim,

publicado em 1921/1922, ao tratar uma série de vivências ou experiências ligadas à mesma estrutura. Constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos (BOHNSACK; WELLER, 2011).

Importa ater-se à confusão que, muitas vezes, é feita entre os termos visões de mundo e imagens de mundo, sendo necessário distingui-los a fim de evitar equívocos em relação ao método documentário proposto por Mannheim. De acordo com Bohnsack e Weller, Mannheim conceituou as visões de mundo a partir das ações práticas, definidas por ele como conhecimento ateórico, uma vez que “a compreensão das visões de mundo e das orientações coletivas de um grupo só é

possível por meio da explicação e da conceituação teórica desse conhecimento ateórico” (Ibidem, p. 68).

O pesquisador tem a responsabilidade de encontrar um meio de acesso ao conhecimento implícito do grupo em análise, explicitando-o e definindo-o teoricamente. O processo de interpretação, na perspectiva de Mannheim, caracteriza-se de três níveis de sentido, diferenciados da seguinte forma:

Um nível objetivo ou imanente – dado naturalmente (por exemplo, num gesto, num símbolo ou ainda na forma de uma obra de arte); um nível expressivo, que é transmitido por meio das palavras ou das ações (por exemplo, como expressão de ou como reação a algo); e um nível documentário, ou seja, como documento de uma ação prática (BOHNSACK; WELLER, 2011, p. 69).

Os três níveis possibilitam, durante o processo metodológico, conhecer o cotidiano dos jovens em estudo, desde o contexto às ações individuais e coletivas, principalmente no que concerne à busca e uso de informações na construção do conhecimento científico.

Não apenas o sentido objetivo, também denominado por Mannheim como imanente, possibilita a compreensão da realidade em si, sendo imprescindíveis os dois níveis seguintes, isto é, o sentido expressivo, ligado às práticas individuais e coletivas em um determinado contexto, e o nível documentário, essencial à compreensão do objeto em análise (BOHNSACK; WELLER, 2011).

Entender a totalidade de qualquer produto cultural significa considerar os três níveis de interpretação na pesquisa científica, não apenas focando no aspecto natural, objetivo, caracterizado por Mannheim como nível imanente, pois “temos que compreender também os sentidos expressivo e documentário se quisermos esgotar as possibilidades de análise e transcender sua significação imediata” (ibidem, p. 69). A adaptação do método documentário para a análise qualitativa surgiu, inicialmente, com a Etnometodologia. Tanto Bohnsack quanto Weller afirmam ser Garfinkel (1967) o primeiro a reconhecer a relevância do método documentário proposto por Mannheim à análise das visões de mundo. Esse parece ser caminho essencial ao conhecimento das ações sociais, embora a Etnometodologia utilize, de

modo limitado, o método, apenas se atendo à decodificação ou regras que estruturam a vida em determinado espaço.

Foi Bohnsack que adaptou, de certa forma, o método documentário à análise de grupos de discussão, com intuito de transcender o nível de análise intuitivo ou dedutivo, atingindo um nível mais completo, capaz de interpretar e também reconstruir os modelos ou quadros nos quais as visões de mundo dos diferentes grupos foram constituídas, orientando as ações dos sujeitos. Ele desenvolveu um método de interpretação de entrevistas narrativas ou grupos de discussão a partir de quatro etapas distintas (PFAFF; WELLER, 2010).

A primeira consiste na organização temática, que exige do pesquisador, após a realização da entrevista ao grupo, um relatório com as informações relacionadas ao contato inicial com o grupo, ou seja, como ele foi selecionado e em que local. Implica, nesta etapa, obter os dados da entrevista para transcrição dos grupos de discussão de modo a identificar o perfil de cada integrante. Em seguida, é sugerida ao pesquisador a organização temática do grupo, quais as principais questões surgidas e a duração. O tempo destinado à discussão de determinado tema é fundamental à interpretação. Por exemplo, por que deram tanta atenção a esse tema? O que os levou a um assunto não apresentado no tópico-guia? Até mesmo os movimentos, gestos e tonalidade de vozes contribuem com a pesquisa, uma vez que a expressão não se reduz à fala.

A segunda etapa proposta por Bohnsack consiste na interpretação formulada. Significa interpretar o sentido imanente das discussões, decodificando-a em seu vocabulário coloquial. É o momento em que o pesquisador descreve, exclusivamente, o que foi discutido entre os integrantes do grupo, fiel à fala de cada um. Por isso o nome interpretação formulada, voltada apenas ao dado objetivo da entrevista (BOHNSACK; WELLER, 2011).

A terceira etapa, definida como interpretação refletida, “tem como objetivo a reconstrução do modelo de orientação coletiva” (BOHNSACK; WELLER, 2011, p.81). Trata-se do habitus do grupo. Não se reduz apenas ao aspecto temático ou à organização das diferentes falas. Diferentemente da interpretação formulada, a refletida não consiste apenas na estrutura básica do texto. De forma mais completa,

a interpretação refletida procura analisar o conteúdo, as ações do indivíduo ou grupo pesquisado, bem como as motivações que permeiam as ações (ibidem, p. 82).

A quarta etapa é apresentada como análise comparativa. Não se trata mais de interpretar, mas de comparar. Por isso é importante, na utilização dos grupos de discussão, mais de uma entrevista, possibilitando ao pesquisador a comparação dos temas abordados entre os diferentes grupos, muitas vezes pertencentes ao mesmo contexto social. No processo de análise, o pesquisador analisa internamente os grupos, comparando-os em um segundo passo.

Bohnsack e Weller (2011, p. 82), ao corroborarem com outros teóricos, concluem que o modelo de orientação de um determinado grupo só pode ser constatado quando colocado em relação a outros horizontes ou universos comparativos de outros grupos, fato que justifica a realização de mais grupos de discussão em uma pesquisa.

A quinta e última etapa é a construção de tipos e análise multidimensional. A partir das etapas anteriores, principalmente após a comparação dos grupos de discussão, surge “um modelo de orientação que se repete, ou quando encontramos diferentes modelos de orientação ou estratégias de enfrentamento de uma determinada situação” (ibidem, p. 83).

A figura 3 demonstra a ordem das etapas descritas a partir da realização dos grupos de discussão.

Figura 3 - Passos para a análise de grupos de discussão19

Ao se constituir uma abordagem metodológica nova, o método documentário proposto por Mannheim (1980) e depois adaptado à análise dos grupos de discussão ainda é recente no Brasil. Muitas pesquisas em educação e sociologia têm optado pela perspectiva metodológica, originária da Sociologia do Conhecimento. Em Ciência da Informação, por exemplo, não foi possível constatar nos principais bancos de dados20 algum estudo de pós-graduação que tenha optado pelo grupo de discussão e pelo método documentário no Brasil, embora exista um número significativo de metodologias com o uso de entrevistas.