• Nenhum resultado encontrado

1. INTRODUÇÃO

1.2 O Crack

1.2.1 As origens do crack nos EUA

Em virtude do crack e da “freebase” tratarem-se de cocaína-base, porém distintas quanto ao grau de pureza, e por serem administrados através da via fumada, suas origens são largamente confundidas. Historicamente, ao se desconsiderar a forma de cloridrato, o ato de fumar cocaína, nos EUA, teve início como “freebase”, mais especificamente na Califórnia e no ano de 1974 (Siegel, 1982), podendo-se dizer que sua descoberta foi acidental e causada por confusões etimológicas (Siegel, 1982).

No final dos anos 60 e início dos anos 70, traficantes de cloridrato de cocaína presenciaram o ato de fumar pasta de coca ao visitarem países sul-americanos como Peru, Colômbia e Equador. De volta aos EUA, frente aos efeitos altamente recompensadores da pasta de coca, conhecida até então como pasta-base, alguns deles sentiram-se estimulados a produzi-la, crendo tratar-se da forma da cocaína conhecida como “base”. Assim, ao consultar o termo “base” (em referência à “freebase”) no Merck Index, químicos preparavam a “freebase” a partir do cloridrato de cocaína, crendo tratar-se da pasta de coca, fumando-a da mesma maneira e sob os mesmos padrões previamente observados na América do Sul (Siegel, 1982). Embora alguns cressem novidade, o procedimento de preparo da “freebase” já era conhecido por alguns usuários de cocaína, adotando o

procedimento como forma de purificação do cloridrato vendido nas ruas, deste eliminando os adulterantes e diluentes, de tal forma que o transformavam em “freebase” e novamente em cloridrato de cocaína para uso aspirado ou endovenoso (Siegel, 1982).

Para o preparo da “freebase” era necessário ter equipamentos e reagentes apropriados, conjunto comumente denominado por parafernália. Inicialmente, as lojas destinadas à venda da parafernália consistiram no fator determinante à introdução e divulgação do ato de fumar-se cocaína, na forma de “freebase”, nos EUA. Aliás, a indústria da parafernália sempre foi o parâmetro das tendências quanto ao uso de drogas, refletindo a necessidade social da procura de novas experiências psicoativas e efeitos psicologicamente recompensadores (Siegel, 1982).

Nos anos 70, a parafernália era artesanalmente produzida e comercializada em escala comunitária, a princípio confinada apenas ao Estado da Califórnia. O primeiro cachimbo e o primeiro “kit” de reagentes tornaram-se disponíveis na Califórnia no ano de 1975, porém, foi no ano de 1978 que a distribuição dos cachimbos e kits espalhou-se, atingindo, finalmente, quinze dos Estados Norte-americanos, de tal forma que, em 1980, cerca de um milhão de pessoas já haviam experimentado a “freebase” (Siegel, 1982). Assim, lojas em São Francisco, Los Angeles, Chicago, Nova Iorque e Miami relataram dificuldades em manter o estoque para atender o aumento da demanda e mesmo as lojas que o tinham obrigaram-se a permanecer abertas até as primeiras horas da madrugada para atender aos usuários insones (Siegel, 1982).

A prosperidade dos negócios aumentou ainda mais após o desenvolvimento de mídia especializada à divulgação da “freebase” e sua parafernália, sendo muitos os artigos que ensinavam o procedimento a seu preparo e uso, ressaltando as virtudes e vantagens do uso da “freebase”, assim como segue: Limpe seu pó (cloridrato de cocaína) e aproveite-o

ainda mais. Aprenda porque a “freebase” é o fenômeno da década. Uma vez que a boa base é fumada, vc não larga mais (Siegel, 1982). Outro artigo fazia referência ao método de “freebasing” como procedimento prazeroso, comparando-o a um “orgasmo cerebral” (Siegel, 1982). Porém, só foi a partir da década de 80 que a mídia passou a descrever o outro lado da moeda, enfatizando os aspectos negativos associados ao uso de “freebase”, a citar: (a) padrão compulsivo de uso (“binge”); (b) danos pessoais decorrentes do abuso; (c) possível desenvolvimento de dependência, já que até então não se acreditava que o uso de

“freebase” pudesse gerá-la e, finalmente (d) relato a respeito dos perigos de incêndio decorrentes do emprego de éter e outros solventes inflamáveis no processo de preparo de “freebase” (Siegel, 1982). Esses acontecimentos, tomados em conjunto, fizeram com que a indústria da parafernália substituísse o termo “freebase” por “alcalóide” ou “pasta orgânica” para que não interferisse em seu uso e consequentemente, em seu comércio (Siegel, 1982).

Em termos científicos, o primeiro relato a respeito da “freebase” apareceu no ano de 1972 através da publicação do livro The gourmet cokebook (Inciardi et al., 1993), que abordava cada aspecto da cocaína, no que concerne a seu histórico e lendas, uso e comércio, processo de extração, análise e, finalmente, efeitos e ramificações legais. Curiosamente, o livro fez menção passageira à cocaína-base, definindo-a como a cocaína

reconstituída ao estado de base e na forma de pedra (Inciardi et al., 1993). Porém, só foi na década de 80 que o ato de “freebasing” alcançou audiência nacional através da experiência quase-morte do ator Richard Pryor após ter sofrido uma explosão resultante do uso de “freebase” (Siegel, 1982; Inciardi et al., 1993).

O termo crack não tinha sido mencionado até então (Inciardi et al., 1993), porém, assim que foi desenvolvido tornou-se a forma mais popular da cocaína nos EUA (Smart, 1991). Em 1985, nas páginas do prestigiado “New York Times”, a história sobre um programa de tratamento de dependência de drogas identificou o crack, pela primeira vez, na imprensa escrita, como ilustrado na época: Nesse ano, três adolescentes procuraram

pelo tratamento para cocaína por causa de uma nova forma de uso denominada por crack que são pedaços semelhantes a pedras de cocaína base-livre (Inciardi et al., 1993). Foi então que, a partir do ano de 1986, a cobertura sobre crack foi intensa, de forma que escritores e repórteres começaram a correr atrás das histórias e dos acontecimentos mais recentes sobre a droga.

Embora crack e “freebase” sejam formas distintas da cocaína-base, o crack parece ter surgido como a maneira de escapar-se dos incêndios acidentais causados até então pelo emprego de solventes inflamáveis durante o processo de preparo da “freebase”, como o éter, de tal forma a proporcionar o aparecimento de outras formas de apresentação da cocaína (Siegel, 1982).

Para Inciardi (1987), o surgimento e o “boom” de crack nos EUA, na década de 80, foi decorrente de questões político-econômicas associadas ao comércio internacional de cocaína, como segue: A redescoberta do crack durante o início dos anos 80 aconteceu

simultaneamente nas costas Leste e Oeste dos EUA como o resultado da tentativa do governo colombiano em reduzir a produção ilícita de cocaína em seus domínios ao restringir a quantidade de éter disponível para a transformação da pasta em cloridrato de cocaína. O resultado da estratégia consistiu na passagem da pasta-base da Colômbia para o sul da Flórida, para conseqüente conversão em cloridrato de cocaína, atravessando a América Central e Caribe. A passagem pelo Caribe fez com que a população da ilha reconhecesse o procedimento de fumar-se pasta de coca, de tal forma que desenvolveram o precursor do crack em 1980, sendo o protótipo um produto composto de pasta de coca, bicarbonato sódico, água e rum.

Com a reputação do sul da Flórida como centro importador e distribuidor de cloridrato de cocaína e crack, Miami, entre os grandes centros americanos, foi o mais intimamente associado ao uso de crack, tendo sido detectado nas ruas da cidade no ano de 1982 e comercializado em muitas das “shooting galeries” a partir de 1981 (Inciardi & Surrat, 2001). Ainda nos anos 80, as crack-houses proliferaram em Miami tornando-se, no campo de drogas, o maior problema de saúde pública da cidade (Inciardi et al., 1993), o que despertou e ainda desperta interesse sobre a cultura, orientando e justificando o extenso número de artigos a respeito da droga, desde a época de seu aparecimento até os dias de hoje.

1.2.2 O crack na Europa, na Espanha e na comunidade autonômica de Catalunya.

Na União Européia (UE) calcula-se que cerca de 10 milhões de indivíduos tenham experimentado cocaína pelo menos uma vez na vida, o que equivale a mais de 3% da população adulta. Os dados nacionais sobre o mencionado consumo variam entre 0,5% e 6%, de tal forma que a Espanha é um dos países no extremo superior deste intervalo de variação (5,9%), acompanhada da Itália (4,6%) e Reino Unido (6,1%) (EMCDDA, 2006). À semelhança de outras drogas ilegais, o uso na vida de cocaína é mais freqüente entre adultos jovens, de faixa etária entre 15 e 34 anos, variando a prevalência de uso entre 1% e

10% (EMCDDA, 2006). Novamente, quando considerada a prevalência de uso dentro dessa faixa etária, a Espanha desponta com um dos níveis mais elevados entre os países da União Européia (UE), com 8,9% (EMCDDA, 2006).

Além do considerável uso no país, metade das apreensões e dos volumes apreendidos de cocaína na UE, nos últimos cinco anos, tem sido feitos na Espanha, podendo, juntamente com o elevado uso, serem justificados pelo ponto estratégico que o país ocupa no tráfico da droga a partir dos países da América Latina como Colômbia, Peru e Bolívia (EMCDDA, 2006). Soma-se a isso a constatação de que a Espanha é um dos países onde são numerosos os pedidos de tratamento associados ao uso de cocaína, além de ser o país com maior freqüência de urgências hospitalares implicadas ao uso dessa droga (OEDT, 2001).

No que concerne ao crack, de forma geral, o uso parece ser relativamente baixo para a população européia (EMCDDA, 2006). Especificamente na Espanha, quando se fala em cocaína assume-se que se trata quase sempre da forma de cloridrato, já que o consumo de crack ainda está pouco estendido (Anta, 1998; Barrio, 1998; Spanish National Report, 2005; EMCDDA, 2006). Em território espanhol, o uso de crack tem sido identificado entre policonsumidores de drogas, sendo que o primeiro relato de seu uso deu-se em 1983 por uma heroinômana na cidade de Sevilla, mas o uso regular foi registrado apenas no início da década de 90 na comunidade autonômica de Andaluzia (Anta, 1998). Atualmente, na Espanha, as evidências mostram que se está produzindo um fenômeno de difusão do uso de crack entre os consumidores de heroína, na direção sudoeste a nordeste do país, caminhando então da comunidade de Andaluzia à região central espanhola (Madrid) e, finalmente, à região nordeste (Catalunya) (Anta, 1998; Barrio et al., 1998). Assim, entre a população geral, de faixa etária entre 15 e 64 anos, a prevalência do uso na vida, de crack, foi registrada em 0,5% e o uso no último ano é equivalente a 0,1% (Spanish National Report, 2005; EMCDDA, 2006).

No que concerne especificamente à Catalunya, é uma das comunidades autonômicas espanholas, da qual Barcelona é a capital, com cerca de 1.600.000 habitantes. Especificamente quanto ao uso de drogas, na Catalunya, o uso na vida de cocaína é equivalente a 5,9% entre os indivíduos de faixa etária entre 15 e 64 anos, consistindo na segunda droga que mais estimula a busca de tratamento por dependentes de drogas (OTD,

2006). Quanto à via de administração da cocaína, a forma parenteral é a mais comum na comunidade, acompanhando pari-passu a via de administração da heroína (Anta, 1998; Barrio et al., 1998). Assim, como o uso de heroína fumada é pouco comum, o uso de cocaína na forma de crack também o é (Anta, 1998; Barrio et al., 1998). De forma geral, na comunidade de Catalunya a prevalência de uso na vida de crack tem sido registrada em 0,5%, diminuindo ao se considerar o uso no último ano (0,1%) e no último mês (0%) (OTD, 2006).

Como o uso de cocaína tem aumentado consideravelmente na Europa, especialmente na Espanha (EMCDDA, 2006) e como o uso de crack tem sido associado ao consumo de outras drogas, esforços têm sido feitos na última década para o detalhamento do uso e do perfil do usuário de cocaína e crack, não apenas a fim de desenvolver medidas de controle, mas com fins de prevenção, tratamento e reinserção sócio-laboral do usuário (Diaz et al., 1992; Bieleman et al., 1993; Diaz et al., 1998).

Documentos relacionados