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Vias de administração e diferenças farmacológicas associadas

1. INTRODUÇÃO

1.1.3 Formas de apresentação, vias de administração e aspectos farmacológicos

1.1.3.2 Vias de administração e diferenças farmacológicas associadas

A cocaína, de nome químico benzoylmethylecgonina, é anestésico local com propriedade simpatomimética, que produz resposta fisiológica estimulatória sobre o SNC (Sistema Nervoso Central) pela qual é comumente empregada como fármaco de abuso ou com fins recreativos (Stahl, 2002). A capacidade de produzir reforço positivo é atribuída à ação sobre as vias dopaminérgicas mesocortical e mesolímbica, comumente envolvidas nos mecanismos de euforia. Se aceita que seus efeitos sejam mediados pelo bloqueio dos transportadores pré-sinápticos da dopamina, nas vias já mencionadas, causando o acúmulo do neurotransmissor na fenda sináptica e nos receptores pós-sinápticos, intensificando sua atividade, justificando o característico comportamento compulsivo pela busca do fármaco

(Morris, 1998; Weaver & Schnoll, 1999; Dackis & O’Brien, 2001; Stahl, 2002). Além de atuar na via de neurotransmissão dopaminérgica, parece atuar também na inibição da recaptação de noradrenalina e serotonina, estimulando também a liberação de adrenalina pelas glândulas adrenais (Kach, 1999). Embora tanto humanos quanto não-humanos administrem-se cocaína de forma repetida, a magnitude e a rapidez de seus efeitos é importante fator para o reforço do comportamento e para o potencial de abuso da droga. Levando-se isso em consideração, a via de administração tem importante papel na rapidez de início, na intensidade e duração dos efeitos da cocaína (Hatsukami & Fischman, 1996).

Conforme Díaz (1998), as vias de auto-administração de cocaína mais frequentemente citadas são: (a) oral para as folhas de coca (acullico); (b) oral, (c) intranasal e (d) intravenosa ao cloridrato de cocaína, (e) fumada à pasta de coca e (f) à forma de cocaína-base, distintas entre si quanto à velocidade de absorção e concentração plasmática máxima (Hatsukami & Fischman, 1996), cujas características são descritas sucintamente abaixo:

(a) mastigar folhas de coca é prática relativamente segura, já que contêm apenas de 0,5 a 1% de cocaína. Embora a absorção bucal seja inicialmente efetiva, o efeito vasoconstrictor local da cocaína diminui a absorção, logo, o pico plasmático alcançado é relativamente baixo. O tempo de início dos efeitos é de 5 a 10 minutos, com duração máxima entre 45 e 90 minutos. Ainda quanto às folhas de coca há relatos de indígenas que as fumavam juntamente com folhas de tabaco, atingindo efeitos semelhantes ao ato de mascá-las (Buhler, 1946; Siegel, 1982);

(b) a administração oral do cloridrato de cocaína também resulta em baixos níveis sanguíneos da droga. Entre 70 a 80% da dose é perdida como resultado do efeito de primeira passagem hepático. O início da ação ocorre entre 10 a 30 minutos após ingestão e o pico de efeito ocorre próximo a uma hora (Hatsukami & Fischman, 1996);

(c) a via intranasal (aspirada) é influenciada pelo efeito de vasoconstrição da cocaína sobre a vascularização nasal, o que limita sua absorção. Depois de aplicada, o início da atividade ocorre de dois a três minutos, atingindo seu máximo entre 15 a 20 minutos, sendo que a

duração total da ação é de 30 a 45 minutos (Hatsukami & Fischman, 1996). A concentração plasmática da cocaína, administrada por via intranasal, condiciona-se a determinados fatores, a citar: (1) características biológicas individuais no que se refere aos níveis de vasoconstrição da mucosa frente à cocaína; (2) diferenças na efetividade da técnica de aspiração do fármaco e (3) biotransformação vigente na própria mucosa (Chasin & Mídio, 1997);

(d) dentre todas as vias, a intravenosa é a mais eficiente, de forma que 100% da dose administrada atinge a corrente sanguínea. Após injeção, o início da ação dá-se entre 15 a 25 segundos e a duração total estende-se de 10 a 20 minutos. O efeito máximo dá-se entre 3 a 5 minutos. A rapidez de início, a curta duração dos efeitos e os maiores níveis sanguíneos após a injeção, fazem com que essa via tenha potencial indutor de dependência maior ao da via intranasal (Hatsukami & Fischman, 1996).

Embora o ponto de fusão do cloridrato de cocaína seja alto, pode ser fumado quando inserido em cigarros de tabaco ou maconha, porém, a maioria da cocaína sofre pirólise, restando pequena quantidade na forma intacta, proporcionando pouca ou nenhuma intoxicação (Siegel, 1982);

(e) fumar pasta de coca causa efeito rápido e intenso, porém curto em duração. Os efeitos iniciam entre 8 e 10 segundos e duram de 5 a 10 minutos, sendo que o efeito máximo ocorre entre 1 e 5 minutos (Hatsukami & Fischman, 1996);

(f) finalmente, os efeitos de fumar-se cocaína-base acontecem rápida e intensamente devido a quatro fatores (Chasin & Mídio, 1997): (1) a forma da cocaína-base necessita de menor temperatura para sublimar em relação ao cloridrato de cocaína; (2) a ampla área de superfície pulmonar possibilita rápido acesso da cocaína-base à corrente sanguínea; (3) a curta distância que a cocaína-base precisa atravessar até o encéfalo, quando comparada à longa distância para a via intravenosa, contribui para a rapidez de resposta; (4) a cocaína- base é mais lipossolúvel que a forma cloridrato de cocaína, possibilitando rápida passagem ao Sistema Nervoso Central (SNC).

O início de ação ocorre entre 8 a 10 segundos após inalação, mais rápido se comparado aos 25 segundos necessários à via intravenosa. A duração do efeito da cocaína- base é de 5 a 10 minutos, com pico máximo de 1 a 5 minutos, de tal forma que a administração deve ser repetida a cada 20 minutos, a fim de manter o estado de euforia e evitar a depressão pós-uso (Hatsukami & Fischman, 1996).

Porém, a eficiência do ato de fumar depende de alguns fatores, entre eles : (1) porção do fármaco destruída por pirólise ; (2) temperatura aplicada para sublimar a cocaína; (3) matriz utilizada para aquecimento da cocaína; (4) condensação da cocaína- base nos dispositivos empregados pra fumar, entre outros (Chasin & Mídio, 1997).

Pelo acima mencionado, nota-se que de todas as vias, a oral alcança mais lentamente a máxima concentração sanguínea em função de retardos de sua absorção. Como a cocaína é absorvida na forma não-ionizada e como o meio ácido do estômago propicia sua ionização, a absorção só vem a ocorrer no meio menos ácido do intestino delgado, retardando o processo como um todo (Chasin & Mídio, 1991). Já a via intranasal é a mais comum, sendo o marco inicial do uso dos derivados de cocaína pela população usuária (Siegel, 1982; Murphy et al., 1989; Du Pont, 1991; Cornish & O’Brien, 1996; Hatsukami & Fischman, 1996; Barrio et al., 1998; Ferri & Gossop, 1999; Dunn & Laranjeira, 1999; Weaver & Schnoll, 1999; Ferri et al., 2004), embora usuários de crack pareçam iniciar tal histórico com o próprio crack (Guindalini et al., 2006).

Quando comparada às vias intravenosa e fumada, a via intranasal produz concentrações plasmáticas menores que se estendem por prolongado período de tempo (Chasin & Mídio, 1991). Já a via fumada resulta na maior rapidez de aparecimento e intensidade dos efeitos, embora apresente velocidade de absorção e concentração plasmática de pico semelhante à via intravenosa (Chasin & Mídio, 1991; Hatsukami & Fischman, 1996; Díaz, 1998; Karch, 1999).

No que se refere aos padrões de uso da cocaína, conforme a via de administração, parece acontecer uma mudança drástica nos últimos anos. Devido ao advento do crack, as vias intranasal e intravenosa tem sido paulatinamente substituídas pela via fumada. Kandel & Yamaguchi (1993) demonstraram que a chance de um usuário de cocaína passar da via intranasal à fumada é três vezes maior que o recíproco, de tal forma que as razões parecem

embasar-se no alto potencial de abuso de crack (Chen & Anthony, 2004), associado principalmente à rapidez de início e magnitude dos efeitos (Miller et al., 1989; Ringwalt & Palmer, 1989; Du Pont, 1991; Hatsukami & Fischman, 1996). Porém, além dos aspectos farmacocinéticos e farmacodinâmicos, fatores ambientais e sociais têm considerável influência no poder de decisão e adesão do usuário ao crack (Brower & Anglin, 1987; Smart et al., 1991; Inciardi et al., 1993; Hatsukami & Fischman, 1996; Chasin & Mídio, 1997; Díaz, 1998). Entre os fatores ambientais destaca-se a facilidade de acesso (em termos de preço e distribuição) que possibilitou que pequenas quantidades de cocaína de alta qualidade se tornassem disponíveis a pessoas de baixa condição socioeconômica e a estudantes de ensino médio (Díaz, 1998). A facilidade de uso também deve ser considerada. Como o crack é fumado em cachimbos ou cigarros (de maconha ou tabaco), o uso da parafernália e da variedade de reagentes químicos então empregados ao uso de injetáveis tornou-se desnecessária (Inciardi et al., 1993; Hatsukami & Fischman, 1996), facilitando o uso e a adesão ao crack. Além disso, socialmente, o ato de fumar é amplamente aceito e os riscos associados ao crack, no que concerne ao contágio e transmissão por HIV, tem sido compreendidos como consideravelmente menores, constatação que atualmente tem sofrido profundas modificações, principalmente após o advento da forma injetável de crack (Hunter et al., 1995; Jacobs, 1999; Clatts et al., 2002; Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006; Rhodes et al., 2006)

Embora o crack seja pouco solúvel em água, o uso injetável tem sido relatado na Europa (Hunter et al., 1995; Rhodes et al., 2006) e nos EUA (Jacobs, 1999; Clatts et al., 2002; Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006). Quando se informa a respeito de seu uso intravenoso, deve entender-se que previamente é quimicamente modificado. Para isso, os consumidores o dissolvem em ácido (vinagre ou limão) e o convertem em um sal solúvel, possivelmente revertendo-o ao cloridrato de cocaína ou qualquer outro sal. Às vezes, o crack é dissolvido em álcool e aquecido em solução, de tal forma que o processo produz uma substância viscosa que entope as agulhas das seringas habitualmente utilizadas. Neste caso, costuma-se usar outro tipo de agulha, mais espessa e difícil de obter-se, facilitando o compartilhamento com todos os riscos que acarreta (Hunter et al., 1995). A prática geralmente se deve a mudanças na disponibilidade de cloridrato de

cocaína no mercado, indicando a preferência pela via endovenosa num setor da população consumidora (Hunter et al., 1995).

Assim, o título de “droga segura” dado previamente a crack, tem caído por terra, já que a via intravenosa tem introduzido na cultura comportamentos de risco que até então eram específicos à população de usuários de drogas injetáveis, a citar: (a) injeção diária; (b) compartilhamento do equipamento necessário à injeção (seringas, colheres, algodão e solventes necessários à dissolução da droga); (c) alguma vez na vida ter realizado o “backloading” de seringas; (d) ter freqüentado uma “shooting gallerie”; (e) alguma vez ter injetado com parceiros portadores de HIV ou Hepatite e, finalmente (f) ter desempenhado sexo desprotegido ou ter trocado sexo por droga com usuários de drogas injetáveis (IDU’s) (Clatts et al., 2002; Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006).

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