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4 PROJETO ORLA: princípios norteadores, arcabouço legal e institucional

4.1 Caracterização da zona costeira brasileira

4.1.1 ORLA MARÍTIMA: DEFINIÇÕES E DESDOBRAMENTOS

A orla constitui a faixa de contato da terra com um corpo de água e pode ser formada por sedimentos não consolidados (praias e feições associadas) ou rochas e sedimentos consolidados, geralmente na forma de escarpas ou falésias (MUEHE, 2004). Para o Ministério do Meio Ambiente (MMA), a orla pode ser definida como uma unidade delimitada pela faixa de interface entre a terra firme e o mar. Esse ambiente caracteriza-se pelo melhor balanço morfodinâmico, no qual interagem fenômenos terrestres e marinhos, sendo os processos geológicos e oceanográficos os elementos básicos de formação dos principais tipos de orla, como: costas rochosas, falésias, praias arenosas, praias de seixos, planícies lamosas, manguezais e formações recifais. A estes fatores se associam também condicionantes geográficas como o clima e a hidrografia para compor os ambientes naturais litorâneos (BRASIL, 2006). Moraes (2004, p. 44) em uma definição mais simplificada, define orla como a “borda marítima imediata de uma unidade espacial maior, que no planejamento brasileiro, é definida como a zona costeira, formada pelos territórios municipais do litoral, e também por uma faixa marítima (grifo nosso)”. Muehe (2004, p. 13) assevera que a alta dinâmica da orla está associada tanto a processos naturais, “como a processos antrópicos que podem acelerar os efeitos de erosão, conferindo à orla peculiaridades que requerem esforços permanentes para manutenção de seu equilíbrio”.

A vegetação predominante na orla está associada à vegetação de restinga e dunas, que segundo o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) é o conjunto de ecossistemas que compreende comunidades vegetais florísticas, situadas em terrenos predominantemente

arenosos, de origem marinha, fluvial, lagunar, eólica ou pela combinação destas. Estas comunidades vegetais encontram-se em praias, cordões arenosos, dunas e depressões associadas, planícies e terraços (CONAMA, 1999). O art. 3º, inciso I, da Lei nº 7.661/1988 diz que o zoneamento de usos e atividades na zona costeira deve dar prioridade à conservação e proteção das restingas, dunas e mangues.

A respeito dos limites de proteção da costa, o Decreto-lei nº 5.300/2004 define os limites2 para a orla, segundo os seguintes critérios: a) na zona marítima, até a isóbata de 10 metros, profundidade na qual a ação das ondas passa a sofrer influência da variabilidade topográfica do fundo marinho, promovendo o transporte de sedimento, e b) na zona terrestre, 50 metros em áreas urbanizadas ou 200 metros em áreas não urbanizadas, demarcados na direção do continente a partir da linha de preamar ou do limite final de ecossistemas, tais como restingas, manguezais, lagunas, etc. (BRASIL, 2004). A Figura 3 desenha os limites da orla marítima no Brasil. A proposta de delimitação adotada combina os critérios de fragilidade e/ou vulnerabilidade natural como erosão e ritmos de ocupação ocorrentes no litoral brasileiro. Estabelece, portanto, uma faixa de proteção da costa na intenção de manter as características paisagísticas e prevenir quanto à elevação do nível do mar, contemplando o "princípio da precaução", podendo aumentar ou diminuir dependendo da tendência erosiva observada, e da elevação das marés (Figura 3) (FREIRE, 2002; OLIVEIRA; NICOLODI, 2012).

Figura 3 – Representação dos limites adotados para a orla marítima do Brasil.

Fonte: Brasil, 2006, p. 26.

2 A proposta de delimitação da orla marítima representa uma inovação na gestão da zona costeira, e foi construída tendo por referência a experiência internacional sobre a matéria e a avaliação do conhecimento existente sobre a dinâmica costeira do litoral brasileiro. Trata-se, assim, de proposta que contempla o "princípio da precaução", pois envolve localidades cuja dinâmica ambiental ainda não é suficientemente estudada (BRASIL, 2006, p. 29).

Segundo Clark (1995) os limites estabelecidos para a orla em outros países do mundo são variados, chegando até 500 metros como na Grécia, enquanto na Espanha a faixa de proteção pode variar de 100 a 200 metros. Os limites mais largos são adotados tendo em vista as restrições específicas de alguns países como instalações de novas indústrias na orla, proteção de manguezais, proibição de casas de veraneio, etc. As larguras mais frequentes variam de 100 a 50 metros (CLARK, 1995). Cabe ressaltar que os limites estabelecidos no Brasil como em outros países podem ser considerados limites de planejamento e ocupação especial, pois nem os limites do Projeto Orla são fixos. Além disso, estes limites não significam, a rigor, zonas de proteção (como no caso da Espanha), mas sim um limite dentro do qual se deve realizar um planejamento participativo.

Moraes (2007) elucida que a orla constitui um espaço multiuso sujeita a sérios conflitos socioambientais resultantes do seu processo de uso e ocupação, quando não seguem os princípios norteadores da legislação vigente, que abarcam o desenvolvimento sustentável. O Projeto Orla salienta a importância em distinguir e mensurar a definição do perfil socioeconômico para cada trecho da orla para fins de gestão, como também para mapear as relações sociais e atividades econômicas locais. Para isso, foram definidas no projeto duas atividades praticadas, sendo a primeira delas àquelas “praticadas no espaço da orla”, como: comércio (quiosques, vendedores ambulantes, restaurantes, bares), prestação de serviços (aluguel de barcos e outros equipamentos, cursos de surf, mergulho, etc.), manifestações culturais (festas religiosas ou cívicas), lazer (banho de mar, pesca, esportes náuticos, esportes praticados na areia, recreação, etc.), extrativismo, maricultura, atividades do setor portuário e petrolífero. O segundo grupo compõe as atividades “praticadas no entorno”, que geram grande impacto sobre o espaço costeiro, como: indústrias, construção civil, mineração, agricultura, pecuária, extrativismo, exploração de óleo e gás, entre outras (BRASIL, 2006). Considera-se que os levantamentos socioeconômicos acrescentam elementos de avaliação dos impactos resultantes da ação antrópica sobre o ambiente físico e, ao mesmo tempo permite melhores condições de planejamento sobre o espaço.

A valorização da zona costeira e seus atributos naturais, paisagísticos e biológicos têm sido crescentes, devido às suas características naturais e potencialidades para as atividades produtivas, especialmente no tocante ao turismo. É visto nos balneários, nas últimas décadas, a implantação de resorts e de condomínios de luxo vinculados a uma política imobiliária de crescimento, levando às cidades a um consumo excessivo de recursos naturais, as quais não têm condições de suporte, devido ao aumento da população em períodos sazonais. Esse ritmo de ocupação desconsidera muitas vezes a comunidade local e afeta ambientes significativos

de suporte/proteção à orla, como os manguezais, as matas de restinga, os recifes de corais, entre outros considerados de alta fragilidade e alta produtividade biológica (BRASIL, 2010a). Contudo, com o aumento da antropização decorrente destas atividades, planejar e instituir um modelo de gestão torna-se imprescindível. As iniciativas de um novo modelo de gestão da orla estão vinculadas em grande parte a uma perspectiva sobre os rumos desejados, pois a partir da multiplicidade das percepções sociais e sistemas de valores, se possam alcançar algum estilo de governança mais prudente e equitativo (MARTINES ALIER, 2011; VIEIRA; BERKES; SEIXAS, 2005; OLSEN, 2000).

- Tipos genéricos de orla marítima, formas de acesso e estágios de urbanização

Os espaços definidos na orla devem ser compreendidos para fins de planejamento e gestão. Suas definições metodológicas são utilizadas para o desenvolvimento das ações do Projeto Orla, constantes no manual de orientação e metodologia do projeto. Duas tipologias foram definidas com base em dois critérios, sendo o primeiro deles, a avaliação de características fisiográficas, incluindo os processos naturais e antrópicos e, um segundo critério, que busca verificar os índices de ocupação humana instalada (BRASIL, 2006). Por fim, definiram-se duas tipologias, as quais enfocam: a) a forma da orla, sua posição e características físicas e, b) os níveis de ocupação e de adensamento populacional na orla (BRASIL, 2006).

A primeira tipologia, além de descrever a forma da orla, sua posição e características físicas, também descreve as condições gerais de qualidade da água litorânea e outros aportes terrestres, como mostra o Quadro 2. Tais elementos se mostram importantes para a compreensão e conhecimento dos profissionais que devam atuar na implementação de projetos de gestão na orla.

Quadro 2 – Forma da orla, posição e características físicas. TIPOLOGIA DA

ORLA

DESCRIÇÃO

Orla Abrigada

Ambiente litorâneo constituído por golfos, baías, enseadas, estuários ou praias protegidas da incidência direta de ondas, com taxa de circulação restrita, e, consequentemente, baixa taxa de renovação da água. Esse tipo de orla raramente apresenta sistemas de dunas frontais desenvolvidas. Frequentemente exibe amplas planícies com presença de costões e/ou ecossistemas inundáveis do tipo marismas, manguezais, campos de gramíneas submersas, planícies lamosas, etc. Geralmente apresenta

sedimentos de granulometria fina (areia fina e muito fina, siltre e argila) e salinidade sujeita a flutuações acentuadas em função de sua maior interação com os sistemas continentais e da baixa dinâmica de origem marinha. Denota-se a presença de praias com formato

predominantemente côncavo, típicas de litorais recortados e com

face pouco ou não voltada para a direção de maior incidência da ação dominante dos ventos e ondas.

Orla Exposta

Ambiente litorâneo constituído por costões rochosos ou praias oceânicas, com elevada taxa de circulação e renovação de água. Geralmente caracterizada por praias abertas, com zona de arrebentação bem desenvolvida e presença frequente de sistemas de dunas frontais, que podem variar quanto ao nível de desenvolvimento e quanto à presença de vegetação fixadora. As praias apresentam formato de baixa

concavidade, sendo mais retilíneas e de orientação normal à direção de

maior incidência da ação dominante dos ventos e ondas, com sedimentos geralmente compostos por areia grossa, média e fina.

Orla Semiabrigada

Apresenta características intermediárias entre as áreas expostas e abrigadas. O sistema de similaridade com o de praias protegidas, porém o tamanho ou orientação da praia permite alguma ação hidrodinâmica periódica relacionada com fenômenos meteorológicos e /ou oceanográficos. Frequentemente ocorrem, nesse tipo, praias abertas

para a entrada de baías ou de enseadas muito amplas, protegidas da ação direta dos sistemas frontais predominantes, apresentando comumente formato côncavo ou de baixa concavidade, com a

presença de granulometria constituída por areia média a muito fina. Podem ocorrer trechos mais sujeitos à ação de ondas e praias mais protegidas em função de processos de refração e difração.

Fonte: Brasil, 2006, p. 29-31.

A segunda tipologia descreve os níveis de ocupação e de adensamento populacional na orla, fundamentais para compreender os aspectos socioeconômicos vigentes em cada trecho. Estes elementos permitem traçar referências para a implantação de ações e definir estratégias de gestão a serem implementadas, inclusive identificando as situações que requerem ações mais preventivas ou mais corretivas (BRASIL, 2006). O Quadro 3 mostra uma síntese dos quatro tipos genéricos de orla, segundo estudos dos Ministérios do Meio Ambiente e do Planejamento, Orçamento e Gestão, para o Projeto Orla.

Quadro 3 – Níveis de ocupação e de adensamento populacional na orla.

TIPOLOGIA DA ORLA DESCRIÇÃO

Orla Não Urbanizada Refere-se às áreas de baixíssima ocupação, contendo paisagens com

sanitária e estética, geralmente associada a atividades rurais; são os

habitats principais das populações ditas “tradicionais”. Trata-se de

áreas de difícil acesso ou até isoladas.

Orla em Processo de Urbanização

São as áreas de baixo ou médio adensamento de construções e população, apresentando indícios de ocupação recente ou em processo de ocupação atual, incluindo ainda os balneários. São áreas com paisagens parcialmente antropizadas, em processo de mudança cultural, podendo ocorrer atividades rurais remanescentes, e com médio potencial de poluição sanitária e estética.

Orla com Urbanização Consolidada

Refere-se às áreas de médio a alto adensamento de construções e população, apresentando paisagens altamente antropizadas, com múltiplos usos e um alto potencial de poluição sanitária e estética. Trata-se de orla claramente citadina, variando segundo os níveis de hierarquia urbana.

Orla de Interesse Especial

São espaços destinados a usos específicos definidos institucionalmente em categorias especiais como: militares; de tráfego aquaviário; com equipamentos geradores de energia; de unidades de conservação; tombadas; de reservas indígenas, comunidades tradicionais ou remanescentes de quilombolas.

Fonte: Brasil, 2006, p. 31-32.

Alguns trechos de orla com urbanização consolidada apresentam, em geral, suas praias e áreas de costão facilmente acessíveis por vias lindeiras, localizadas nas praias ou nas encostas dos costões, o que pode causar danos ambientais como a destruição de faixas de areia, dunas e vegetação nativas, como é o caso do município de Itapema. Genericamente, a metodologia do Projeto Orla exemplifica quatro formas de acesso à praia, sendo: a) duas diretas (por avenida ou rua beira-mar) e b) duas indiretas3 (ruas sem saídas ou por acessos de pedestres, que podem ser simples passagens ou generosos jardins). Cabe ressaltar que é ilegal o impedimento do acesso à praia por construções ou muros, já que esta é bem de uso comum do povo. (BRASIL, 2006). Com relação ao estágio de urbanização, a orla pode ser caracterizada por três categorias:

a) horizontais (orlas total ou parcialmente ocupadas por casas ou edifícios de, no máximo três andares, em mais de 50% da área;

3 A partir da década de 1960, nos loteamentos destinados aos segmentos de maior poder aquisitivo, como as de Balneário Camboriú (SC) ou de Guarujá (SP), iniciou-se a implementação de projetos urbanísticos, nos quais a praia não está mais acessível aos automóveis, chegando-se a ela por caminhos para pedestres, com estacionamentos em ruas vizinhas ou espaços especialmente construídos para tal fim (BRASIL, 2006). Esta configuração contempla também a orla do bairro Meia Praia do município de Itapema, objeto de estudo desta pesquisa.

b) verticais (orlas total ou parcialmente ocupadas por casas ou edifícios de, mais de três andares, em mais de 50% da área, podendo ainda ser subdividida em orla verticalizada baixa (suas construções não ultrapassam cinco andares ou 18 metros de altura) e orla verticalizada (suas construções ultrapassam, na sua maioria, cinco andares ou 18 metros de altura, formando paredes);

c) mista (não se observa na orla uma predominância numérica e visual de nenhum dos tipos apontados de edificações).

A orla, seja horizontal ou vertical, pode ser qualificada em função da configuração paisagística da urbanização, no que se refere à existência ou não de vegetação dentro dos lotes e nos espaços públicos, como arborização e gramados ou ainda, remanescentes da flora nativa (restingas ou manguezais) (BRASIL, 2006). As possibilidades de configuração são:

a) orla rústica: apresentam lotes grandes, esparsos, contínuos ou não, entremeados de vegetação nativa, pomares ou coqueirais;

b) orla bairro jardim: apresentam lotes grandes, edifícios distanciados uns dos outros, sendo todos os espaços ocupados por jardins, ruas arborizadas e as calçadas por vezes gramadas;

c) orla urbana comum: o loteamento contem espaços ocupados por jardins de pequeno porte, sendo estes jardins convencionais e ruas arborizadas. Os edifícios situados na orla urbana comum seguem recuos mínimos exigidos pela legislação vigente (BRASIL, 2006).

As formas de configuração da orla são encontradas em toda a costa brasileira, principalmente nas áreas semiconsolidadas urbanas e também nas áreas urbanas consolidadas, tendo em vista a forte influência da atividade turística e, da especulação imobiliária nestes espaços. Eis a relevância do conhecimento destes elementos, que configuram e caracterizam os trechos da orla segundo os aspectos ambientais, socioeconômicos e espaciais para uma gestão eficaz e sustentável.