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CAPÍTULO 2. Código e enciclopédia.

3.5. Os atores do discurso.

A estratégia semiótica apresentada neste trabalho se vale de “atores” para compreender a estrutura hermenêutica de um texto. As noções a seguir expostas são essenciais para que possamos compreender a abertura inerente às obras produzidas pelo ser humano, bem como os limites a que o destinatário está adstrito em sua atividade interpretativa.

A participação do leitor de uma obra é decisiva para a construção do seu significado. Como foi exposto no capítulo anterior, é o destinatário que “preenche” de significado os significantes de uma expressão, segundo a enciclopédia com que trabalha. A atividade “preenchedora” do destinatário, por sua vez, não é totalmente aberta, pois é condicionada à dinâmica interna do próprio texto – em uma perspectiva semântica – como também sua eficácia está vinculada a uma delimitação do contexto em que se insere a expressão, algo que somente se pode conceber através de uma cooperação textual entre os signos veiculados pelo autor e a perspectiva pragmática do seu intérprete.

A dialética autor-leitor revela toda sua complexidade quando observamos que para a compreensão de um texto não devemos considerar apenas o que está escrito, mas também aquilo que não é por ele dito. O texto está, pois, entremeado de espaços brancos, de interstícios a serem preenchidos, e quem o emitiu previa que esses espaços e interstícios seriam preenchidos e os deixou brancos por duas razões. Antes de tudo, porque um texto é um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu; e somente em casos de extremo formalismo, de extrema preocupação didática ou de extrema repressividade o texto se complica com redundâncias e especificações

ulteriores – até o limite em que se violam as regras normais de conversação. Em segundo lugar, porque, à medida que passa da função didática para a estética, o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, embora costume ser interpretado com uma margem suficiente de univocidade. Todo texto quer que alguém o ajude a funcionar. (Cf. ECO, 1986:37).

O autor de um texto traça uma estratégia de interpretação para sua obra que pressupõe um comportamento hermenêutico do seu destinatário para a fruição integral dos significados veiculados pelas expressões. As expectativas do autor correspondem, dessa forma, a um

leitor-modelo traçado para que sua obra seja compreendida de acordo com suas intenções.

O leitor-modelo é uma estratégia semiótica de que se vale o autor – conscientemente

ou não – para a fruição de sua obra. Como estratégia que é, deve o leitor-modelo ser compreendido como um tipo ideal de comportamento do intérprete que pode ser correspondido em diferentes graus pelo leitor empírico. Daí a riqueza de interpretações que obras mais complexas – dotadas de maior grau de espaços brancos – despertam em seus destinatários.

Como se daria essa estratégia semiótica nos textos jurídicos? Ora, por um lado, como dissemos, os diplomas legais não são o lugar mais adequado para figuras de linguagem que valorizem a tarefa do intérprete, como é o caso das citações implícitas e das alegorias. Entretanto, cremos que o conceito de leitor-modelo pode ser particularmente útil para a hermenêutica jurídica, pois a abertura dos seus textos se encontra presente na forma com que se dispôs o ordenamento legal a se organizar.

De fato, o ordenamento jurídico foi concebido como a progressiva especificação de textos legais, desde o seu grau mais amplo, a Constituição, até seu caráter mais específico, que é a sentença individual. Essa gigantesca rede de conexões e referências textuais se encontra permeada de espaços brancos que tornam necessária a atividade intelectiva do seu intérprete. Ressalte-se que os espaços brancos podem ser resultados de uma estratégia

semiótica intencional do legislador, como as regras de interpretação postas na Lei de Introdução ao Código Civil, ou podem resultar da aplicação dos princípios jurídicos dispostos na Constituição Federal na solução de casos específicos, hipótese em que não foi traçada

explicitamente uma estratégia semiótica, mas que ela se impõe pela própria natureza diretiva

dos valores jurídicos.

Em face das limitações deste trabalho, não iremos fazer uma exposição detalhada da abertura dos textos jurídicos, mas entendemos que ela pode facilmente ser compreendida por todos aqueles que de alguma forma já tentaram interpretar um diploma legal.

Ao lado do conceito de leitor-modelo, podemos apontar uma outra estratégia semiótica, desta vez formulada pelo próprio leitor-empírico para a compreensão de um texto: a noção de autor-modelo.

O autor-modelo é uma estratégia textual que é capaz de informar ao leitor empírico

correlações semânticas do texto interpretado. De um lado, conforme já dissemos até aqui, o autor empírico, como sujeito da enunciação textual, formula uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos de própria estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade de sujeito do enunciado, em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual. Mas, de outro lado, também o leitor empírico, como sujeito concreto dos atos de cooperação, deve situar para si uma hipótese de autor, deduzindo-a justamente dos dados de estratégia textual. (Cf. ECO, 1986:46).

O conceito de autor-modelo não é totalmente estranho ao mundo jurídico, pois seus

operadores convivem há tempos com o esquema interpretativo denominado de vontade do

legislador, embora tal esquema seja mais uma estratégia retórica do que propriamente

A concepção da idéia de autor-modelo substitui com extrema vantagem o tortuoso conceito de vontade do legislador. O conceito era empregado de maneira totalmente equívoca, se referindo a conteúdos de natureza diferentes. Deveras, a idéia de vontade do

legislador referia-se a um conceito ambíguo que flutuava entre o que formulamos como autor empírico e autor modelo, nesse último ao menos no que tange ao seu aspecto transcendental,

mas não no seu esquema conceitual de estratégia semiótica, pois o papel do intérprete-jurídico é posto sempre de forma discreta e limitada.