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Ao longo das últimas décadas, como já anunciado, observamos uma evolução do conhecimento sobre a avaliação da aprendizagem no Brasil cuja marca é a crítica ao seu caráter mensurador e classificatório. Nesse contexto, é válido salientar que, a década de 1990, em comparação as anteriores, foi marcada por políticas que, tendo como objetivo regularizar o fluxo de alunos ao longo da escolarização, desencadearam um debate amplo sobre a avaliação da aprendizagem nas redes de ensino. Expressas em propostas como os Ciclos de Aprendizagem e os Parâmetros Curriculares Nacionais tais políticas têm incentivado os professores a buscarem novas possibilidades de pensar e fazer o trabalho docente o que tem contribuído significativamente para questionar a lógica dominante em que avaliação vem sendo operada nas instituições escolares.

Em relação à organização da escolaridade em ciclos, Mainardes (2007) afirma que a implementação dessa política, ao se apresentar como uma das iniciativas de reorganização do Ensino Fundamental, tem levado o Brasil a buscar uma educação menos excludente, já que os ciclos objetivam estabelecer uma nova organização dos tempos e dos espaços escolares capaz de superar as limitações do regime seriado, principalmente, em virtude das altas taxas de evasão, repetência e disparidade idade/série. Embora a política de ciclos venha se apresentando, nos últimos anos, como uma proposta inovadora e inclusiva e, ainda, como uma alternativa viável para superar o sistema seriado, Mainardes (2007) mostra que várias tentativas de superação do fracasso escolar foram experimentadas através de programas de não-reprovação, de pequena abrangência, criados

a partir do final da década de 1950 como, no caso, das experiências de promoção automática e programas de maior abrangência, implementados nos anos de 1980 a exemplo do Ciclo Básico de Alfabetização.

Freitas (2003) corrobora com a idéia de que os ciclos ao redefinirem tempos e espaços escolares assumem o compromisso coletivo com a aprendizagem efetiva de todos os alunos. Destaca, entretanto, que são fundamentais à organização de tempos e espaços da escola a instauração de novas relações de poder entre o alunado e o professor de modo que se possa formar para a autonomia favorecendo, desta forma, a autorganização dos estudantes. Isto é, a noção de ciclos deve não apenas englobar vivências associadas aos interesses de certa faixa de desenvolvimento e as situações socioculturais da criança, mas atuar com a tarefa de formar para a vida propiciando o desenvolvimento de novas relações dos indivíduos entre si e com as coisas. Assim, ao elucidar as condições propicias para o funcionamento dos ciclos, Freitas (2003) alerta:

(...) os ciclos não podem constituir-se em uma mera “solução pedagógica” visando superar a seriação - são instrumentos de desenvolvimento de novas relações sociais em antagonismo com as relações sociais vigentes (...). Estão num jogo contraditório entre a lógica da escola/avaliação e uma nova lógica de desenvolvimento. Professores, pais e estudantes devem compreender adequadamente a função dos ciclos e deixar de vê-los de um ângulo exclusivamente metodológico-pedagógico. Devem vê-los como instância política de resistência à escola convencional e que junto aos movimentos sociais avançados irá ajudar a conformar uma nova sociedade, na qual homens não sejam exploradores de homens (p. 68).

Freitas (2003) considera os ciclos como mecanismos de resistência à lógica seriada e que, portanto, não podem ser vistos apenas como uma solução técnico- pedagógica, mas como oportunidade para se elevar a conscientização e a atuação de docentes, alunos e pais de modo a revelar os reais obstáculos para o desenvolvimento da escola e da sociedade. Para o autor, a política de ciclos, sob

essa perspectiva, faz emergir um debate intenso sobre os processos avaliativos, já que a lógica da avaliação não é independente da lógica da escola. Desta forma, a avaliação, até então concebida como classificatória e seletiva, passa a ser

questionada. Isto é, os resultados da avaliação, que se baseavam em

processos de verificação pontuais como indicativos, ou não, do domínio de conhecimento, são contestados e passam a ser ressaltados a sua dimensão formativa, direcionada a diagnosticar e estimular o avanço do conhecimento.

Um enfoque semelhante pode ser encontrado na proposta da Rede de Ensino Municipal de Recife (2003) que, ao se pautar na qualidade social da educação, pressupõe o desenvolvimento de ações nas quais a avaliação se constitua como instrumento de auto-regulação do processo de ensino e aprendizagem. Ou seja, que possibilite ao professor acompanhar o processo de aprendizagem dos alunos e, ao mesmo tempo, monitorar o seu ensino de modo a vir a saber que experiências precisam ser proporcionadas para se promover a construção de novos conhecimentos. Neste ângulo, a proposta de ciclos prevista pela Rede Municipal de Ensino do Recife propõe uma ruptura com os processos classificatórios que visam à obtenção dos resultados quantitativos, desprovidos de significado do acompanhamento das aprendizagens dos educandos, passando a contemplar seus percursos individuais que assumem um sentido dinâmico.

A possibilidade da organização do Ensino Fundamental em ciclos encontra-se prevista em vários dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96, tais como no parágrafo 1º, inciso IV, do Artigo 32 que admite aos sistemas de ensino adotar essa modalidade de estruturação na Educação Básica, bem como o Artigo 23 que faculta a organização do Ensino Fundamental em “séries anuais,

períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não- seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar” (p. 3). A intenção flexibilizadora imbuída no texto da Lei tem representado uma alternativa radical para os estabelecimentos de ensino à medida que se apresenta como uma tentativa de superar a excessiva fragmentação do currículo seriado criando também a possibilidade de se repensar a avaliação da aprendizagem em bases distintas de modo a enfrentar um dos maiores problemas da cultura escolar presente nos sistemas de ensino que é a reprovação.

Paralelo ao intento de tornar flexível a organização dos sistemas de ensino, a atual legislação educacional brasileira preconiza uma avaliação que priorize a qualidade da aprendizagem do educando a partir de um processo de acompanhamento do desempenho escolar como base para a verificação da consecução dos objetivos propostos. Essa nova função é exposta na alínea (a) do inciso V, do Artigo 24 que dispõe sobre a verificação do rendimento escolar: “avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais” (p. 35). Nesse sentido, podemos dizer que a nova modalidade de organização escolar fez surgir um debate intenso sobre os processos avaliativos já que os mesmos passam a ser tomados como resultantes de um processo dinâmico e intrínseco do fenômeno da aprendizagem questionando, portanto, a superação do sistema de avaliação por provas, notas e exames.

É válido pontuar que embora sem referência à denominação ciclos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5.692/71 já vislumbrava a possibilidade de

novas formas de organização da escola, ao prever, ao lado das séries, alternativas de avanços progressivos no percurso escolar. A legislação educacional brasileira anterior também já se referia a uma avaliação da aprendizagem de bases formativa e à prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos, bem como a análise do desempenho global do aluno através de um acompanhamento contínuo.

Embora o regime de ciclos, de certa forma, já estivesse previsto na Lei 5.692/7114

ao lado da avaliação enquanto parte fundamental do processo de acompanhamento do desempenho escolar como base para a consecução dos objetivos propostos, é válido dizer que os elementos mencionados manifestaram crescente tendência de expansão, especialmente a partir da Lei 9.394/96.

A opção pela organização da escolaridade em ciclos é, também, referendada

pelos Parâmetros Curriculares Nacionais15 que ao se apresentarem como uma

referência nacional de currículo aberto, flexível e de qualidade para a educação no Ensino Fundamental, afirmam favorecer uma concepção menos parcelada do conhecimento para garantir melhores condições de aprendizagem aos alunos. Desse modo, a lógica de opção por ciclos adotada pelos Parâmetros Curriculares

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Nessa linha, Hoffmann (2005) afirma que a legislação educacional 5.692 introduzida, no Brasil, nos

anos 70, já trazia uma importante contribuiçãoàreflexão sobre o sentido da avaliação de bases

formativa. Assim, a autora pontua que a atual Lei 9.394/96 pouco altera o texto da lei anterior e adverte que a idéia de ”novidade” e estado de inquietude impresso, hoje, por muitos profissionais da

educação a avaliação frente à nova lei decorrem, provavelmente,do fato de que os pressupostos

delineados para a prática avaliativa nunca foram compreendidos ou seguidos desde a antiga lei.

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O referido documento encontra-se organizado em dez volumes. O primeiro é introdutório e apresenta sua evolução, fundamentos e objetivos. Os sete volumes subseqüentes abrangem as áreas de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, História e Geografia, Artes e Educação Física. Os dois últimos apresentam os temas transversais: Ética, Meio Ambiente e Saúde. É válido pontuar que embora os Parâmetros Curriculares Nacionais venha orientando a política educacional e influenciando a formação dos professores, várias críticas lhes são conferidas. Rocha (1998), por exemplo, diz que o documento não está afinado com a realidade sócio-político-cultural e pedagógico do Brasil e, portanto, traz uma discussão apontando inúmeras de suas incoerências. De modo geral, a autora afirma que os Parâmetros Curriculares Nacionais não rompe com a idéia de seriação visto que para cada etapa do trabalho escolar têm-se uma listagem de conteúdos, objetivos, propostas de atividades e processos avaliativos definidos. É, pois, uma espécie de “currículo mínimo nacional” de bases homogeneizante com propósitos de facilitar a avaliação de ensino em âmbito nacional.

Nacionais se estabelece pelo reconhecimento de que a proposta é uma tentativa de superar a segmentação excessiva produzida pelo regime seriado e buscar princípios de ordenação que possibilitem maior integração do conhecimento. No referido documento, a avaliação da aprendizagem aparece como favorecedora da melhoria da qualidade do processo educativo sendo compreendida, portanto, como:

elemento integrador entre a aprendizagem e o ensino; conjunto de ações cujo objetivo é o ajuste e a orientação da intervenção pedagógica para que o aluno aprenda da melhor forma; conjunto de ações que busca obter informações sobre o que foi aprendido e como; elemento de reflexão contínua para o professor sobre sua prática educativa; instrumento que possibilita ao aluno tomar consciência de seus avanços, dificuldades e possibilidades; ação que ocorre durante todo o processo de ensino e aprendizagem e não apenas em momentos específicos caracterizados como fechamento

de grandes etapas de trabalho (BRASIL, 2000, p. 83-84).

Nessa direção, a concepção de avaliação adotada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais demonstra ultrapassar a visão tradicional, que tende a se restringir ao julgamento dos educandos, para ser compreendida como uma prática intrínseca do processo educativo voltada não apenas para o produto, mas para o processo que o aluno desenvolve para aprender. Avaliar, sob esse ângulo, pressupõe, ainda, considerar esse ato como um processo coletivo e, portanto, que se aplica não apenas ao aluno, considerando as expectativas de aprendizagem, mas às condições oferecidas para que isso ocorra. Avaliar a aprendizagem implica, portanto, avaliar o ensino que deverá cumprir sua função, qual seja, fazer o educando aprender mediante adaptações sucessivas da ação didático-pedagógica às suas diferentes necessidades a fim de que possam progredir em suas aprendizagens.

Um projeto de formação escolar não caracterizado apenas como uma sucessão de programas anuais também foi proposto por estudiosos de âmbito internacional como é o caso de Perrenoud (2004), que propõe uma reflexão sobre as

conseqüências da implementação dos ciclos de aprendizagem plurianuais. Para o autor, os ciclos devem atuar no sentido de criar um “espaço-tempo” de formação mais amplo de modo que torne possível a orientação de percursos de formação individualizados em função, de um lado, dos conhecimentos adquiridos e da trajetória de cada aluno e, de outro, do tempo que resta até o final do ciclo e dos recursos disponíveis. A questão é, então, intensificar a qualidade do atendimento docente de modo que os alunos atinjam os objetivos no final da formação escolar ao mesmo tempo, mas, se necessário for, tomando caminhos diferentes. A idéia de individualização dos percursos e diferenciação dos atendimentos não diz respeito, pois, a um processo de individualização do ensino, evidenciando-se, assim, que:

A individualização dos percursos de formação não é,

conseqüentemente, senão uma resultante da diferenciação. A individualização dos percursos de formação não tem nada a ver com o que se chama, às vezes, de “ensino individualizado” para designar uma forma de tutela. A diferenciação não exclui momentos de tutela, mas não é nem possível nem necessário fazer da escolaridade uma seqüência de lições particulares (PERRENOUD, 2004, p. 46).

A individualização dos percursos de formação caracteriza-se, pois, pela busca de otimização dos processos de aprendizagem e não por uma série de aulas particulares, muito menos por uma mera adaptação das tarefas e das situações de aprendizagem aos alunos. Perrenoud (2004) complementa afirmando que se os ciclos de aprendizagem plurianuais forem concebidos, antes de tudo, como meio de fazer com que um número maior de alunos aprenda, faz-se necessário que essa ambição promova a avaliação da aprendizagem escolar a uma perspectiva formativa. Isso porque, uma avaliação de base formativa tende a contribuir sensivelmente para a regulação das aprendizagens e dos percursos de formação dos alunos a partir da observação de uma série de elementos pertinentes, inclusive a relação com o saber, a integração do aluno ao grupo-classe, suas atitudes em sala de aula, seu entorno, o peso de conhecimentos externos à escola entre outros.

Conforme podemos observar, Perrenoud (2004) atribui uma alta exigência a função exercida pelo professor em sala de aula, pois os ciclos de aprendizagem plurianuais exigem a individualização dos percursos de formação visando à obtenção dos mesmos conhecimentos, grosso modo, no mesmo tempo, mediante a efetivação de uma pedagogia diferenciada eficaz. Tais práticas demandam, portanto, novas competências de organização do trabalho, de gestão dos espaços-tempos e dos grupos com ferramentas adequadas de orientação e de avaliação. Dessa forma, os dispositivos de ensino e aprendizagem empregados pelo professor durante o ano letivo deverão, pois, ser operacionalizados a partir de diversificadas e audaciosas formas revelando que as virtudes de um ciclo de aprendizagem só irão se manifestar quando uma equipe pedagógica tiver dominado a complexidade do sistema e as dificuldades da cooperação profissional que perpassam o trabalho docente.

Diante do exposto, podemos dizer que a amplitude da mudança assumida pela organização da escolaridade em ciclos pode, ou não, indicar um progresso importante na democratização das práticas avaliativas em função da concepção do tipo de proposta implementada pelos atores sociais. Desta forma, os ciclos podem vir a representar um avanço no campo da pedagogia se forem levados a provocar mudanças profundas nas práticas, organização da formação e do trabalho escolar. Isto é, se servirem de quadro integrador e de ponto de apoio a uma evolução do ofício do professor por meio de uma reflexão sobre os novos “espaços-tempos” de formação dos alunos, seus objetivos e sua gestão, uma avaliação de bases formativas, enfim, sobre os dispositivos que orientam uma pedagogia diferenciada. No entanto, a política de ciclos pode, ainda, não mudar nada de essencial e até mesmo agravar as desigualdades se for pura e simplesmente tomada como um meio de supressão drástica da reprovação dentro de um ciclo.