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FLORIANÓPOLIS, ESPAÇO GEOGRÁFICO DA PESQUISA

5 PRÁTICAS CIDADÃS

5.2 OS DISCURSOS DA SOCIEDADE CIVIL

Da mesma forma que nos meios acadêmicos a ideia de cidadania no consumo mostra-se controversa, entre as organizações da sociedade civil que se dedicam ao tema é possível encontrar essas contradições, notadamente a tensão entre, de um lado, o direito de pagar o preço justo por produtos e serviços que devem ser acessíveis a todos os membros da população como sinônimo de inclusão social e, de outro, a preocupação com a coletividade, seja ela local, nacional ou global, especialmente no que concerne às suas consequências ambientais e sociais.

Entre os movimentos, as demandas são variadas: movimentos de defesa dos direitos do consumidor, movimentos anticonsumo e movimentos por consumo consciente. Outros, ainda, buscam valorizar características territoriais e sistemas de produção tradicionais, como indicação geográfica, comércio justo, economia solidária e slow food. (TRENTMANN, 2007; PORTILHO E CASTANEDA, 2009). Há, então, inúmeras iniciativas no mundo do consumo ocidental que podem ser consideradas formas de resistência. São obviamente iniciativas louváveis, às quais aderem pessoas que escolheram uma atitude clínica e não cínica sobre o atual estado de coisas. Mas, impossível deixar de ser crítica, quando vou à feirinha de produtos orgânicos da Lagoa da Conceição e constato que os preços são exorbitantes e que apenas os mais privilegiados podem comprar. Talvez o comércio justo e o consumo verde sejam mais um fetiche da Sociedade de Consumo que mantém a distinção entre classes socioeconômicas e estilos de vida. Fetiche ou não, analisados mais de perto, o que estes movimentos têm em comum é o fato de se localizarem na esfera do consumo, mas tendem a emitir estímulos contraditórios para os consumidores.

Afastando-se da ideia de consumo político, mas propondo-se a estimular práticas de consumo consciente/sustentável, cada vez mais empresas buscam atuar de forma socialmente responsável, ou, pelo menos, dizer-se socialmente responsáveis.

De acordo com o instituto Ethos,

responsabilidade social empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a

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diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais.

Através da publicidade de suas ações social e ambientalmente responsáveis e, eventualmente, agregando selos certificadores às embalagens de seus produtos, as empresas, tanto produtoras quanto de varejo, buscam educar e convencer consumidores/compradores a fazerem suas escolhas baseadas em argumentos “verdes”.

Além disso, ações governamentais, como campanhas do ministério do meio ambiente, objetivam conscientizar os consumidores sobre os impactos sociais e ambientais de seus atos cotidianos de consumo.

São discursos oriundos de diferentes fontes que apresentam alguns pontos de convergência, sendo o mais evidente o fato de que todos versam sobre os atos cotidianos de consumo e se propõem a estimular a atitude consciente, crítica, ética ou sustentável do consumidor. As controvérsias entre eles caracterizam um campo de disputas pela hegemonia no governamento dos indivíduos (MILLER e ROSE, 2008).

Assim, é principalmente o discurso sobre consumo consciente que, no Brasil, pode ser acompanhado diariamente na mídia109, em pronunciamentos de líderes político, em geral ligados à questão ambiental, na publicidade de empresas e em ações de organizações não governamentais que se dedicam a questões ambientais e sociais.

Entre as mais fortes e representativas instituições que trabalham com o discurso do consumo consciente, no Brasil, está o Instituto Akatu, criado pelo Instituto Ethos, entidade empresarial que se ocupa de questões de responsabilidade social. Há alguns anos, o instituto Ethos percebeu, através de pesquisas, que seria necessário formar o consumidor ético, consciente e responsável de forma que este cobrasse a responsabilidade social das empresas. O Akatu surge, então, para executar esta tarefa. Assim, a ideia de consumo consciente surge ou ganha força, no país, como uma iniciativa das próprias empresas e não como participação ativa dos consumidores. São parceiros do Instituto Akatu, grandes corporações globalizadas, como Nestlé, Carrefour,

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Em 2009 o programa Fantástico, da Rede Globo, apresentou, durante seis semanas, um quadro intitulado “Mudança Geral”, em que uma família recebia o desafio de mudar seus hábitos de consumo, para evitar o desperdício e criar um estilo de vida sustentável. Para maiores informações sobre o quadro, consultar http://www.akatu.org.br/interatividades/mudanca-geral

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Walmart, Instituições financeiras e bancárias privadas, companhias de telefonia celular, entre outros.

Consumo consciente, de acordo com o Instituto Akatu, é “consumir diferente: tendo no consumo um instrumento de bem estar e não fim em si mesmo; é consumir solidariamente: buscando os impactos positivos do consumo para o bem estar da sociedade e do meio ambiente; é consumir sustentavelmente: deixando um mundo melhor para as próximas gerações.”

Outra organização que trabalha a favor do consumidor e inclui a educação para o consumo consciente ou sustentável, no Brasil, é o IDEC – instituto de defesa do consumidor -, fundado em 1987. Trata-se de uma associação de consumidores, sem fins lucrativos e sem vínculo com governos, empresas ou partidos políticos. Por sua importância na defesa de direitos, passou a atuar, também, na formação para o consumo consciente ou sustentável. No site da entidade, encontra-se o guia para o consumo sustentável, uma “cartilha” que ensina o que é consumo sustentável e o que deve ser feito pelo consumidor para participar da defesa ambiental. Para o Idec, a defesa dos direitos do consumidor e a preocupação com o impacto ambiental dos hábitos individuais de consumo são tratados como questões de cidadania. O Idec usa, como definição de consumo sustentável, “saber usar os recursos naturais para satisfazer as nossas necessidades, sem comprometer as necessidades e aspirações das gerações futuras.”

Na Europa, entidades que se ocupam com a formação do consumidor crítico existem há mais tempo do que no Brasil. Um exemplo disso é o Centro Nuovo Modello di Svilupo, organização italiana, e seu Guida al consumo crítico, no qual se identifica uma maior valorização do consumo como esfera de participação política:

Num momento em que parecem valer só as razões do mercado e em que as multinacionais têm mais poder do que os governos, devemos encontrar novos instrumentos para estabelecer regras para as empresas de modo a induzi-las a comportamentos mais respeitosos em relação aos países do sul do mundo, ao trabalho e ao ambiente. (Guida al consumo critico, 2004: 5)

Este guia da organização italiana procura informar o consumidor sobre o comportamento de empresas da área alimentícia e de higiene, seguindo outros que foram publicados nos Estados Unidos e Inglaterra. É publicado bianualmente desde 1995 e financiado por movimentos democráticos e sindicais. Entre os instrumentos de participação política

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através do consumo, o guia italiano propõe o boicote como uma ação extraordinária e o consumo crítico como uma alternativa constante. Definem consumo crítico com a “escolha dos produtos não só com base no preço e na qualidade, mas também com base na história dos produtos e no comportamento das empresas que os oferecem.” (2004: 24)

Destacam-se, na comparação entre a entidade italiana e os institutos brasileiros aqui citados, as diferenças entre os discursos. Enquanto o italiano nomeia as empresas, avaliando-as de acordo com suas atuações sociais, políticas e ambientais, os brasileiros estimulam os consumidores a buscarem informações sobre a composição dos produtos a serem adquiridos e não sobre as empresas produtoras; a avaliarem suas próprias necessidades: “...houve um aumento do uso de eletricidade pela incorporação de novos eletrodomésticos. Será que precisamos de todos eles, realmente?”110; a evitarem o consumo excessivo: “No ato da compra, pense! Não leve para casa alimentos em excesso nem faça comida em demasia”111

. Utiliza palavras vagas, como “excesso” e “demasia”. Isto é, além de usar expressões moralizantes sobre necessidades individuais, depositam, quase que exclusivamente, na mudança de comportamentos cotidianos a possibilidade de solução para os problemas ambientais globais. Ao darem mais destaque ao comportamento individual do que à atuação do setor produtivo, as entidades brasileiras deixam ao consumidor individual o encargo de acreditar ou não naquilo que as empresas divulgam sobre si mesmas e seus comprometimentos sociais e ambientais. E, ao darem mais ênfase à preservação de recursos que pode ser feita individualmente, não consideram os serviços prestados por esses recursos, como limpeza, conforto e conveniência. (SHOVE, 2003)

Outro discurso, já institucionalizado, volta-se para o consumidor individual e sua satisfação, porém integrando, da mesma forma, os conceitos de consumidor e cidadão: a defesa dos direitos do consumidor. Tema bastante estudado e problematizado na área jurídica, os direitos do consumidor têm sido alvo de debate e legislação internacionalmente há muito tempo. Como resultado de pressões da sociedade civil, governos instituem os códigos de defesa do consumidor. No Brasil, o código foi promulgado em 1991, e se propõe a proteger os interesses econômicos e a integridade moral e física dos consumidores, partindo do 110 http://ambientes.ambientebrasil.com.br/educacao/artigos/guia_de_boas_praticas _para_o_consumo_sustentavel.html 111 idem

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reconhecimento de sua vulnerabilidade no mercado de consumo. Essa proteção é garantida, de acordo com o código, pela presença do Estado no mercado e pelo estímulo à criação de associações representativas dos consumidores. Cabe destacar que as associações de defesa dos direitos do consumidor são anteriores a promulgação do código, inclusive os PROCON, secretarias de estado cuja finalidade é proteger os interesses dos consumidores.

As diretrizes que norteiam os direitos do consumidor, internacionalmente, são: direito à satisfação de necessidades básicas; direito à segurança; direito à informação; direito à escolha; direito a ser ouvido; direito à indenização; direito à educação do consumidor; direito a um meio ambiente saudável. (DAVID, 2008)

Esta breve passagem pelos discursos referentes às relações entre consumo e cidadania, permite observar que as apostas são feitas na racionalidade dos consumidores, bem como na sua capacidade de guardar informações suficientes para serem usadas em suas rotinas cotidianas de compras, que, como os capítulos anteriores desta tese mostraram, são muito mais complexas, exigindo, das compradoras competências que fazem parte da consciência prática em uma diversidade de esferas de suas vidas privadas. Também cabe considerar que, de um lado, os discursos dirigem-se ao consumidor-cidadão e seus direitos individuais que devem ser respeitados nas relações comerciais, o que, apesar de regulamentado, ainda não acontece na plenitude. De outro, a preocupação moral com a coletividade do consumidor-cidadão é exortada, muitas vezes colocando interesses individuais e coletivos em conflito.

É com base nesses discursos, também, que analiso, nas próximas sessões, até que ponto, de forma difusa e confusa, o consumo político, cidadão, consciente, crítico e/ou sustentável surge (ou não) nos discursos e comportamentos das compradoras como protagonistas destas diferentes formas de compreender a cidadania e, ao mesmo tempo, como alvos de campanhas antagônicas em relação a suas escolhas de consumo.

As questões que se colocam, então, são: de que forma essas novas competências exigidas dos cidadãos-consumidores se manifesta no supermercado entre as compradoras de camadas médias? Durante as compras agem de acordo com as ideologias presentes nos movimentos da sociedade civil que têm no consumo uma arena política?

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