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FLORIANÓPOLIS, ESPAÇO GEOGRÁFICO DA PESQUISA

3.11 O SABER DE ECONOMIA

Se o amor devocional é o mote das compras, também a economia é um valor moral determinante para as compradoras, como para a maior parte dos compradores, de acordo com a teoria das compras de Miller (2002). Isto fica claro desde nossos primeiros contatos quando quase todas expressaram, por um lado, o desejo de participar da pesquisa e, por outro, sua preocupação por não se considerarem bons exemplos de consumidoras, já que, como afirmam, não se entregam aos prazeres do consumo, mantendo-se orientadas pela economia. Tal reação denota o quão forte é, em nossa sociedade, a crítica ao consumismo e o quanto essas mulheres não querem se identificar com o entendimento presente, inclusive no senso comum, do consumidor irracional e sem limites, entregue ao hedonismo.

Ao se descreverem como consumidoras, minhas interlocutoras usam os adjetivos “consciente”, “exigente”, “moderada”, “controlada” e “seletiva”. Mesmo que diferentes, os termos se referem especialmente a preocupação com a relação custo x benefício dos produtos ou com a possibilidade de manter o controle, ou seja, não comprar algo que possa ser desejado para poupar para comprar algum outro produto.

Eu sou bem pelo custo x benefício, não sou de sair gastando não. Eu penso bastante antes de consumir. Lógico que uma coisa ou outra, a gente consome por prazer, mesmo, mas penso bastante. Não sei se é porque eu sou engenheira. (Bela)

Cansei de deixar de comprar um acessório, uma bolsa, para comprar um disco que eu queria. (Karen)

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Pode-se perceber, nessas falas, a reprodução de um discurso ético com relação ao consumo, entendido como excesso a ser controlado. Também se observa a economia como valor, identificado por Miller, para quem poupar ou economizar significam uma oferenda devocional, uma forma de adiamento, “uma recusa ao desejo imediato para tornar a vida um pouco mais bela do que seria.” (2002:117) As mulheres, de acordo com o autor, procuram o sentido da economia como forma de transformar o dinheiro não gasto em dinheiro poupado, negando a acepção do dispêndio. Como Karen, no supermercado, que colocou no carrinho alguns produtos que, na opinião dela, seriam supérfluos (misturas para bolo, outras marcas de iogurte, etc.) porque “estão baratos”. Em mais de uma ocasião, também, afirmou: “se acho caro, não levo”. “A maioria das sessões de compra tem seu início com atos de dispêndio intencional, mas a prática real do comprar [...] dirige-se, de maneira crescente, à possibilidade de economizar”, diz Miller (2002:114), mesmo que isso represente um valor maior na conta final das compras.

Eu gosto de ter a sensação de que levei mais por menos (Karen)

Eu comprei um casaco na Zara, era o que estava na promoção, mas era tão bonito quanto os que não estavam. Saí de lá muito feliz. (Penélope) Para Lipovetsky (2007: 94), na contemporaneidade, “o neoconsumidor não quer consumir menos, quer obter o mesmo menos caro”. Para este autor, a compra esperta tornou-se um valor, uma marca de inteligência e não de vergonha. O filósofo destaca que

Se o fenômeno desconto não cessa de ampliar-se, isso não depende apenas do aumento da precariedade e da pobreza, mas também, paradoxalmente, da escalada das necessidades, dos desejos de lazer, de evasão e de comunicação, que levam à obrigação de fazer arbitragens nos orçamentos: economiza-se no alimentício para poder gastar em telefonia, viagens ou vídeo [...] A sensibilidade do hiperconsumidor aos preços traduz menos o espírito de economia e o recuo para os bens de primeira necessidade que a extraordinária progressão da procura de bens “supérfluos”. (LIPOVETSKY, 2007: 94)

Durante nossas andanças no supermercado, as mulheres efetivamente mostravam preocupação com os preços dos produtos, mas não posso afirmar que suas economias diziam respeito à

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possibilidade de gastar em alguma outra “necessidade”, como propõe Lipovetsky. Ao contrário, parece ser, isto sim, parte fundamental de suas competências como donas de casa cientes de suas obrigações.

Emblemático, no sentido da economia, é o cálculo que quase todas fazem ao comprar papel higiênico, produto que, em geral, faz parte das compras, já que, mesmo que tenham estoque em casa:

É que nem leite, nunca é demais. Quando tem um rolo só em casa, é pior que cigarro. Sabe quando você fuma muito e se dá conta que tem só um cigarro e tem que sair para comprar? Eu sou assim com papel higiênico. (Taís)

A seguir, reproduzo falas de algumas mulheres no supermercado que ilustram bem a preocupação com a relação custo x benefício em relação ao papel higiênico:

“Olha só: 12 a R$ 15,48, dá um real e quase 40 por cada rolo. Esse aqui está R$ 18,98 e é o mesmo tamanho. Aqui o Personal está R$16,48...Esse aqui (marca menos conhecida de papel higiênico) dá menos de um real por rolo. Um real por um rolo de papel higiênico? É caro. Vou te contar um negócio, eu prefiro Neve, mas esse aqui não é ruim não. (Taís)

Vou comprar esse aqui, tem uma relação custo qualidade bom, é como o Personal, mas o preço é melhor. Não tem o Personal. Ó , é barato, 60 metros o rolo. Não é de 30. R$ 3,48, são 4...(Laura)

Eu sempre compro aqueles de doze...Eu não vi se estava acabando...R$ 3,99 com quatro, esse aqui vem 12 e é R$11,97...É, vou levar e ainda ganho uma lata91...Olha lá, ó, que bonita. É bom para por no carro...Deixa eu ver se tem uma rosa...Acho que a rosa todo mundo quer, Beth...Laranja, vou ficar com a azul...Bem bonitinha a lata. Eu sempre quis comprar este,

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Na época em que fui com Marília ao Angeloni do bairro Capoeiras, havia uma promoção de vendas do papel higiênico da marca Neve. Na compra de um pacote de oito rolos de papel, a compradora ganhava uma lata com o formato do rolo. Somente com um estímulo como a promoção de vendas, o Neve passou a ser considerado uma opção de compra para Marília.

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mas sempre era mais caro...[Referindo-se à marca Neve] (Marília).

O que se destaca nessas situações, além dos cálculos de preço que fazem durante as compras para quase todos os produtos e que exigem das mulheres uma habilidade para a matemática, é o fato de que nem todas as opções de papel higiênico disponíveis no supermercado são consideradas. As preferências recaem sobre as marcas Personal e Neve, que existem, notadamente, para um público de maior poder aquisitivo. Sendo o Neve mais caro, mesmo que com melhor qualidade percebida por elas do que o Personal, é uma opção de compra menos considerada, mas desejada por todas, já que sempre avaliam o seu preço em relação ao concorrente. Os cálculos e avaliações em relação às marcas preferidas de papel higiênico se reproduzem em quase todas as categorias de produtos, sejam de higiene pessoal, limpeza ou alimentação. Sempre há as marcas que conhecem. Raramente arriscam em outras marcas mais baratas.

As compradoras que, eventualmente, escolhem produtos de marcas mais baratas, assumem posturas irônicas e lançam uma certa desconfiança sobre as marcas mais conhecidas ou tidas como de melhor qualidade. É o caso de Laura que comprou uma embalagem com doze caixas de leite da marca Big – marca própria da rede de supermercados: quando perguntei a ela se esta marca de leite é boa, a resposta foi clara e objetiva: “Bom, mesmo, é o leite integral tirado da vaca. O resto é tudo água com gosto.” O mesmo ela fez em relação ao filtro de papel para café de uma marca desconhecida e mais barata que colocou no seu carrinho de compras dizendo duvidar que seja diferente do filtro da marca Melitta.

As marcas próprias dos supermercados que oferecem produtos a preços mais em conta, porém, são pouco atraentes para a maior parte das mulheres e causam desconfiança, tendo em vista a extensa linha de produtos que carregam. Karen comprou, em uma de nossas visitas ao Big, a água sanitária da marca “Mais por Menos”, também própria da rede, comentando que não a conhecia, mas que experimentaria por estar bem mais barata. Estava, de qualquer maneira, desconfiada da marca e disse: "Tem que saber se mais por menos é mais na qualidade também, né? Às vezes compra uma coisa barata que não compensa...” Mais adiante, no supermercado, quando procurava milho verde em lata, encontrou uma embalagem do produto da mesma marca. Neste momento explicitou sua desconfiança: “Mais por menos tem de tudo, água sanitária, milho verde, desconfio um pouco disso...A embalagem é

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da mesma cor.” Karen, como eu, naquele momento, não havia se dado conta de que era uma “marca própria” do supermercado, até porque ela não carregava o nome da Rede de forma explícita92.

De qualquer maneira, o que fica evidente é que a noção de economia é sempre relativa ao padrão de vida das compradoras, ao habitus e, por conseguinte, marcas mais “populares” não são necessariamente rejeitadas. Em geral, nem são percebidas nas prateleiras. O mesmo acontece com as marcas percebidas como mais caras. Em cada corredor, costumam dirigir seus olhos e mãos diretamente aos produtos de marcas já conhecidas, cujo preço, pelo conhecimento que têm de experiências anteriores, está na faixa que esperam pagar, mesmo que, eventualmente, façam experiências. Como disse Laura:

Eu nem olho (produtos mais caros). Até deveria, vai que estou perdendo alguma promoção? A busca por economia, então, não significa comprar todos os produtos mais baratos, nem olhar os encartes com ofertas, coisa que só vi Laura e Taís fazerem. Há marcas das quais não abrem mão e outras que seriam objetos de desejo caso estivessem em promoção. O que implica que, mesmo que a economia seja um valor nas práticas cotidianas de consumo, a confiança tem um peso importante nas decisões de compra, especialmente no que diz respeito a produtos alimentícios e de higiene pessoal – inclusive nos produtos para lavar roupas, já que a maior parte opta por sabões em pó das marcas mais caras, especialmente da marca Omo.

É interessante observar que a preocupação com os cálculos matemáticos não desapareceu, mas diminuiu de intensidade quando comparo a primeira vez em que fomos ao supermercado com as vezes seguintes. Nas primeiras experiências, as compradoras pareciam estar muito preocupadas com a avaliação que eu faria de suas performances. Ser econômica parece ser associado por elas como a característica mais importante de ser esperta e, portanto, é o valor que todas procuram destacar ao falarem e ao realizarem as compras durante nossas primeiras entrevistas e viagens ao supermercado. Isto denota como a economia nas compras está associada a ser uma boa administradora doméstica, especialmente, ser alguém que sabe como controlar a si mesma e a família.

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Procurei a informação na embalagem. Curiosidade que Karen não teve, revelando o quanto ler embalagens também não é uma prática no supermercado.

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Perder uma promoção, porém, pode representar a perda de uma boa oportunidade de compra. Neste sentido, em nome da economia que as promoções oferecem, as compras, mesmo as mais banais e cotidianas, se transformam no prazer da conquista, no troféu: “este azeite de oliva é ótimo e olha o preço! Vou levar!” Diz, animada, Iara. “Olha isso, Beth! Tá muito barato! É um achado!” Diz Taís sobre as mantas em promoção no bazar do Big. Com a atenção sempre nas prateleiras, produtos expostos e nas etiquetas de preços, as compradoras percorrem o supermercado procurando boas oportunidades de compras, como numa caçada em que o troféu é a satisfação de ter pago um preço mais baixo por produtos que consideram de qualidade. Aqui, porém, há que se fazer uma ressalva, quando as compradoras relatam outras aquisições a preços que são “achados”, como roupas para si mesmas e para os filhos, presentes especiais para algum membro da família ou até um eletrodoméstico, seu orgulho ao descrever a vantagem que consideram ter levado é muito mais evidente do que para os produtos de consumo cotidiano, comprados em supermercado, já que estas compras são facilmente esquecidas e, na maior parte das vezes, invisíveis, como descrevi no segundo capítulo.

A comparação entre dois momentos da vida, casadas e separadas, leva Kati e Penélope a refletirem sobre seus comportamentos de consumo. Continuam dando importância à economia, porém reconhecem transformações em seus valores, especialmente na forma de demonstrar amor pelos filhos. Os presentes (roupas, celulares, jogos) recebem importância menor do que o estar com eles. A mudança que a separação representa no poder aquisitivo pesa especialmente para Kati:

Salário quando você está casada é orçamento, quando você está sozinha vira salário mesmo. Depois de separada, eu levei um tempo para ajeitar a minha vida [...] Agora eu estou mais controlada [...] Antes, com um poder aquisitivo maior, eu gastava.

Penélope relata que prefere estar com os filhos a presenteá-los. Conta sobre uma viagem a Nova York com o marido e um casal de amigos, em que ela e a outra esposa passaram os dias nos outlets americanos fazendo compras. “Eu não faria isso de novo, é a isso que leva o consumismo”, afirma, “Tem tanta coisa para ver nos lugares”.

As compras que são realizadas para as ocasiões em que ficam com os filhos, porém, não são consideradas dispêndios nem consumismo, mas uma oportunidade de valorização da família que nega

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o consumismo, já que em lugar de passear no shopping, optam por momentos mais íntimos, dentro de seus domicílios:

A gente compra um bolo, pipoca ou guaraná, pega um filme na locadora e esse é meu momento com eles. (Kati)

Na casa de Ana, hoje, vivem ela, o marido, o filho de seis anos, uma moça e um rapaz, amigos do casal, ambos estudantes. A casa foi transformada em uma espécie de república. As práticas de cozinhar, arrumar e limpar a casa são divididas entre todos, bem como as compras de alimentos. Porém, como Ana é a dona da casa e a única mãe ali presente, a maior parte das compras e das preocupações com organização das tarefas fica sob seu encargo. Tive a oportunidade de acompanha-la ao supermercado antes e depois de a casa ter-se transformado. Assim, se economia não parecia ser uma preocupação de Ana antes, ela escolhia os produtos porque gostava ou porque achava “bonitinho”, afirmando, inclusive, ser bastante influenciada pelo design das embalagens. A partir do momento em que passou a ter uma família maior, Ana passou a evitar algumas compras que costumava fazer: “Manteiga, agora, vai um pacote por dia. Não dá para comprar da Aviação. Massa, eu só comprava italiana”.

Algumas das mulheres foram comigo apenas uma vez ao supermercado. Com estas, todas as vezes que tentei repetir a experiência, recebi respostas evasivas do tipo “Ah, desculpa, já fui esta semana” ou, como as respostas de Vivian e Lúcia, bem claras: “Quando eu tiver dinheiro, a gente vai”, “Não faço supermercado há bastante tempo, estou sem dinheiro, só compro picadinho”. Estas respostas confirmaram uma suspeita que surgiu ainda no supermercado. Enquanto caminhávamos pela loja, Vivian, distraída pela minha presença, colocava muitos produtos que não constavam em sua lista, algumas novidades em produtos de limpeza e alguns alimentos que a atraíam, e em grande quantidade, movida, na maior parte das vezes, pelos preços atraentes que representavam uma possibilidade de aproveitar as promoções. Comentava: “Está barato”, “Vale a pena” e acrescentava às compras. Ao passar os produtos no caixa, a conta final ficou, para ela, alta, o que era visível em sua expressão facial. Lucia, ainda dentro da loja, preocupada com a conta final, explicava: “Compra grande assim, só no mês que vem.” E Marília, no caixa, exclamou: “É hoje que meu marido me mata!”.

As reações destas compradoras no caixa levam a pensar na afirmação de Lipovetsky, citada anteriormente, de que o consumidor contemporâneo não considera uma vergonha levar mais por menos. Isto

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fica claro nas observações de campo. É quase uma obrigação. Porém, elas conduzem à ideia de que passar ”atestado de pobreza”, isto é, não aproveitar promoções porque se quer economizar ou porque não se tem o dinheiro é que se torna uma vergonha. Também levam a repensar a noção de Miller (2002: 117) de que “o ato prático de comprar é uma atividade idealizada cuja santidade é garantida pela transformação ritual em poupança”, o que é verdadeiro durante os percursos pelo supermercado. Entretanto, a chegada ao caixa pode transformar essa poupança em consciência do dispêndio, que em seguida se dissipa, com expressões como “Gastei, mas são só coisas que eu vou usar.” Isso significa, também, que as caixas do supermercado, ao mesmo tempo em que delimitam uma fronteira física entre o exterior e o interior das lojas, marcam a fronteira entre a realidade do dinheiro e o idílio dos desejos delas e de suas família. Desta forma, ansiedade e culpa se estabelecem por alguns momentos entre as compradoras quando passam do ato de flanar pela loja para o ato de pagar pelas mercadorias colocadas nos carrinhos de compras.

Minha percepção de que acompanhar as compradoras ao supermercado representa uma invasão de privacidade pode, talvez, ser usada para levantar a hipótese de que ir ao supermercado junto com uma pesquisadora faça com que algumas se sintam julgadas por suas escolhas e, quem sabe, constrangidas. Mesmo que eu tivesse deixado claro que não estava ali para julgar, é possível que tenham depositado no outro, representado pela pesquisadora, a responsabilidade por seus gastos aparentemente excessivos, o que, para mim, ficou evidente nas recusas que se seguiram. Vivian, por exemplo, respondia às minhas tentativas de acompanhá-la dizendo “quando eu tiver dinheiro...”

3.12 PRÁTICAS DE COMPRAS E TAREFAS DOMÉSTICAS