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FLORIANÓPOLIS, ESPAÇO GEOGRÁFICO DA PESQUISA

3.6 O TEMPO NO SUPERMERCADO

Os relatos que seguem apresentam o aproveitamento do tempo no supermercado de duas das compradoras que acompanhei. O volume de compras das duas foi parecido, porém o tempo efetivamente empregado por cada uma foi bastante diferente. São dois extremos que ilustram a forma como as compradoras podem se relacionar com o tempo no supermercado.

Quase três horas foi o tempo que Karen ficou no supermercado quando a acompanhei pela primeira vez. Na chegada, escolheu um carrinho, entrou no supermercado e, com o olhar perdido, deu voltas na ilha central do Big até decidir por onde começar: ração para os gatos. A escolha da ração durou cerca de quatro minutos. Karen não trazia

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consigo uma lista de compras. Passava pelos corredores e, conforme via os produtos, pensava se deveria levar ou não, se o preço estava adequado e se teria local para guarda-los – ela e o marido haviam acabado de comprar a casa e ainda não tinham armários de cozinha. Esta não era a primeira visita de Karen ao supermercado depois da mudança para a casa nova. Era um sábado, o supermercado estava lotado. Caminhávamos entre carrinhos, corredores, repositores81 e funcionários da loja. Karen conversava e olhava para as prateleiras, ia e voltava nos corredores. Passamos por um dos corredores do bazar onde pares de luvas de lã estavam pendurados em pencas. Karen viu as luvas e comentou: “iguais às da Elisa (amiguinha de sua filha), como a Júlia quer. Qual é o preço?” Procurou a informação no produto e não encontrou, pensou durante algum tempo se colocaria as luvas no carrinho ou não, até que decidiu “Se não comprar a luva, a Ju me trucida”. Seguiu pelo supermercado, olhando produtos, comentando, colocando no carrinho e reclamando da desordem do supermercado:

Qual é a melhor margarina para fazer bolo? Acho que é a Qualy, né?... Olha as pastinhas que eram baratinhas, 1 e pouco, agora 3 reais...O leite de saquinho Del Vale, quem usa desse leite? É mais saudável, mas dá trabalho... Massa de pizza de frigideira, eu nem ia levar, mas está barato...Compra dessas demoradas, só daqui a um mês... A gente já foi por ali? Eu fico muito confusa nesse Big. Tudo misturado. Que desorganização!

Entre comentários sobre os produtos que olhava e, eventualmente, colocava no carrinho, outros assuntos iam surgindo relacionados à prática e à sua própria intimidade:

Massas prontas para bolos...São baratos...Banana, mel e canela hummm...Ai, browni, esse aqui é uma delícia. Vi na casa da Taís. Ele vem já com a calda também. Ai...to na tpm, eu gosto de todos esses doces. Olha esse que legal, agora tem de tudo...a Taís deve ter forminha de petit gateau...Vou levar...Será que fica o mesmo gosto?

Enquanto escolhia produtos, revelava detalhes dos gostos do marido e dos filhos, dos problemas com os armários e das discussões

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Nome dado aos empregados das indústrias cuja função é repor produtos nas prateleiras dos supermercados.

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com o marido por conta de espaço para guardar coisas. Parava para organizar o carrinho, sempre reclamando de sua própria desorganização e da desorganização da loja, e fazia cálculos sobre o que sairia mais em conta. Pacotes de oito ou dezesseis rolos de papel higiênico? Embalagens grandes ou pequenas de detergente? Havia colocado no carrinho duas embalagens pequenas de detergente antes de ver as grandes, que estavam um pouco mais adiante, no mesmo corredor. Quando as viu, comentou: “levei dois desses ali, a grande sai mais em conta, mas tenho a impressão de que quanto maior a embalagem, mais você gasta. mas sai mais barato levar do grande.” E concluiu: "Ai, tem que pensar em tanta coisa..."

Cada decisão de Karen era pensada pelo que, pareciam, longos minutos, ela também investia um tempo longo em olhar, comentar e tocar produtos que já sabia de antemão que não levaria. Além disso, ela gosta de trocar ideias e opiniões com outros e outras compradoras e com os funcionários da loja. Nas outras vezes que fui com ela ao supermercado, as compras, mais ou menos na mesma quantidade, foram mais rápidas: em torno de uma hora e meia.

Com Ana foi diferente. Trinta e três minutos foi o tempo que durou minha primeira ida com ela ao Angeloni da Avenida Beira Mar, entre estacionar o carro e voltar para ele com as compras embaladas. Do estacionamento até o local onde ficam os carrinhos já dava para perceber que, para acompanhá-la, seria melhor ter ido de patins. Sem lista, Ana pegou o carrinho, entrou pela única entrada possível – no centro da fileira de caixas e partiu para a ação. Transcrevo a seguir, os primeiros menos de cinco minutos de diálogo durante as compras. Se demorou tudo isso, desta vez, foi porque eu fiz perguntas, interrompendo sua corrida pelos corredores, o que a deixou visivelmente incomodada, já que, no carro, a caminho do supermercado, avisou: “Eu gosto de ser rápida no supermercado”.

Ana – Que bom a gente vai parar bem nos produtos de limpeza que é o que eu preciso comprar de verdade.[produtos de limpeza, para Ana, são os produtos de higiene pessoal]. O que eu preciso comprar de verdade [“de verdade” se refere à lista mental que ela tinha ao chegar ao supermercado.] é produtos de limpeza e óleo. Vou comprar condicionador.

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Ana – Eu compro sempre o OX ou o Phytoervas. Nos supermercados que tem, né? Se não tem, eu compro qualquer um.

B – Por que tu compras esses?

Ana – Porque são os melhores na relação custo x benefício...

B – Ah, para de dar respostas prontas [risos] Ana – Porque são ótimos. [Começa a ler a embalagem] porque tem ginckobiloba e ginseng. Sei lá, porque ele faz bem pro meu cabelo? B – Porque quando tu experimentas fica bem no teu cabelo?

Ana – Ele funciona. Exatamente. Agora tem que ver um xampu. Aqui é só condicionador, então a gente vai voltar. Não tem.

B – Não é aqui debaixo, o xampu Ox?

Ana – É aqui debaixo. Mas o xampu eu vou levar Phytoervas, só 4 reais mais caro e tem cheirinho bom de algodão...Agora vamos ver o próximo corredor...E agora eu preciso de uma pasta de dente que faça os dentes ficarem brancos. Então eu compro essa aqui, Colgate total whitening, porque em 12 dias ela faz os seus dentes ficarem brancos [lendo a embalagem, novamente]82. Agora continuando com os produtos de limpeza, eu gosto de um sabonete de lama, só que não tem o de lama, olha só. Ah, que pena que não tem Anabow de lama.

B – Eu nunca vi esse Anabow de lama.

Ana – É um pretinho, é muito bom, o cheirinho é muito bom. Então eu vou comprar o de rosas e um sabonete de glicerina para a pia do banheiro. Granado, uma marca tradicional.

B - Marca bem tradicional, tinha os talcos para pés Granado.

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Cabe destacar que, por ser a primeira vez que íamos juntas ao supermercado, Ana fazia um esforço para me dar as respostas que acreditava que eu queria ouvir. Como perguntei, logo no início, as razões que a levavam a escolher os xampus da marca Ox ou Phytoervas, ela acreditou que eu queria saber as razões para todos os produtos. Sem ter o que responder, e antes mesmo que eu perguntasse, lia as embalagens e justificava suas escolhas com os argumentos oferecidos pelos fabricantes. Havia uma tensão no ar, pois, como expliquei anteriormente, acompanhar compradoras no supermercado é, também, invadir sua privacidade.

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Ana – Eu tenho em casa. [passando para o corredor de produtos infantis] Ah, eu precisava de um condicionador de ônibus para o Diego. Não tem. [olha outros xampus e condicionadores em embalagem de carrinhos e outras formas]. Não, mas ele quer um que tem a forma toda de um ônibus. Vou comprar na farmácia de lá [do Campeche, bairro onde mora].

B – o Diego usa condicionador?

Ana – Usa...Eu preciso de um desodorante que não tenha cheiro. Pode ser esse...sem cheiro...Eu comprei um desodorante Rexona que não tem cheiro. Pronto. Comprei produtos de limpeza...Agora vamos para o outro corredor...Ah, eu tenho que levar papel higiênico... Vamos ver se tem um coloridinho...Coloridinho é mais barato!

B – Roxinho?

Ana – Não acho que esse aqui está melhor, ó. Branquinho com desenhinho colorido.

B – Personal [marca do papel higiênico que ela escolheu]

Ana – Daqui eu não preciso de nada, daqui eu também não preciso de nada [passando por outros corredores e olhando para seu interior]. Daqui eu preciso de um vinho baratinho. Olha, Tarapacá a 12,90. 12,90 está ótimo. [Levou 2 garrafas]. Só dar uma passadinha aqui nos chilenos para ver se tem alguma promoção...

Foi neste ritmo, e com traços de ironia, que Ana enfrentou os próximos 20 minutos de sua compra. Os últimos cinco foram dedicados a passar os produtos no caixa, embalá-los nas sacolas de tecido que havia trazido e voltar para o estacionamento. A velocidade com a qual percorria os corredores, apanhava os produtos e colocava-os no carrinho só diminuiu quando ela parou na seção de brinquedos e procurou um carrinho Hotwheels para levar para Diego. De sua lista mental – produtos de higiene pessoal e óleo – Ana levou tudo o que precisava, acrescentando outros produtos de alimentação ao carrinho, como Nutella, macarrão e vinho, entre outros.

Relatei os dois casos extremos, no que tange à dimensão do tempo como duração, de minhas viagens ao supermercado com as compradoras. Karen, ao final das compras, quando olhou o relógio do celular, disse estar impressionada por ter passado tanto tempo no

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supermercado: “Não pensei que fosse tão tarde”. Já Ana, depois de eu ter comentado que havíamos ficado trinta e três minutos na loja, disse: “Tudo isso? Preciso melhorar o meu tempo.”

Para as duas, abastecer a casa, cuidar e alimentar os filhos, são tarefas importantes. Porém, parece que para Karen, a tarefa gera muito mais ansiedade e insegurança do que para Ana que, da forma como administra as compras, baseada na premissa de que ir ao supermercado é “perda de tempo”, procura o máximo de eficiência no processo, mostrando-se uma compradora competente. É importante destacar que, de um modo geral, ambas teriam o mesmo tempo disponível para as compras, pois, mesmo que exerçam atividade profissional, possuem flexibilidade de horários.

De acordo com Kellaris e Mantel (1994), conforme um sujeito fica mais envolvido numa tarefa, menos atenção presta à passagem do tempo. A disparidade entre o tempo objetivo do relógio e o tempo percebido pode ser enorme. São formas subjetivas de perceber o tempo vivido que nada têm a ver com o tempo quantificável.

O tempo é uma dimensão inescapável de todos os aspectos da experiência social e das práticas (MUNN, 1992), é contínuo e descontínuo e pode ser dividido em três tipos, de acordo com Ballard (apud SANTOS, 2002): tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; tempo histórico, objetivado também, tendo em vista que a história o testemunha; e tempo existencial que seria o tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão. Este é o tempo da subjetividade e não da objetividade. É o tempo de cada uma das compradoras, que define seus diferentes ritmos nas compras.

Para Lefebvre e Regulier (1985), três categorias de tempo convivem no mundo social, e as relações entre elas configuram o ritmo da vida cotidiana: tempo cíclico, da noite e do dia, das estações, das repetições; tempo linear, o do relógio e do calendário; e tempo apropriado, aquele que esquece o tempo, é o tempo dos jogos, por exemplo. As negociações e conflitos entre essas categorias, no nosso cotidiano, vão definindo uma hierarquia no emprego do tempo. O espaço é também parte do ritmo, salientam os autores, mas, em geral, nos passa despercebido.

Essas negociações entre o tempo linear, cíclico e apropriado, que definem os ritmos, são observáveis durante as práticas de compras em supermercado e se relacionam com o tipo de atividade desenvolvida, definindo tempos e ritmos para cada situação: há o tempo e o ritmo da flanerie, que é o tempo de passear pela loja, olhar, tocar, desejar

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produtos, é um tempo apropriado, que esquece o relógio, e segue o ritmo da curiosidade e dos sentidos num espaço povoado de estímulos83. E há o tempo do trabalho, tempo de dar cabo à tarefa de provisão, de vencer a lista, este tende mais a ser linear, o ritmo dos passos pelos corredores cresce e a ansiedade parece aumentar.

Já relatei o caso de Iara, que, enquanto passeia pelos corredores, colocando no carrinho produtos que não estão em sua lista, parece estar fruindo a experiência. É só quando começa a comprar o que está na lista que a pressa, a dor de cabeça e o cansaço se manifestam.

As diferentes relações temporais e afetivas com o trabalho de vencer a lista e com a flanerie foram evidentes em todas as vezes que acompanhei as compradoras nas lojas. Mesmo Ana, a apressada, diminui o ritmo e parece não se importar com o tempo quando se vê no corredor de brinquedos procurando um presentinho para seu filho. Algumas manifestam explicitamente a intenção de passear, como Lucia, que, passando pelo refrigerador com queijos especiais do Angeloni do bairro Santa Mônica, com um suspiro e um sorriso, disse: “aí, eu vou dar uma volta... Eu amo queijo... amo, é a minha perdição. Esse aqui é uma delícia!”. Quem a trouxe de volta para a realidade das compras fui eu, ao perguntar: “tu já terminaste a lista?”84 Com esta pergunta, a expressão facial de Lúcia ficou séria e seu corpo pareceu desarmar-se, com os ombros baixos, como se o peso do trabalho de provisão tivesse caído inteiro sobre ela.

O tempo do relógio, linear, no supermercado, então é o tempo do trabalho, de estar à mercê das necessidades e desejos do outro, enquanto o tempo apropriado, que se alterna ao linear, recarrega as baterias, fornece energia para continuar a trabalhar.