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2.1 Moda: uma instituição moderna

2.9 Os dispositivos da atenção nos outdoors de moda

O rosto é uma máquina de produzir sentidos e estampado em um outdoor é um enigma que captura o olhar do observador. O professor de história da arte da Columbia University, Jonathan CRARY (2004), observa, que no século XIX um novo regime da facialidade ganhou impulso. Na análise do quadro de Édouard Manet, Na

Estufa122, o autor percebe a ativação de um dispositivo de controle peculiar, o rosto. O quadro de Manet na figura 12 permite ver que a mesma atenção, que imobiliza e congela a face da mulher, ativa-lhe o contato com a vida interior; as reações a hiperestimulação da modernidade põem em evidência a máquina de produzir sentidos – o rosto. Ele é uma tela de sinais que remete o observador para outras significações possíveis. O controle pela atenção no rosto da mulher na figura 12 é o mesmo dos rostos espasmódicos das ‘modelos’ nas imagens da moda nos outdoors. Pode-se observar também, nas imagens da moda nos outdoors, que a face maquiada das ‘modelos’ desperta tanto ou mais a atenção como o é a roupa anunciada. Dá-se, com isso, a percepção de um fenômeno, que a autora chama de

121 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Id.

122 JONATHAN, CRARY. A visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX. In:

CHARNEY, Leo e SCHAWARTZ R. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. Tradução Regina Thompson. – São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 68.

roupaisagem123, como se o corpo e o rosto fossem uma coisa só. Pode-se dizer que o rosto em close é uma paisagem que convida o expectador a entrar no túnel de suas memórias.

Quanto aos significados do rosto da mulher no quadro de Manet deve-se levar em conta a discussão sobre a rostidade, para quem "o que conta não é a individualidade do rosto, mas a eficácia de cifração que ele permite operar, e em quais casos"124. A rostidade em Manet é a volta a uma ordem, é um controle que resiste ao desmantelamento e à conexão com qualquer coisa externa125. O corpo socializado é controlado pelas técnicas do corpo e da aparência; ele sofre o rebatimento das sensações provindas do agitado mundo urbano. Esse corpo é objeto de uma atenção constante.

Conforme CRARY (2004), "as duas últimas décadas do século XIX deram origem a noções de percepção nas quais o sujeito, como um organismo psicofísico dinâmico, construía o mundo ao seu redor ativamente, por camadas de processos sensoriais e cognitivos dos centros cerebrais superiores e inferiores". O sujeito da modernidade participa ativamente da configuração do real pela conexão cada vez mais estreita de seu aparato sensorial com o meio social em constante mudança. CRARY (2004) observa, conforme pode ser visto na figura 12, que estados de atenção o tempo todo mobilizados alternam-se com períodos de devaneio, de modo que as “sensações, percepções e elementos subconscientes podem desprender-se de uma síntese unificadora e tornar-se elementos flutuantes, separados, livres para fazer novas conexões”.126 Esse rosto não olha para lugar nenhum.

123 Roupaisagem é uma expressão criada pela autora para designar a função comunicativa do binômio rosto-

roupa.

124 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Ibid., p. 42. 125 CRARY, Ibid., p. 76-78.

Figura 12: Tela de Edouard Manet: “Na Estufa”127

O olhar espasmódico, controlado, da mulher pintada na estufa mostra a necessidade de domínio das forças instintivas pelo ego. Pode-se imaginar que essa suspensão momentânea do externo pelo direcionamento do olhar para o infinito aproxima a atenção da dispersão, já que se pode devanear interna como externamente especialmente quando se está imerso em um ambiente controlado por imagens. Uma atenção dispersa ou uma dispersão atenta? A idéia evoca um paradoxo moderno: o "observador distraído" é um sujeito atento seletivamente128. Esboça-se uma persona borderlyne, que se desloca com muita facilidade entre as imagens internas e externas. O sujeito distrai-se com variados tipos de imagens, efeitos e estímulos (objetos estéticos, imagens, sons, neons), mas é, ao mesmo tempo, atento porque está intensamente em contato com consigo mesmo.

Como na estufa de Manet, o sistema rosto-roupa dos outdoors de moda contém as forças instintivas inconscientes. As figuras 12 e 13 são exemplos do controle da atenção e dos gestos do homem contemporâneo.

Figura 13: Banner em fachada na rede Vivara de jóias Foto: João Ciacco (maio, 2004)

Pode-se observar que o olhar da ‘modelo’ é descendente e dirige-se para o chão enquanto os gestos são ascendentes. O rosto denuncia melancolia e a boca côncava o acompanha. A mão insinua sedução brincando com a amarração do colar sobre o corpo. Não há coerência entre os gestos e a face. Nos casos citados, a contenção dos gestos alcançada por técnicas corpóreas visa manter coeso o mundo ao redor. Os elementos da moda são dispositivos de atenção e de variação à mão do observador.

CRARY (2004) percebe o observador das ruas como um corpo-sensação, um corpo que deve adequar-se ao "processo autoperpetuante de necessidades" criadas pelo estilo de vida moderno. São muitas as emissões de estímulos provenientes do

128 BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da literatura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. - 7. ed. - São Paulo:

mundo veloz das cidades requerendo o controle da atenção. No entanto, é a própria experiência perceptiva que se revela instável e dispersiva129. Não é a moda quem controla o sujeito, mas o sujeito quem domina seus dispositivos comunicativos. Isso vale também para o arsenal de peças de vestuário ao qual o público-consumidor dedica especial cuidado. Nessa tentativa de controle do mundo interno e do externo entram em cena os objetos: o vestido, a calça, a cinta, a pulseira, o colar e anéis.

O autor destaca que, no quadro Na Estufa, o vestido de passeio estilo princesa. A atenção com o vestuário na personagem retratada por Manet sinaliza para o surgimento do mundo mercantil da moda. "O capital, como troca e circulação aceleradas, produz esse tipo de adaptabilidade e torna-se um regime de atenção e distração recíprocas" (CRARY, 2004: 85). Não é exagero afirmar, aqui, que ocupam a cena as práticas de consumo, especialmente, o consumo visual. Desta feita, no campo da moda, unem-se o corpo físico e o corpo inorgânico dos objetos. Uma imagem hiperbólica do sentido do vestir é a própria armadura medieval. Em outras palavras, a roupa e o rosto funcionam como armadura que permite, por um lado, dominar os ataques externos de estímulos e, por outro, conter as pulsões instintivas advindas da vida interior. Assim, essa imagem do quadro de Manet e a dos outdoors de moda revelam ações que prendem na tentativa de manter uma (frágil) unidade.

Absorto nessa alucinação ou devaneio do inorgânico – que constitui a substância da moda – encontra-se o homem moderno que, como já dito, realimenta o mecanismo da satisfação pelo logro ou simulação; pois, como dito por SIMMEL (2005), BENJAMIN (1994), e CYRULNIK (2005) em épocas diferentes, a ilusão o faz sair do tédio, permitindo ao organismo perdurar. Os espaços urbanos que naturalizam essas simulações pela imagem são as “estufas” do mundo privado, as galerias parisienes da Europa do século XIX ou os shoppings centers de agora. Esses são "espaços de sonho" públicos e privados em que se pode explorar e praticar o consumo visual. O sujeito da metrópole é um consumidor visual apto a reagir às estimulações das mais variadas ordens e os primórdios da modernidade anunciaram essa concepção neurológica da vida, cujo elemento central é o corpo- sensação.