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2.1 Moda: uma instituição moderna

2.3 Roupa: um artifício vivo

Boris CYRULNIK (1999) alude à força do artifício no mundo vivo. O autor quer dizer que o logro (simular e dissimular pela aparência) é uma ação que visa enfeitiçar, enganar alguém para capturá-lo. É possível generalizar a fórmula. Todo ser vivo tende ao logro porque necessita de um sinal que predisponha o organismo a agir e, no caso do ser humano, um sinal do mundo externo deve responder ao seu

déficit constitutivo. O corpo reage a todo sinal que indique amor/acolhimento,

calor/contato/objeto natural hiperstimulante, valor/identidade. Conforme o autor, há dois tipos de artifícios entre os seres vivos: o logro e a ilusão:

O logro agarra-nos porque é uma superaparência, uma percepção ainda mais forte do que a estimulação natural, enquanto a ilusão nos toma porque nos tornamos cúmplices daquilo que percebemos. A ilusão é um mal percebido quando o sujeito concorda com o desejo, ao passo que o logro é um supersinal que captura um sujeito são (CYRULNIK, 1999: 187).

O logro simula para arrebatar, como a moda que paralisa sob o manto do fascínio nas luzes, no jogo de cores, no afago dos tecidos, na brincadeira dos estampados. CYRULNIK (1999:187) ilustra com exemplos do mundo animal a compreensão do termo artifício (logro, fingimento). Narra o autor que o que de fato fascina o sapo comedor de moscas voadoras “é o movimento do logro, que desencadeia um salto para abocanhar uma folha que esvoaça ou uma gotinha que cai”. O sinal comanda o capturado. Reside aí o poder de significar? O objeto artificial é mais convincente que o objeto natural. A estimulação do objeto natural que não traz novidade não convence o organismo; o nível de resposta fica bem abaixo do potencial de transformação dos estímulos. A estimulação que não varia perde o poder de estimular (CYRULNIK, 1999). Assim, se o tédio é a baixa estimulação, é um limiar que coloca o organismo em prontidão para novas aventuras, sendo o logro a saída do tédio.) oferece uma imagem apropriada para a compreensão desse duplo mecanismo tédio-variação:

O tédio é um tecido cinzento e quente, forrado por dentro com seda das cores mais variadas e vibrantes. Nele nós nos enrolamos quando sonhamos. Estamos então em casa nos arabescos de seu forro. Porém,

sob essa coberta, o homem que dorme parece cinzento e entediado91

De fato, o tédio dá a possibilidade de o sujeito entrar em contato consigo mesmo, sonhar e reagir. Ele predispõe o organismo a sair do baixo limiar de respostas em que se encontra.

As imagens da moda nos outdoors funcionam como o logro. São fantasias que correspondem ao intervalo entre a vida e a morte. Nesse intervalo o leitor faz da mensagem o sinal que desejar. A faculdade de devanear é da segunda realidade92, enquanto que as necessidades de sobrevivência biológicas físicas são da ordem da primeira realidade. O sujeito faz parecer para pertencer. Este converte em sinal positivo ou negativo a mensagem conforme as experiências que acumulou, como um pardal, que aprendeu que engolir vespas pode feri-lo após ter experimentado sua picada. O pardal aprende, também, que uma forma não-vespa o atrai93. O processo de interpretação não pára. Sempre em perspectiva, o homem desenvolve manobras e multiplica as soluções simbólicas que melhor garantam a própria sobrevivência.

Observam-se três categorias emocionais que governam o mundo vivo: o horrível, o bem-estar e a maravilha. Essa dimensão – cotidiana – que contempla o horror, o bem-estar e a maravilha, juntos, depende de um corpo que faz aliança com o logro para criar a existência (CYRULNIK, 1999). Simulações correspondem a:

Invenções tão sinceras quanto possível de formas, que apaguem a diferença ou a distância entre o real e o imaginário. Por exemplo, ambientes climatizados, embelezamento artificial, jogos de videogame, etc. É exatamente o contrário de dissimular, ou seja, é criar uma mentira pretensamente melhor que a verdade, resultando no que foi chamado de hiper-realidade. A mercadoria funciona como espetáculo94.

É o objeto superestimulante que propicia a ativação das funções vitais e que predispõe o organismo à felicidade. Qualquer organismo busca o acontecimento, que gera uma representação. Se não ocorre a percepção de algo em um organismo nada acontece. A novidade, o evento comunicativo, captura o sujeito.

Não se deve esquecer, também, que narrativizar produz um prazer e um saber no encontro com diferenciadas emoções. Um relato faz mudar o padrão de

91 BENJAMIN, Walter. Passagens; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bole;

colaboração Olgária Chaim Feres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão. – Belo Horizonte: Editora UFMG: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

92 Ver nota de rodapé 11, p. 16.

93 CYRULNIK, B. Do Sexto Sentido: o homem e o encantamento do mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p.

192.

94 MESQUISTA, C. Moda Contemporânea: quatro ou cinco conexões possíveis. São Paulo: Anhembi-Morumbi,

respostas, porque mobiliza sentimentos. Vale ressaltar ainda que, no cotidiano, os sentimentos são díspares e freqüentemente se misturam.

É assim que o look produz o êxtase de transformar-se em outro pelo texto do vestuário, pelo artifício. Esta ação-captura torna-se uma competência do indivíduo, que manipula informações estéticas a fim de alcançar sua parcela de gozo. Parecer belo (a), parecer com, é simular um atrativo; é o lançar de uma senha-captura Dior,

Versace, Westwood, Hercovitch. Por isso, o jogo das aparências propostos pelos

empresários de indústrias têxteis, estilistas, stylists e logistas a serem mimetizados “predispõe o surgimento de uma tendência e renega a subjetividade do consumidor aos patamares mais insignificantes, para que ele possa se manter ‘em dia’ com o que considera atual”95. O caráter estimulador do look de moda merece ser considerado. Ele exige posturas corporais, padrões, que referem o receptor à apropriação dos esquemas da moda. Porém, modifica a interpretação prescrita quando se apropria do código para realizar a logística do logro. Os looks não são análogos das coleções na moda, já que estas se notabilizam por eternizar o objeto de coleção, ao mesmo tempo em que o substituem indefinidamente na remissão à cadeia dos objetos idênticos. O sujeito da coleção se representa no espaço das coisas e não o inverso. O colecionador excita-se com os objetos em série. As coisas assim representadas “não admitem uma construção mediadora a partir de grandes contextos”96. Porém, os objetos do vestuário e também as suas imagens (looks) são, ao contrário dos objetos de coleção, representações do espaço inter-subjetivo. São criativos.

Nos looks estampados nos outdoors os mecanismos de espacialização e temporalização “são instalados para marcar o tempo e o espaço do aqui, em relação ao resgate de certos detalhes quase emblemáticos da época ou do local que o look busca resgatar, os quais, por sua vez, marcam o outrora e o alhures do discurso”97. Dito de outro modo, a trajetória entre o espectador e a imagem é a captura do tempo, ou seja, de um dizer ou imagem que ecoa de outro tempo. Esse recorte no presente é um flash onírico. Imagine-se um look retrô, a remeter o observador ao

95 GARCIA, C. Moda é comunicação: experiências, memórias, vínculos. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2005, p.

46.

96 BENJAMIN, Walter. Passagens; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bole;

colaboração Olgária Chaim Feres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão. – Belo Horizonte: Editora UFMG: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 240.

imaginário feminino dos anos 60 com botas de canos longos e vestidos curtos; esse instante único e efêmero é o vento do antigo. Este traduz-se em imagens da cultura e da memória arcaica; esses registros estão referenciados, por exemplo, na análise do poder de signifcação do rosto a ser destacado adiante.