• Nenhum resultado encontrado

4 CONVENÇÃO DE CRIAÇÃO DE ATAQUES VAZIOS

Estádio 3: os dois elementos do grupo consonântico são produzidos

Estádio 3a: como estando associados a uma só posição do esqueleto

(CiC2)

Estádio 3b: com vogal epentética entre as duas consoantes do Grupo

(.C1C2V-» .C1V.C2V) e conforme o alvo (dC2)

Estádio 3c: conforme o alvo (.C1C2)

Divisões silábicas espontâneas

Andrade e Viana (1993:209 e ss.) e Mateus e Andrade (1998:15; 2000:44)8

referem explicitamente que, quando confrontados com a tarefa de divisão silábica explícita, os falantes do português demonstram frequentemente dúvidas e divergências quanto a repartirem as duas consoantes das sequências de Tipo II por uma ou duas sílabas.

Convenções ortográficas associadas

Finalmente, referiremos que também a ortografia oficial da língua, através da fixação das regras de translineação, estabelece uma distinção entre as sequências consonânticas de Tipo I e Tipo II.

Na verdade, a Base XLVIII do Acordo Ortográfico vigente9, estatuindo que a

translineação gráfica das palavras deve atender exclusivamente à divisão silábica das mesmas (proscrevendo outros critérios, como o da etimologia ou o da composição morfológica), estabelece uma divisão inequívoca entre o que designa por "perfeitos grupos" (que, pela explicação e exemplificação apresentadas, correspondem exactamente aos grupos consonânticos de Tipo I acima referidos) e "as sucessões de duas consoantes que não constituem propriamente grupos" (isto é, as sequências de Tipo II). Consentaneamente com o princípio que estabelece rigidamente a divisão silábica como o critério de translineação gráfica do português e com a distinção delineada entre umas combinações consonânticas e outras, o Acordo Ortográfico

8 As observações de Andrade e Viana (1993:209 e ss.) e Mateus e Andrade (1998:15; 2000:44) aqui

referidas a este propósito surgem da constatação destas dúvidas e divergências na tarefa de translineação gráfica - que, como adiante veremos, obedece estritamente à divisão silábica das palavras.

9 Decreto n° 35:228, publicado no Diário do Governo, Ia Série, n° 273, de 8 de Dezembro de 1945;

servimo-nos, no presente trabalho, da transcrição do Acordo contida em suplemento a Gonçalves (1947) (pp. 21-59).

determina então que as sequências como as do Tipo I não sejam nunca divididas, na escrita, por duas linhas diferentes e que as do Tipo II o sejam obrigatoriamente10.

* * * * *

Concluindo estas observações gerais, reunimos no quadro seguinte as principais características das sequências consonânticas que correspondem, na categorização aqui adoptada, aos Tipos I e II de cuja distinção nos temos ocupado.

10 Nas "Instruções para a organização do «Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa»"

aprovadas pela Comissão da Reforma Ortográfica e reproduzidas em Gonçalves (1947:suplemento, pp. 63-101), a secção X ("Da divisão silábica") retoma os preceitos vertidos na Base XLVIII do Acordo Ortográfico (1945) (Gonçalves, 1947:suplemento, pp. 86-87), especificando apenas, no parágrafo Io, que

quando os grupos obrigatoriamente translineados ocorrem em início absoluto de palavra não se dividem por duas linhas (exemplos das "Instruções": bde-lómetro, cni-dose, cza-rista, fti-ríase, gno-ma, mne-

Quadro 3.1 - Resumo das características dos dois tipos de sequências CC do português

Sequências consonânticas de

TIPOI Sequências consonânticas de TIPOn Combinações segmentais Obstruinte+Líquida Obstruinte+Obstruinte

Obstruinte+Nasal Estatuto silábico de acordo

com as descrições fonológicas (Câmara, 1970; 1971;

Mateus e Andrade, 1998; 2000)

Tautossilábicas Heterossilábicas

Estatuto silábico segundo o

Acordo Ortográfico Tautossilábicas (não-translineáveis) Heterossilábicas (obrigatoriamente

translineáveis, excepto em início absoluto de palavra) Frequência Frequentes (Barbosa, 1965; 1994; Câmara, 1970; 1971; Vigário e Fale, 1994; Freitas, 1997) Raras (Barbosa, 1965; 1994; Câmara, 1970; 1971; Vigário e Fale, 1994; Freitas, 1997) Princípio da Sonoridade Respeitado

(Vigário e Fale, 1994;

Mateus e Andrade, 1998; 2000)

Violado

(Vigário e Fale, 1994;

Mateus e Andrade, 1998; 2000) Condição de Dissemelhança Respeitada

(Vigário e Fale, 1994;

Mateus e Andrade, 1998; 2000)

Violada

(Vigário e Fale, 1994;

Mateus e Andrade, 1998; 2000) Aquisição fonológica Presentes nas primeiras

produções infantis. Adquiridas depois da aquisição dos Ataques não-ramificados. Antes da aquisição segundo a fonologia adulta: "estratégias de reconstrução"

(nomeadamente: apagamento parcial e epêntese)

(Freitas, 1997; 2002)

Praticamente ausentes das primeiras produções infantis (Freitas, 1997)

Epêntese Frequente e atestada

(Barbosa, 1965; Câmara, 1970; 1971; Vigário e Fale, 1994;

Mateus e Andrade, 1998; 2000; Freitas, 2002)

Divisões silábicas espontâneas Sujeitas a dúvidas e

divergências frequentes (Andrade e Viana, 1993; Mateus e Andrade, 1998; 2000)

Origem histórica Origem tardia, por via culta,

contrariando as estruturas fonológicas espontâneas do português

3.3 - Problemas específicos colocados pela silabificação das sequências Obstruinte+Lateral

Nesta secção, pretendemos chamar a atenção para alguns aspectos da distinção entre sequências de Tipo I e sequências de Tipo II (sumariada no Quadro 3.1) que, após uma análise mais aprofundada dos argumentos reunidos ao longo da secção anterior, nos suscitam algumas interrogações.

Concretizando: julgamos haver alguns indícios de que certos argumentos que remetem as sequências de Tipo II para um grupo onde se encontram, em princípio, sequências de alguma forma "excepcionais" ou "marcadas" no português não se confinam exclusivamente às sequências Obstruinte+Obstruinte e Obstruinte+Nasal, podendo também verificar-se, pelo menos em parte, em relação às sequências Obstruinte+Lateral - que, assim sendo, se tornariam merecedoras de alguma reinterpretação fonológica.

Dois desses argumentos, que aqui discutiremos de forma interligada, são a origem histórica e a epêntese. Vimos que autores como Câmara (1970) se apoiam na origem tardia e erudita das sequências de Tipo II para concluir que estas, não correspondendo a formatos silábicos espontaneamente surgidos no português, não se integram imediatamente na fonologia da língua, o que é resolvido, na gramática interna dos falantes, pelo seu desdobramento - através da epêntese de uma vogal ([i] no português europeu, [i] no português brasileiro) - em sílabas conformes aos formatos "espontâneos"11. Vigário e Fale (1994:477) referem-se também a este aspecto,

sublinhando que a maior parte dos grupos consonânticos latinos, por não se integrarem nas estruturas silábicas "espontâneas" do português, sofreram frequentemente, ao longo

11 Mais uma vez, lembramos o argumento de Fikkert (1994:5-6) e de Blevins (1995:220) que afirma que

da história da língua, outros fenómenos de "compatibilização" com essas estruturas "normais"12.

Confrontando estes mesmos argumentos com as sequências de Tipo I resultantes da combinação Obstruinte+Lateral, constataremos, em primeiro lugar, que esta combinação segmentai não corresponde, tal como acontece com as sequências de Tipo II, a um grupo consonântico resultante da evolução espontânea do latim coloquial para o português. Com efeito, no decurso da formação do português como língua "por via popular"13, as formas etimológicas latinas com grupos consonânticos como [pi] e [fl], p.

ex., deram origem, no galego-português, a formas como, respectivamente, [tf] (mais tarde simplificado para [fl) e [fr] (cf. Nunes, 1956:93-94; Teyssier, 1980:14-15; Maia, 1986:617 e ss.14; Paiva, 2002:vol. IV, pp. 105 e ss.). Exemplificam esta situação as

evoluções originais das palavras latinas "plenum" e "florem" para as formas do português arcaico e medieval ['tjeo] (hoje "cheio", ['Jeju]) e ['frol]. As palavras que, em português, ostentam sequências como [pi] e [fl] - não atestadas, conforme acabamos de ver, como resultado de evoluções espontâneas na história da língua - resultam ou de importações eruditas tardias do latim e do grego (como em "glectro", "flama",

"gládio", etc.), ou de relatinizações, igualmente tardias e não-espontâneas (cf.: Teyssier, 1980:68-70; Paiva, 2002:vol. IV, p. 106), em palavras como "flor" e "flauta", p. ex. (cujas formas resultantes da evolução espontânea autóctone eram,

Vd. exemplos na nota 5.

13 Cf. as observações de Teyssier (1980:19-20) sobre a origem "popular" e a origem "erudita" das

diferentes palavras do léxico português e sobre o facto de os resultados por via erudita não se coadunarem necessariamente com as características fonéticas da língua (não se integrando imediatamente, portanto, na sua fonologia).

Segundo Maia (1986:618-619), a presença gráfica, em alguns documentos escritos do período de formação do galego-português, dos grupos consonânticos originais latinos deve ser sempre interpretada como o reflexo de um esforço deliberado de latinizaçâo por influência culta.

Quanto à passagem de [1] a [r] em grupos consonânticos como [fl] durante a época de formação da língua, a mesma autora afirma ainda que, no mesmo período, não se atesta no galego-português a Sul do rio Minho o fenómeno contrário (isto é, a passagem de Obstruinte+Vibrante a Obstruinte+Lateral,

respectivamente, "frol" e "frauta") . Em ambos os casos (importação erudita tardia ou relatinização), as sequências Obstruinte+Lateral representam sempre combinações tipicamente exógenas, não atestadas nas intuições fonológicas originais e autóctones dos falantes e claramente associadas em autores como Teyssier (1980) a formas não inteiramente conformes à fonologia da língua - tal como as sequências de Tipo H anteriormente referidas.

Como vimos, a incompatibilidade de sequências Obstruinte+Obstruinte ou Obstruinte+Nasal com as intuições fonológicas originais dos falantes, nas sequências de Tipo II, levou a que estas sequências tivessem sofrido um fenómeno de "compatibilização" de que a manifestação mais evidente parece ser, de acordo com Barbosa (1965:212), Câmara (1970:56-57; 1971:27 e ss.), Vigário e Fale (1994:477) e Mateus e Andrade (1998:16; 2000:44), o desdobramento das duas consoantes por duas sílabas de formato básico através da epêntese de uma vogal intermédia (vd. 3.2).

Este argumento, que os autores invocam somente a respeito das sequências de Tipo II, verifica-se também, como pretendemos demonstrar de seguida, nas sequências Obstruinte+Lateral.

Em primeiro lugar, recordemos que, no estudo da aquisição destas sequências em português europeu, Freitas (1997) identifica a epêntese numa percentagem muito significativa de casos - fazendo-a mesmo corresponder a um estádio preciso da aquisição da estrutura silábica da língua (cf. Freitas, 1997:193; vd. Fig. 3.A) - e interpreta-a como uma estratégia de integrar estes grupos consonânticos no

esporadicamente registada na Galiza e muito frequente no asturiano ocidental e no leonês - cf. Maia, 1986:619-620).

15 Atente-se, a propósito, nas seguintes palavras de Teyssier (1980): "Acrescente-se por fim que o

português moderno possui um grande número de palavras eruditas em que os grupos iniciais pi-, cl- e

fl-, assim como bl-, foram conservados sem modificação; ex.: pleno, clima, flauta, bloco. " (Teyssier,

conhecimento fonológico das crianças, o que nos deixa subentender que tais grupos correspondem a formatos silábicos marcados no conhecimento de tais sujeitos.

Por outro lado, corroborando ainda os dados de Freitas (1997) e uma nossa constatação empírica, ainda não referida, segundo a qual produções fonéticas como [pi'rëte] (para "planta") e [fi'lor] (para "flor"), p. ex., são relativamente comuns num registo coloquial mesmo em sujeitos adultos, uma outra manifestação deste tipo de acrescentos epentéticos merece uma particular menção neste momento. Referimo-nos às produções metrificadas tradicionais, de raiz popular, supostamente oriundas de falantes detentores de níveis de instrução formal nulos ou pouco elevados, nas quais é detectável a introdução de uma vogal epentética entre as duas consoantes deste tipo de sequências.

Um levantamento não exaustivo das quadras compiladas por Delgado (org., 1980) para a elaboração de um Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo, p. ex., permite- nos recolher numerosos espécimes de quadras em que, nos versos que abaixo transcrevemos em sublinhado, a redondilha maior16 só se torna possível se, nas palavras

morfologicamente aparentadas com "flor" nas quadras transcritas, aceitarmos a presença de um [i] epentético entre [fj e [1] (conforme por nós assinalado na própria transcrição ortográfica)17:

A redondilha maior é o verso encontrado com maior frequência na chamada "poesia popular", caracterizando-se por se escandir em sete sílabas e por o seu esquema acentuai poder apresentar variações diversas (cf. Cunha e Cintra, 1984:680).

Na transcrição das quadras, indicamos não só a página da compilação de Delgado (org., 1980) em que cada exemplo se encontra, como também o número de ordem que lhe é atribuído pelo organizador na sua recolha (vol. I). Na transcrição, seguiremos todas as opções ortográficas e tipográficas adoptadas pela edição de Delgado (org., 1980), excepto no sublinhado e na indicação do [è] epentético que indicam, respectivamente, o verso e o ponto exactos em que essa epêntese se torna obrigatória, segundo o ponto de vista que expusemos no corpo do texto, para a conformação de tais versos ao esquema métrico observado em todas as quadras recolhidas (a redondilha maior).

Não olhes p'ra mim, não olhes, Qu'eu não sou o teu amor. Eu não sou como a figueira Que dá fruto sem fftllor.

(Delgado, org., 1980:236; n° 2114) Padeço eternas saudades

Do meu ditoso passado, Desses dias ffi|loridos Que gozei sempre a teu lado.

(Delgado, org., 1980:258; n°2332)

Padeço eternas saudades Do meu ditoso passado, Desses dias ffilloridos Que por mim têm passado.

(Delgado, org., 1980:258; n° 2333)

Primavera se ausentou, Deixou tudo fTillorido:

Também meu bem se ausentou, Não mais me veio ao «sentido».

(Delgado, org., 1980:259; n°2345)

Vai-te, carta venturosa, Toda cheia de íjillores. Guiada por passarinhos, Contando vida de amores.

(Delgado, org., 1980:286; n° 2616)

Abre meu peito e verás Quatro ramos íTilloridos, E no meio encontrarás Nossos corações unidos.

(Delgado, org., 1980:289; n° 2637)

Abre meu peito e verás Quatro ramos fji]loridos. Só no meio encontrarás Nossos corações unidos.

Pensamos que as produções de criações metrificadas populares que acabamos de transcrever constituem, entre outros, um indício considerável de que, tal como as sequências de Tipo II referidas em 3.2, também as sequências Obstruinte+Lateral são frequentemente produzidas com uma vogal "epentética" entre as duas consoantes. Lembrando que, nas já mencionadas sequências de Tipo II, tal vogal epentética é interpretada por autores como Câmara (1970; 1971) e Mateus e Andrade (1998; 2000) como a realização fonética de um Núcleo silábico, e recordando também que as sequências Obstruinte+Lateral partilham outras características importantes com as sequências de Tipo II (nomeadamente as ligadas à sua origem histórica no português), podemos desde já questionar-nos sobre as razões que tradicionalmente levam a classificar as sequências Obstruinte+Lateral como tautossilábicas e a traçar uma divisão entre estas e as sequências de Tipo II (Obstruinte+Ostruinte e Obstruinte+Nasal). A procura de possíveis respostas para este questionamento constituirá, de resto, um dos objectivos do seguimento do presente estudo.

3.4 - Fronteiras silábicas no interior das sequências Obstruinte+Obstruinte em posição medial. O caso concreto das sequências Obstruinte 1^1+Obstruinte

Outras sequências consonânticas no tocante as quais pretendemos esclarecer alguns aspectos relacionados com a respectiva representação silábica no conhecimento fonológico dos falantes nativos do português europeu contemporâneo são as sequências Obstruinte /J/+Obstruinte encontradas em posição medial de palavra (num número

considerável de palavras, /J7 pode ser foneticamente realizada como [3] perante determinados contextos fonético-fonológicos, o que acontece nomeadamente antes de consoante vozeada, em palavras como, p. ex., "desgosto "). Em relação às sequências tratadas nos dois pontos anteriores deste trabalho, estas sequências apresentam a diferença importante de preverem na primeira posição consonântica uma das consoantes admitidas pela fonologia do português na posição de Coda silábica (que são, como vimos em 2.3.1, /J7, IV e Irf), o que permite reparti-las por duas sílabas distintas18.

Na verdade, e de acordo com as Convenções de Associação de Ataques e de Associação de Codas do algoritmo de silabifícação de Mateus e Andrade (2000:60-64) apresentado em 2.4, estes encontros consonânticos dividem-se por duas sílabas distintas e sucessivas. Daí resulta que a primeira consoante seja associada à Coda da primeira

Reduzimos a nossa atenção, neste trabalho, apenas aos casos de sequências CC, isto é, àqueles em que, a seguir à segunda consoante, ocorre uma vogal, excluindo deliberadamente dos nossos propósitos de estudo as sequências em que, de um ponto de vista estritamente segmentai, três ou quatro consoantes se sucedem (p. ex.: "abstinência", "obstrução", "adstringente"). Por outro lado, como já afirmámos, também não nos ocupamos das sequências de duas, três ou mais consoantes resultantes, a nível fonético, do apagamento de vogais átonas (nomeadamente, do apagamento de [i]), as quais implicam a violação, a esse mesmo nível, do Princípio da Sonoridade, da Condição de Dissemelhança e do algoritmo de silabifícação do português de Mateus e Andrade (2000:60-64). Mesmo aceitando que o conhecimento das condições em que tal apagamento se torna lícito na língua constitua um "módulo" do conhecimento fonológico dos sujeitos, pensamos que este assunto nos remete para um outro nível específico desse mesmo conhecimento fonológico, e não para o nível em que se encontra representada a silabifícação de base de que aqui pretendemos ocupar-nos.

sílaba e a segunda ao Ataque da segunda, dando-se origem, como tal, a uma fronteira silábica entre as duas consoantes (ces.to, mos.ca, alto, car.tá).

Esta interpretação fonológica encontra eco suplementar no entendimento destas sequências por parte das normas canónicas da ortografia da língua. Como vimos em 3.2, a Base XLVIII do Acordo Ortográfico em vigor para o português estabelece que todos os encontros de duas consoantes - à excepção unicamente, como vimos também, dos encontros Obstruinte+Líquida, aí apelidados de "perfeitos grupos" - sejam repartidos, na translineação, por duas linhas diferentes. Logo, as palavras exemplificadas no final do parágrafo anterior serão obrigatoriamente translineadas como ces//to, mosf/ca, aV/to, car//ta (isto é, de forma inteiramente coincidente com a silabificação proposta pelo algoritmo de silabificação de Mateus e Andrade, 2000).

Não devemos, porém, esquecer que Andrade e Viana (1993:209 e ss.) referem explicitamente as dúvidas frequentes dos falantes quanto à translineação destas (bem como de outras) sequências consonânticas, admitindo um conflito entre translineações do tipo VC//CV (conformes às descrições fonológicas e às normas ortográficas) e as do tipo V//CCV (não conformes nem a umas, nem a outras) (cf., p. ex., Andrade e Viana, 1993:211)19.

Quanto a nós, este tipo de dúvidas pode eventualmente indiciar que as duas possibilidades de silabificação destas sequências sejam, pelo menos parcialmente, admissíveis no conhecimento fonológico dos sujeitos e se encontrem de alguma forma em conflito, sendo de admitir também que esta situação possa exemplificar um dos

Dúvidas idênticas são invocadas por autores da fonologia como Mateus e Andrade (1998:15; 2000:44) no âmbito da fundamentação de algumas das suas propostas teóricas e a respeito das sequências CC em que a primeira consoante não é admitida em Coda. Nas duas passagens que citámos, o argumento das dúvidas dos falantes quanto à soletração e translineação de palavras como "admirar" (ad-mirar vs. a-

dmirar) serve de suporte para a proposta da existência de um Núcleo vazio entre as duas consoantes de

"pontos opcionais" da gramática da língua previstos por Guy (1997:129) de acordo com o exposto no ponto 1.5 deste trabalho.

As diversas possibilidades de divisão silábica destas consoantes são criteriosamente analisadas no trabalho de Vigário e Fale (1994:476-477), que contrapõem cada uma das silabificações possíveis destas sequências (VC.CV, V.CCV, V.C[i].CV) com o Princípio da Sonoridade, a Condição de Dissemelhança, o Princípio do Ataque Máximo e o Princípio da Legitimação Prosódica, concluindo que cada uma dessas silabificações é compatível com alguns destes princípios e incompatível com outros (Vigário e Fale, 1994:476)20.

Como se depreende dos dados que acabamos de reunir, a interpretação destas sequências como indiscutivelmente heterossilábicas - apesar da concordância de tais interpretações com aspectos essenciais da descrição fonológica do português (como, nomeadamente, o facto de a ocorrência da primeira consoante em Coda silábica não violar nenhuma restrição fonotáctica da língua, como vimos) - não exclui que outras possibilidades sejam consideradas. Na verdade, e invocando os argumentos largamente referidos e aprofundados no ponto 1.5 deste trabalho, a validade das interpretações linguísticas parece-nos dever ser aferida mais pela sua correspondência com aquilo que nos é possível detectar do conhecimento da língua dos falantes do que pela coerência formal das próprias teorias. Assim sendo - dada a abertura manifestada pela própria teoria fonológica em geral em relação à colocação exacta das fronteiras silábicas perante combinações consonânticas mais complexas e dadas as dúvidas dos falantes nativos do português quanto à divisão destas sequências, referidas por autores como

20 Ao confrontarem várias silabificações possíveis com vários princípios silábicos aparentemente em

conflito e procedendo a uma avaliação comparativa das diversas violações de princípios geradas por cada uma dessas silabificações, Vigário e Fale (1994) concretizam uma análise deste problema que se aproxima da metodologia de análise linguística proposta no quadro da teoria da optimidade.

2 Referimo-nos aqui às observações de autores como Hogg e McCully (1987:51) e Blevins (1995:222,

Andrade e Viana (1993) e Mateus e Andrade (1998; 2000), parece-nos ser de aprofundar também esta questão específica no seguimento deste trabalho na sua componente experimental.