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CONHECIMENTO FONOLÓGICO E CONHECIMENTO ORTOGRÁFICO

PISTAS PARA A CARACTERIZAÇÃO INFERENCIAL DO CONHECIMENTO FONOLÓGICO

5.7 - Dificuldades de estudo levantadas pelo carácter mental e implícito do conhecimento da língua e do conhecimento fonológico

Como tentámos deixar claro em 1.1.1.1 e 1.1.1.2, entre as principais características intrínsecas do conhecimento da língua conta-se o seu carácter mental, implícito e interiorizado. Estas características (como, por sua vez, fizemos notar em 2.1) replicam-se também na definição do conhecimento fonológico enquanto componente mais específica do conhecimento da língua (cf., a propósito, as observações de Halle (1990:57, 58, 64-65) referidas em 2.1). Esta natureza "abstracta" do conhecimento da língua, a um nível mais geral, e, num plano mais particularizado, do conhecimento fonológico levanta a disciplinas como a linguística e a fonologia o seguinte problema: como aceder a um objecto puramente imaterial? Por outras palavras: elegendo como objecto da sua investigação realidades não observáveis a partir do exterior, inapreensíveis por inspecção directa de um observador externo1, como podem a

1 Esta opção da linguística generativa por um objecto não acessível à observação empírica constitui uma

das marcas do posicionamento racionalista e anti-empirista desta corrente, a que fizemos uma breve alusão no capítulo I deste trabalho (vd., p. ex., a nota 2 desse capítulo). Considerem-se, a este propósito e neste momento, as seguintes palavras de um dos principais mentores da filosofia racionalista dos séculos XVII e XVIII em defesa do estudo de realidades somente atingíveis pela razão e não necessariamente pelos sentidos:

"É verdade que (...) [não é possível] imaginar-se que se pode 1er na alma estas leis eternas da razão em livro aberto, como o édito do pretor se lê no seu álbum sem dificuldade e sem investigação: basta que se possa descobri-las em nós à força de atenção (...) e o êxito das experiências serve ainda de

linguística e a fonologia2 extrair dos seus objectos de estudo as particularidades e as

regularidades que pretendem descrever e explicar?3

Esta dificuldade adveniente da natureza abstracta do conhecimento da língua para o seu estudo e caracterização - admissível em relação a todas as suas componentes (nas quais se integra o conhecimento fonológico) e, como tal, extensível a todas as subdisciplinas da linguística que delas se ocupam - é claramente referida por autores como, entre outros, Foss e Hakes (1978:20) ou Foster-Cohen (1999:1-3, 8, 183). A este propósito, parecem-nos muito significativas as seguintes passagens destes mesmos autores, nas quais se afirma explicitamente que o estudo do conhecimento da língua é sempre um estudo inferential e indirecto, na medida em que baseado em ilações acerca de um objecto abstracto que partem de observações de um objecto externo:

confirmação à razão, mais ou menos como as provas servem na aritmética para melhor evitar os erros de cálculo (...)." (Leibniz, 1765:27).

2 Referimo-nos, naturalmente, à linguística e à fonologia que se reconhecem no programa generativo,

visto ser no âmbito do generativismo que se verifica o pressuposto de que o conhecimento da língua e o conhecimento fonológico correspondem aos objectos centrais, respectivamente, da linguística e da fonologia.

3 Esta é, aliás, uma das grandes questões que se colocam à própria psicologia (tornando assim mais

consistente, dentro da teoria generativa, a proposta de Chomsky (1975:3-4, 36; 1979:43, 47-48; 1986:46; 1988:1-2, 6) que remete a linguística para uma "secção" da psicologia (vd. nota 6 do cap. I). A este propósito, vejamos as reflexões introdutórias de Eysenck (1994:1 e ss., 21 e ss., 107 e ss.) acerca das dificuldades levantadas por esta "inacessibilidade" do objecto da psicologia para o estabelecimento da disciplina enquanto domínio científico. Como refere o autor citado, num primeiro momento da história da psicologia as dificuldades geradas pelo carácter "imaterial" da mente humana eram resolvidas através do método da introspecção subjectiva (Eysenck, 1994:1). Dada a natureza extremamente falível e intransmissível dessa abordagem, os psicólogos behavioristas - que negam inclusivamente a existência de algo a que possamos chamar "mente", precisamente devido ao seu carácter abstracto e empiricamente inatingível (cf. Eysenck, 1994:1, 20 e ss.) - limitam rigidamente o seu objecto de estudo às condutas individuais externamente observáveis (Eysenck, 1994:21, 22). Modernamente, ainda segundo o mesmo autor, a psicologia aceita que a realidade interna e mental dos sujeitos possa ser caracterizada com base sobretudo na observação das condutas externas destes últimos, tidas já não enquanto objectos de estudo

per se, mas como vias inferenciais de acesso à mente interiorizada dos indivíduos ("(...) behaviorists

tended to be interested in behaviour itself, but contemporary psychologists usually regard behaviour as of interest mainly because it sheds light on internal processes: In other words, behaviour is used to draw inferences about those internal processes." - Eysenck, 1994:3).

4 Vd. novamente as observações de Eysenck (1994:3) relativas à natureza também inferencial do estudo

psicológico da mente referidas e citadas na nota anterior.

Refira-se que também Pinto (1988a:8), na passagem transcrita na pág. 44 deste trabalho, alude à natureza inferencial do estudo que pretende caracterizar a competência linguística dos falantes.

"The main task of the linguist is to describe the competence of the speakers of a language. The main task of the psycholinguist is to construct a theory of linguistic performance. A performance theory will state how knowledge of a language is represented in the speaker's cognitive system. It will also characterize the processes by which one speaks, understands, or otherwise makes use of one's linguistic competence. Many of these processes are also involved in other cognitive (mental) activities. Consequently, psycholinguistics can best be viewed as a branch of cognitive psychology.

One's knowledge of language and of linguistic processes is both complex and tacit. Because of this, discovering and understanding linguistic competence and linguistic performance is difficult. Language users cannot tell us what they are doing as they are producing, understanding or otherwise using language. So we must make inferences about the underlying knowledge and processes from the performances we can observe. We study psycholinguistics by indirection. "

(Foss e Hakes, 1978:20; itálicos nossos)

"The reason why we can't decide what infants know or don't know is that we cannot observe knowledge directly. We can't get inside children's heads, but have to use more or less subtle methods of observation and experimentation that we hope will give us the clues we need."

(Foster-Cohen, 1999:1)

"(...) [children] can't sit down and tell us any of what they know, until they are at least three or so. In fact, even then, they can only tell us what is available to conscious reflection. Most of what anyone, child or adult, 'knows' about language is not directly accessible, and must be probed in ways only slightly more direct than with small children. (...) How can we know what children know about language?"

5.2 - Caracterização das propriedades do conhecimento fonológico: elementos reveladores

5.2.1 - As realizações orais

Tendo presente o facto, referido no final do numero anterior, de que o estudo do conhecimento da língua (logo, do conhecimento fonológico) é sempre um estudo indirecto, pelas razões aí apontadas, ergue-se então a necessidade de se encontrar, para a sua caracterização, indícios dotados de algum tipo de materialidade que, como pistas reveladoras, permitam uma forma de "acesso" indirecto e inferencial (Foss e Hakes, 1978:20; Berman, 1983:228, 231; Pinto, 1988a:8; Foster-Cohen, 1999:1-3, 8, 183) à compreensão do verdadeiro objecto da descrição/explicação da linguística e da fonologia (replicando-se assim, no domínio específico destas abordagens, as afirmações mais abrangentes de Eysenck (1994:3) respeitantes ao carácter também indirecto e inferencial do estudo psicológico em geral).

Para a generalidade dos autores que desenvolvem a sua investigação no âmbito das correntes generativistas os objectos externos em que são procuradas as pistas reveladoras mencionadas no parágrafo anterior esgotam-se quase exclusivamente em corpora de realizações orais em princípio produzidas por sujeitos concretos em situações de enunciação igualmente concretas5. Todavia, esta atitude metodológica pode

levantar ao estudo do conhecimento da língua (quer a nível geral, quer a níveis mais específicos, como, nomeadamente, o formado pelo conhecimento fonológico) o seguinte problema: como expressamente admitido por autores como Chomsky (1957:129, 130,

5 Uma assunção explícita dos dados empíricos das produções orais (infantis) como via de acesso à

caracterização do conhecimento fonológico das crianças nas diversas fases do seu desenvolvimento linguístico encontra-se na seguinte passagem de Freitas (1997), na qual a autora justifica a metodologia - seguida pela quase totalidade dos trabalhos de investigação nesta área (cf., p. ex., da mesma autora a metodologia seguida em Freitas, 1998; 1999; 2001; 2002) - de inferir, a partir de um corpus delimitado de realizações verbais infantis, generalizações acerca da gramática interiorizada subjacente ao mesmo:

131; 1965a:46; 1966:4), Villiers e Villiers (1978:5), Pinto (1988a:8), M. Hams

(1992:2), Foster-Cohen (1999:9, 10) ou Raposo (1992:31-33), a performance não deve ser considerada um "espelho " perfeito e absolutamente fiável da competência, já que ela se encontra sujeita a um grande número de variáveis sociais, culturais e situacionais que, de certa forma, representam "contaminações" externas à competência linguística propriamente dita (vd. 1.1.2.2 e 1.5). Ora, sendo as produções orais concretas atrás referidas parte integrante da performance (embora admitamos que nesta possam ter lugar outras manifestações linguísticas, como as produções escritas e, mesmo, certas operações metalinguísticas explícitas - vd. pontos 5.2.2 e 5.2.3 deste mesmo capítulo), consideramos útil alargar o conjunto de indícios da competência interiorizada a um conjunto mais lato de evidências externas.

Consequentemente, impõe-se então a procura de outras vias possibilitadoras do estudo do conhecimento da língua e do conhecimento fonológico que não se reduzam apenas às produções orais dos falantes e que contribuam para aprofundar, em complemento à observação dessas mesmas produções, todas as formas possíveis de caracterização do objecto central do estudo linguístico e fonológico.

"Através da observação das produções das crianças, é possível ter acesso ao modo como o conhecimento [da língua] se organiza (...)." (Freitas, 1997:11).

6 "Only under [an] idealization (...) is performance a direct reflection of competence (...)." (Chomsky,

5.2.2 - As primeiras produções escritas

Na presente secção, pretendemos demonstrar que, em alternativa ou em complemento às produções orais referidas em 5.2.1, também as primeiras produções

escritas das crianças podem constituir-se como uma das pistas que, de modo indirecto

e inferencial, possibilitam de algum modo formas tentativas de caracterização do conhecimento fonológico dos sujeitos.

Referimo-nos, concretamente, às produções gráficas de crianças com um conhecimento ainda não completamente consolidado de todas convenções ortográficas normativas da sua língua, ou seja, às produções escritas de crianças que tenham já assimilado certos princípios e elementos básicos da escrita alfabética - como o princípio geral da correspondência entre sons e letras e o principal valor fonético-fonológico, na sua língua, de cada símbolo gráfico - mas a quem ainda não tenham sido definitivamente ensinados/impostos todos os aspectos da norma ortográfica que ultrapassem o nível de uma correspondência mais directa entre os segmentos fonémicos e os símbolos gráficos que os representam7. Confrontadas com a necessidade e a

vontade de darem uma forma escrita às palavras, as crianças em tal situação apoiar-se- ão então, quase exclusivamente, na análise segmentai do material verbal com base no processamento auditivo do mesmo8, conforme salientado, p. ex., por Pinto (1998:147,

148, 162, 181 e ss.)9 ou Kress (2000:1-2). Das produções assim originadas resultarão,

Estas produções são frequentemente observadas junto de crianças nos últimos anos do ensino pré- escolar ou nos primeiros meses do início da escolaridade formal, conforme os estudos de autores como, p. ex., Ferreiro (1982; 1988) e, relativamente ao português, Martins e Mendes (1986; 1987) e Martins (2000).

8 Em sujeitos adultos detentores de baixos níveis de escolaridade e/ou com fracos índices de prática

regular da leitura e da escrita, assumimos que a mesma situação se verifique também (cf., p. ex., as observações em sentido idêntico que encontramos em Pinto, 1998:148). Como, para o desenvolvimento do nosso trabalho na sua componente experimental, nos parece mais pertinente a situação verificada com a população infantil, concentrar-nos-emos, neste momento, nas evidências que nos são oferecidas pelas crianças no decurso da sua aprendizagem escolar da escrita.

9 Nas passagens do trabalho de Pinto (1998) aqui referidas, a autora defende a ideia - central em relação

aos propósitos essenciais do nosso trabalho - de que a aprendizagem escolar da escrita (isto é, da ortografia canónica) acaba, inclusivamente, por determinar o modo como esta análise auditiva da fala — condicionante, nas primeiras abordagens infantis à escrita, das produções gráficas iniciais - acaba ela

consequentemente, formas gráficas em larga medida comparáveis a um certo tipo de transcrição fonética ou fonémica, o que, como vimos em 4.3, não corresponde propriamente, de acordo com autores como Chomsky e Halle (1968:49), Booij (1987:215), Pinto (1994:169-170) ou Perfetti (1997:35 e ss.), aos objectivos centrais de um sistema ortográfico.

De acordo com as tradições pedagógicas correntes, estas produções são catalogadas na categoria dos erros ortográficos. Para muitos autores, provenientes sobretudo do domínio da psicolinguística e que sublinham o carácter criativo destas produções, elas constituem, outrossim, elementos altamente reveladores de inúmeras características essenciais do conhecimento fonológico das crianças1 (cf., entre outros:

Read, 1971:3 e ss.; 1975:330 e ss.; 1986; Mann, Tobin e Wilson, 1987:368 e ss.; Pinto, 1998:142 e ss.; Kress, 2000:1 e ss., 116,117)".

Neste contexto, referiremos então a tipologia dos denominados erros ortográficos apresentada em Pinto (1998:147-149) , em que a autora admite uma categoria de "erro" que, a este respeito, nos parece pertinente aqui salientar: os erros de uso.

Tais "erros"13 são aqueles que, de acordo com as próprias palavras da autora,

"afectafm] a forma gráfica da palavra (em si própria e não em situação) sem afectar a

própria por ser reconfigurada pela aprendizagem da imagem visual das palavras (vd. também o ponto 4.5 do capítulo IV).

10 Refira-se, porém, que, de acordo com autores como Cagliari (1998), p. ex., a interpretação da forma

como as crianças transportam para estas primeiras produções escritas as suas intuições fonológicas pode suscitar divergências entre os autores que se debruçam sobre tais produções. Uma das causas para tais divergências deve-se, segundo o trabalho citado, a certas abordagens pretenderem identificar nestas produções escritas categorias fonológicas "teóricas" sem representação evidente, na opinião do autor, no conhecimento interiorizado das crianças (cf., p. ex., Cagliari, 1998:75 e ss.).

11 Saliente-se neste momento que na tipologia das operações metafonológicas explícitas capazes de pôr

em evidência o conhecimento fonológico interiorizado dos sujeitos apresentada por Carts, Wilcox, Wood- Jackson, Larrivee e Scott (1997:48-52) e reproduzida no final deste capítulo, são contemplados precisamente os exemplos de escrita criativa (aí designados por "invented spellingfsj").

2 Para o traçado da tipologia aqui referida - que é também seguida em Girolami-Boulinier e Pinto

(1996) -, a autora baseia-se na tipologia proposta por Girolami-Boulinier (1984).

13 Decorrendo de afirmações anteriormente formuladas, usamos, neste contexto, o termo "erro" sob

sua forma auditiva" (Pinto, 1998:147). Isto é, são aqueles em que a escrita dada à palavra difere da forma prescrita pela ortografia normativa da língua mas que, face ao valor fonético-fonológico detido pelos símbolos gráficos utilizados, remete o leitor para a mesma "pronúncia" da palavra-alvo, como o demonstram os exemplos recolhidos pela autora no referido estudo, extraídos de um grupo de crianças portuguesas que frequentam os 2o, 3o e 4o anos de escolaridade e de que transcrevemos, a título

ilustrativo, os constantes do Quadro 5.1.

Quadro 5.1 - Exemplos de alguns "erros de uso" recolhidos pelo estudo de Pinto (1998:139-193) num grupo de 180 crianças portuguesas dos 2o, 3o e 4o anos de

escolaridade

Forma ortográfica canónica das palavras Formas recolhidas na população infantil estudada sentado conseguia força chover enorme resolveu cheia fumar centado comceguia forsa chuver inorme rezolveu xeia fomar (ap. Pinto, 1998:161)

Pelas características apontadas e pelos exemplos transcritos, podemos comparar estes erros, como dissemos, a transcrições fonéticas/fonémicas efectuadas com recurso aos símbolos da ortografia corrente. Os seus autores, na verdade, demonstram uma capacidade de segmentar e alinhar os diversos fonemas que constituem a linearidade

1986), Pinto (1998:142) ou Kress (2000:1 e ss., 116, 117), nos termos já referidos, inúmeras produções que a tradição pedagógica considera como "erradas" emanam, fundamentalmente, de um uso criativo da ortografia e constituem pistas reveladoras do conhecimento fonológico intuitivo dos sujeitos que as

fónica das palavras e de fazê-los corresponder a símbolos gráficos discretos, embora não se demonstrem ainda capazes - porque os objectivos da escolarização não foram ainda plenamente atingidos ou amadurecidos - de respeitar certas convenções gráficas resultantes de aspectos não directamente representados na estrutura segmentai linear, como os aspectos morfofonológicos abstractos e os etimológicos. Confirma-se assim, em nosso entender, a possibilidade de aceitarmos estas produções como pistas para a identificação das intuições fonológicas dos seus autores e, consequentemente, para a caracterização do seu conhecimento fonológico implícito14.

produzem, devendo, por isso, ser merecedoras de atenção científica por parte dos estudos linguísticos e psicolinguísticos.

Em face dos argumentos expostos, é nosso entendimento que, nestas suas primeiras aproximações à escrita, as crianças na situação descrita se encontram de forma única numa posição análoga à dos criadores originais dos sistemas de escrita e dos fixadores das normas ortográficas - em cuja tarefa de criação da escrita autores como Benveniste (1966:24), Léon, Burstynsky e Schogt (1977:1) ou D. G. Miller (1994:xi, xii-xiii, 26, 36) (como vimos em 4.3) vêem momentos privilegiados e esclarecedores de análise linguística -, uma vez que se aproximam da actividade gráfica quase completamente libertos das imposições externamente convencionadas patentes na ortografia oficial da língua.

Invoque-se aqui, a propósito, o título e o subtítulo do livro de Kress (2000), que explora precisamente esta tensão entre uma escrita intuitiva e reveladora da realidade interna que a possibilita vs. uma escrita que reflecte a aprendizagem sociocultural de convenções externas ao sujeito: Early Spelling.

5.2.3 -As operações metafonológicas explícitas

Na presente secção, tentaremos defender que, tal como acontece em relação as produções escritas não-canónicas mencionadas em 5.2.2, as operações metafonológicas explícitas podem igualmente oferecer-nos um conjunto de pistas de acesso inferencial ao conhecimento fonológico interiorizado pelos sujeitos.

Começaremos, dessa forma, por recordar que, conforme foi visto em 1.1, o conhecimento da língua implícito e interiorizado dos sujeitos se relaciona com a criatividade linguística que, entre outras manifestações externas, permite aos sujeitos emitir juízos de valor (p. ex., de aceitabilidade ou inaceitabilidade) acerca de um número teoricamente infinito de produtos linguísticos. Esta vertente da criatividade linguística distingue-se das vertentes de produção e compreensão na medida em que, por um lado, não se liga propriamente ao carácter da linguagem enquanto mero instrumento ao dispor dos indivíduos para formularem e transmitirem conteúdos informacionais/comunicacionais e, por outro lado, porque exige algum poder de explicitação relativamente a um objecto que, como vimos em 1.1.1.2, corresponde a uma realidade intrinsecamente implícita. É com base nesta mesma distinção que autores como Jakobson (1963:29-31), Hakes (1980:21 e ss., 98), Van Kleeck (1982:238 e ss.), Tunmer e Herriman (1984:16-17), Gombert (1990:12) e Berthoud-Papandropoulou (2000:8) , entre outros, diferenciam um uso primário da língua/linguagem - a língua/linguagem enquanto instrumento de que se servem os indivíduos para veicularem conteúdos semântico-pragmáticos com fins de comunicação e interacção social - de um uso secundário - a língua/linguagem enquanto entidade autorreferencial16 que

15 Vd. citações de alguns destes autores nas págs. 169-170.

Esta autorreferencialidade da língua/linguagem - a capacidade que esta última confere aos sujeitos de se referirem explicitamente às suas propriedades sem necessidade de recorrerem a outros sistemas semióticos (os quais são explicitados, em contrapartida, com base precisamente em enunciados verbais) (cf., p. ex.: Benveniste, 1974:35, 97, 228-229; Rey-Debove, 1978:1; Berthoud-Papandropoulou, 1980:1 e

possibilita aos falantes que reflictam sobre ela própria e que se consciencializem da sua existência autónoma como objecto em si mesma17.

Assim, no âmbito desta possibilidade de os sujeitos se deterem conscientemente sobre as propriedades da sua língua e de, com recurso às estruturas da própria língua, explicitarem o seu conhecimento (intrinsecamente implícito) acerca dela, Jakobson (1963:219 e ss.), na sua clássica inventariação das funções da linguagem, opõe uma função puramente referencial - que traduz a capacidade de a língua se referir a objectos ou entidades da esfera do extralinguístico - à função denominada metalinguística, que

ss.; 2000:7; Gombert, 1990:11 e ss.) - é, segundo estes mesmos autores, uma propriedade privativa da linguagem verbal humana.

Edwards e Kirkpatrick (1999:313) sustentam esta mesma distinção entre uso primário e uso

secundário com base na diferença entre o conteúdo dos produtos linguísticos - posto em evidência pela

função primária da linguagem - e a respectiva^ôr/wa - destacada pela função secundária.

Em certos autores, esta capacidade de um sujeito reflectir deliberada e explicitamente sobre a sua