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Os espaços públicos brasileiros pré-modernos

Capítulo 1 – Eixos de discussão

1.2. Arquitetura paisagística

1.2.3. Os espaços públicos brasileiros pré-modernos

A cidade colonial brasileira foi a primeira expressão urbana em nosso território. A forma da cidade era definida por padrões estabelecidos pela coroa portugue- sa, que iam desde a escolha dos sítios, até os elementos morfológicos, como praças, ruas e lotes. O núcleo urbano se caracterizava por ruas estreitas e pelo casario contínuo alinhado à testada dos lotes. Os espaços públicos eram des- guarnecidos de pavimentação, mobiliário urbano e qualquer tipo de vegetação (Fig. 9). Neste núcleo, a praça tinha um papel de destaque e reunia todas as funções e usos sociais: atividades de cunho religioso, profano, civil e militar.

A praça – até esse momento chamada de largo, terreiro e rossio – era o espaço de interação de todos os elementos da sociedade, abarcan- do os vários estratos sociais. Era ali que a população da cidade colo- nial manifestava sua territorialidade, os fiéis demonstravam sua fé, os poderosos, seu poder, e os pobres, sua pobreza. Era um espaço poli- valente, palco de muitas manifestações dos costumes e hábitos da população, lugar de articulação dos diversos estratos da sociedade colonial. (MACEDO; ROBBA, 2003, p. 22).

Outra coisa eram os espaços ajardinados. Na cidade colonial eles eram raros e tinham caráter estritamente privado. Restringiam-se aos quintais das proprie- dades civis e religiosas e cumpriam função utilitária, onde se plantavam frutífe- ras, hortaliças e plantas medicinais (Fig. 10). Dessa forma, os espaços públicos e privados não recebiam um tratamento paisagístico propriamente dito, e não se pode falar em arquitetura paisagística colonial.

Fig. 9 Paço Imperial. Autoria Johann Moritz

Fonte: Tuca Vieira. Folhapress

Fig. 10 Jardim colonial brasileiro em Morro Velho (1872). Espaço privado.

Autoria Marianne North

Fonte: Jardinshistoricosbrasileiros.blogspot

Foi com o advento do Passeio Público do Rio de Janeiro (1783) que o Brasil teve pela primeira vez, um espaço projetado para o uso público (MACEDO, 2015). A partir dele, as concepções de espaço público e tratamento paisagísti- co puderam-se reunir no contexto brasileiro.

Os Passeios Públicos surgiram concomitantemente na Europa e na América católica. Eram concebidos para a contemplação, passeio e fruição de prazeres ao ar livre, porém voltados para uma parcela bem restrita da população (Fig. 11 e Fig. 12). Segundo Barcellos (1999), da mesma forma que a nobreza euro- peia se exibia nos jardins palacianos, a burguesia passou a fazê-lo nos Pas- seios Públicos. Funcionavam como um salão ao ar livre, um espaço para ver e para ser visto. Por isso, apesar de públicos, possuíam rígidas normas de con- duta e vestimentas.

Fig. 11 Passeio Público RJ (1847). Auto- ria Alfred Martinet

Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira

Fig. 12 Terraço do Passeio Público RJ (1854). Autoria Louis-Julien Jacottet

Fonte: Pinterest.com

No Brasil, o advento teve uma tonalidade própria. Hugo Segawa (1996) afirma que a construção do Passeio Público do Rio de Janeiro foi algo surpreendente. Em uma sociedade escravocrata, ele se diferenciava dos espaços coloniais, por não representar um símbolo da autoridade portuguesa. O campo era mar- cado pelo pelourinho; o paço, pela câmara e cadeia ou quartel; e o largo, pela igreja matriz. Em termos de vida pública, Segawa ressalta que o Passeio Públi- co possibilitou um lazer e convívio laico antes desconhecido pela população. Naquela época, principalmente para as mulheres, sair de casa se limitava a ir à igreja e visitar familiares.

O Passeio Público do Rio de Janeiro ilustra bem, em suas duas versões, os paisagismos formalista e naturalista. O projeto original, de autoria do Mestre Valentim15, tinha um traçado formalista, com forte influência francesa. E o pro-

jeto de restauro do paisagista francês Auguste Glaziou16, após longo período

de decadência e abandono do Passeio, trouxe uma concepção naturalista, com influência inglesa (Fig. 13).

15 Valentim da Fonseca e Silva foi importante escultor, entalhador, arquiteto e urbanista brasi- leiro. Destacou-se como um dos artistas mais originais de sua época, tendo realizado obras em igrejas, e também na arte civil. Foi o principal responsável pelas obras de urbanização da Capi- tal da Colônia.

16 Auguste François Marie Glaziou esteve ligado à maior parte dos projetos paisagísticos acontecidos na Corte do Segundo Império, o que lhe rendeu o apelido de paisagista do Impe- rador. Pode-se dizer que ele institucionalizou a atividade paisagística no país. Foi autor dos projetos da Quinta da Boa Vista (1855), Campo de Santana (1873), Largo de São Francisco (1873), o Largo do Machado (1873) e a Praça XV de Novembro (1877). Em 1893 integrou a Missão Cruls, Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, que demarcaria a área do futuro Distrito Federal, fazendo levantamentos de flora, e tendo sugerido a implantação de um lago para amenizar a secura do lugar (Lago Paranoá).

No projeto do Mestre Valentim, destacava-se a geometria de linhas retas. A planta tinha formato de um hexágono irregular, fechada por muro com grades. Os elementos mais característicos eram o traçado em cruz com estar central, o passeio perimetral, canteiros geométricos de tamanhos variados, simetria, ei- xos, e a presença de elementos pitorescos como chafariz, fontes e bustos. A vegetação arbustiva e forrageira era utilizada como bordadura de canteiros, e a vegetação arbórea era alinhada de forma a sombrear os caminhos. Foram utili- zadas espécies vegetais diversas, sendo muitas delas exóticas.

Na intervenção de Glaziou, as linhas retas foram desprezadas e as alamedas ganharam formas curvas, com grandes gramados. Destacavam-se agora os estares e recantos contemplativos e caminhos e lagos sinuosos. Entre os ele- mentos pitorescos, uma ilha artificial, ponte, estátuas, rocaille17, caramanchão, cascata, além de animais povoando os lagos. Também foram construídos um café, coreto e um chalé para moradia dos funcionários. A vegetação era utiliza- da de forma a imitar o ambiente natural, com árvores exóticas de grande porte, e maior utilização de nativas.

Fig. 13 Passeio Público do Rio de Janeiro.

Esquerda, Projeto do Mestre Valentim (1791). Direita, Projeto de Glaziou (1862) Fonte: http://www.passeiopublico.com

Segundo Mônica Schlee (2006), o uso recreativo do Passeio Público do Rio de Janeiro se intensificou no final do século XIX e as mudanças propostas por Glaziou colaboraram para isso. A instalação de cafés, bares e sessões de ci- nema ao ar livre funcionavam como atrativos e aumentavam a frequência ao local.

A partir da metade do século XIX ocorreram profundas mudanças urbanísticas nas cidades brasileiras e foi crescente o processo de arborização e ajardina- mento nos espaços públicos e privados. Sob influência das grandes interven- ções do Barão Haussmann em Paris18, as mudanças traziam a ideia de trans-

formação da cidade colonial em republicana. De acordo com Barcellos (1999), a remodelação tinha como objetivo real a expulsão da população mais carente do centro das cidades e, ironicamente, a introdução de um sistema de jardins públicos para desfrute da população privilegiada (Fig. 14).

Fig. 14 Exposição internacional, Rio de Janeiro (1922) Fonte: AGCRJ

O século XX trouxe grandes transformações para a sociedade brasileira. A maior parte da população, antes rural, passou a ser urbana. A medida em que as cidades foram crescendo, foram também perdendo seus terrenos livres, que eram uma importante opção de lazer principalmente para a população mais pobre. Nas cidades antes menores, a natureza estava mais próxima. E até mesmo a rua, onde se costumava brincar, passou a ser dominada pelo auto- móvel. A necessidade de espaços públicos tornou-se evidente, sobretudo nas grandes cidades.

A configuração atual de grande parte das cidades brasileiras é resultado des- sas transformações. As exceções são as cidades planejadas do séc. XIX e XX, com parâmetros urbanísticos que já incluíam ruas arborizadas, parques e áreas

18Georges-Eugène Haussmann foi prefeito de Paris e responsável por grandes obras de re-

verdes em sua concepção, tais como Belo Horizonte (1897), Goiânia (1933), e a maior referência para o urbanismo moderno – Brasília (1960).