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2 OS CONTRASTES DA BAHIA (IN) CIVILIZADA: AVANÇOS E

2.1 O OUTRO LADO DA MODERNIDADE: O ESPAÇO PÚBLICO E O

2.1.1 Os espaços residenciais e os hábitos vigiados

Acompanhando as tendências insalubres tão presentes no espaço público, o espaço privativo das habitoções também mereceu atenção por parte da ordem médica. Joaquim Tanajura, em sua tese Letalidade infantil e suas causas já advertia para a realidade precária que caracterizava as residências populares. Identificadas como:

[...] sombrias, imundas, a trescalar odores nauseantes, húmidas, encurraladas, de altura insuficiente, desprovidas de meios que facilitem a renovação do ar [...] compostas apenas de dois aposentos, que se multiplicam para as necessidades domesticas, notando-se a cozinha improvisada na própria sala escolhida para os demais misteres do lar,já amontoada de quanto utensilio há capaz de conservar milhares de micróbios. (TANAJURA, 1900, p. 77)

Gama (1904), ao comentar sobre as habitações da cidade destacou a carência de infraestrutura e o excesso de contingente humano “[...] estas casas,

pequenas, miseráveis, colocadas sobre o chão mal batido são alugadas, e n‟ellas mora uma multidão de indivíduos de todas as castas e condições, sexo e idades”. Na mesma direção, o outro doutorando enfatizou a rapidez com que construções são edificadas sem que fossem respeitadas algumas regras básicas de salubridade:

[...] os oficias construtores, na sua mór parte ignorantes, e também os proprietários por ignorância, ou por interesse, não procuram nas construções das habitações [...] uma tranquilidade sanitária; o que querem, é vê-las levantadas o mais cedo possível, afim de auferirem os exhorbitantes lucros nos alugueis de sua fabrica de tuberculose. (SILVA, 1908, p. 15)

Os interesses econômicos dos proprietários que alugavam imóveis populares, por toda a cidade, não seriam comprometidos pelos valores higiênicos que requisitavam um conjunto de exigências que encareceriam seus investimentos, a exemplo da queixa, da necessidade de espaços maiores, para viabilizar uma maior circulação de ar.

Na mesma direção Jatobá (1907, p. 77), ao analisar a carência de higiene nas habitações de Salvador, identificou três causas essenciais: a topografia acidentada da cidade, o atraso intelectual de seus “primitivos” habitantes e o descaso do Poder Público que não se preocupava em construir habitações higiênicas. Em paralelo ao desafio de conscientização da população indouta, o Poder Público deveria se conscientizar de suas atribuições.

Luiz de Oliveira Almeida (1908) em sua tese intitulada A higiene dos pobres também analisou a residência dos desafortunados da cidade. Em suas reflexões, o espaço da moradia foi descrito pelo doutorando como restrito e pouco ventilado,

A habitação do pobre! Que há de mais penoso? Que há de mais triste [...] Quem as poderá descrever? Quem as poderá livremente explorar sem que não se deixe afogar no mar caudaloso da confusão [...] nele não encontramos salubridade e bem sabemos que influencia enorme ella exerce sobre o estado sanitário de um povo.13 (ALMEIDA, 1908, p. 12)

A pouca ventilação e a pouca iluminação, a umidade excessiva, escadas sem larguras, corredores estreitos, latrinas pouco higiênicas e o uso irracional do solo

13 Almeida (1908) além de analisar as habitações, descreve também o modo de vida dos

desafortunados e a precariedade da sua higiene no que concerne a Alimentação e ao Vestuário. No que concerne a alimentação Almeida (1908, p. 23) constata que: “[...] presenciamos o modo porque se sustentam e atônitos ficamos entre o organismo de ferro que possuem : tanta miséria, tanta falta de hyigiene no que deviam ser mais puro – seo alimento”. Mais adiante acrescenta: “[...] ainda não lhe ensinaram a conhecer o perigo que podiam oferecer”. (ALMEIDA, 1908, p. 24)

compõe o cenário urbano das construções privadas da cidade no inicio do século XX. O processo de higienização do espaço privado também foi comprometido pela escassez e pelo preço da agua:

Mais uma prova patente e cabal de que na Bahia não existe hygiene, é o preço de um dos seus principais elementos a agua – pois, a população, para obtel-a canalizada, tem de pagar 12$000 mensaes, e a porção é tão parca, que não podem seguir os preceitos hygienicos, para tornar suas habitações salubres [...]. (SILVA, 1908, p. 23)

O custo elevado para abastecimento de água era tão alto que para a população carente, o lavar as habitações periodicamente ainda não tinha se tornado um hábito e o asseio corporal também se apresentava comprometido (SILVA, 1908, p. 26). Almeida (1908, p. 40), referindo-se ao vestuário da população pobre advertia o quadro de carência e miséria: “[...] vestes estragadas e mal asseiadas [...] pode facilitar o aparecimento de alguma moléstia contagiosa[...]”. Sendo assim “[...] a sarna surge de modo rápido, grossa em toda a sua plenitude no corpo sem asseio das creançinhas pobres, podendo permanecer por lá por muito tempo”.

Na tentativa de fiscalizar o uso irracional do solo nos espaços urbanos e de minimizar a proliferação de doenças ainda não controladas devidamente, foi criado o Serviço de Comissario dos Serviços Sanitários, Octavio Torres da Silva (1908) não esclarece a data especifica em que esse serviço teve início, mas nos alerta para seu funcionamento. O serviço era desempenhado exclusivamente por médicos e consistia em inspecionar e visitar os domicílios da cidade, caso fosse identificada alguma habitação fora dos padrões exigidos pelo Regulamento de Hygiene da Cidade, a casa seria interditada. Em paralelo as determinações oficiais, a rotina das visitas obedecia a outros critérios:

[...] as visitas são feitas com uma simples formalidade. O medico Inspector chega à porta, e pergunta ao inquilino: a latrina esta limpa, tem escadas à subir? Dada a reposta, retira-se o funcionário, e no seu gabinete formula os seus relatórios para o governo. (SILVA, 1908, p. 25)

Sendo assim, o impasse não apenas se perpetua como se prolifera, a população não consegue enxergar nos fiscais da saúde pública obstáculo para a continuidade de seus hábitos comprometedores à ordem social. O governo, por sua vez, não empreende uma reforma urbana capaz de impactar o espaço público e o espaço privativo das habitações. Poder público e população rivalizam-se na teia

urbana (des) ordenada que se vai construindo no limiar do século XX. Os problemas de abastecimento de água apresentavam ainda outro mal-estar no espaço doméstico: a propagação de moléstias.

O pobre não tem água, senão pouca para beber, anda de vestes imundas, mora em casa que não se lava, não tem agua para a lavagem conveniente dos pratos e mais pertences congêneres: e desde que não existe o asseio, não pode deixar de existir a tuberculose. (GAMA, 1904, p. 68)

Gama (1904), ainda associa a precariedade das residências como sendo um dos fatores que colaboravam para a proliferação do Bacilo de Kock. Caso o enfermo viesse a morrer dentro do domicilio, uma ação sanitária seria necessária, no sentido de realizar uma profilaxia do espaço residencial. Uma vez notificado o óbito por tuberculose, o serviço de desinfecção entraria em cena no momento em que o cadáver fosse removido. A partir dai, esses funcionários, mesmo com equipamentos precários realizavam a pulverização do ambiente com produtos como formol. Esse procedimento, contudo, estaria sendendo lugar para a prática da simples intimação do proprietário para que este realizasse o asseio do espaço em que faleceu o tuberculoso, porém não existia fiscalização para se verificar se realmente a limpeza apropriada do domicilio ocorreu. (GAMA, 1904)

Descrever o interior e exterior das residências significa adentrar o espaço de intimidades privativas do contexto familiar. Esses espaços deveriam ser observados, avaliados e reestruturados pois comprometeriam o progresso da cidade. A população pobre da cidade que ocupava essas áreas insalubres ora é descrita nas fontes analisadas como vitimas da desgraça acometida pela sua própria condição sócio-econômica, e por sua ignorância eminente, ora aparece como reponsavel pelas suas mazelas em função de não alterarem seus antigos hábitos bárbaros e insalubres.

As ações de higiene normatizadoras são evidentes em várias teses médicas produzidas no início do século XX, produções que elegem a cidade ou seu entorno como objeto de estudo. Contrapondo-se a realidade social marcada pela precariedade, as recomendações médico-sanitaristas para os domicílios pousavam no tamanho apropriado, no número adequado de compartimentos em seu interior, de modo a assegurar que as atividades domésticas fossem realizadas obedecendo alguns princípios fundamentais de higiene. Além disso, seria necessário que os

espaços domésticos fossem ainda sem umidade, bem ventilados e com boa claridade.

Além dos espaços públicos e dos espaços privados, várias instituições públicas e privadas também foram alvo de estudos médicos O que dizer então das instituições? Mais precisamente as escolas, os quartéis, as igrejas? Talvez esses espaços pudessem refletir alguns sinais de higiene e os indivíduos alí pudessem ser considerados mais civilizáveis.

2.2 A PROFILAXIA DAS INSTITUIÇÕES

A ingerência médica sob o espaço urbano da capital da Bahia, na transição do século XIX, para o século XX, não ficaria restrita as ruas, praças, centro da cidade e habitações populares. Imbuidos da missão de conduzir a sociedade a caminho do progresso e da civilização, a sua área de abrangência seria mais ambiciosa. Conforme afirma Machado (1978, p. 279):

A medicina social descobre que esses espaços institucionais têm as mesmas características que a cidade onde se situam. E daí a contradição que a reflexão e a pratica médica têm a resolver: as instituições, embora necessárias, são focos de doença e desordem e, como tal, representam um perigo para o todo urbano. A dificuldade é precisamente o fato de não poderem ser abolidas. Mas se destruí-las é impensável, a permanência de suas consequências negativas é um perigo de destruição que torna indispensável o esforço de critica e transformação empreendida pela medicina.

Compreendidas enquanto partes integrantes do espaço urbano, caótico e desagregador, que estaria em processo de enquadramento pela ordem medica, as instituições, deveriam também passar por um processo de reformulação, à luz dos preceitos estabelecidos pela racionalidade cientifica. Nesse sentido, muitas instituições despertam o interesse médico e através dele tem esquadrinhada a sua estrutura física, métodos, organização espacial e ideologia. A tentativa de medicalização, desses espaços específicos, completaria o raio de influência da medicina em todo o perímetro urbano em que a cidade aparece circunscrita. Para fins de nossos estudos, serão analisados particularmente os estabelecimentos educativos, prisionais e religiosos. A presença dos médicos nessas instituições estaria respaldada na defesa da higiene e das ações profiláticas para garanti-la.

As recomendações de preservação do ambiente estariam destinadas, essencialmente, a preservação dos espaços nos seus aspectos higiênicos e morais. Nas instituições onde se aglomeravam multidões, pairavam os maiores perigos ao meio social em função do ajuntamento de pessoas e das condições insalubres a que estavam expostas. Apresentaremos, a seguir, as principais instituições alvo das intervenções médico-higienistas e os seus contextos que justificariam a interferência profilática.