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2 OS CONTRASTES DA BAHIA (IN) CIVILIZADA: AVANÇOS E

2.1 O OUTRO LADO DA MODERNIDADE: O ESPAÇO PÚBLICO E O

2.2.3 Os espaços sagrados

A preocupação com a higienização por meio de ações profiláticas se fez presente também nos espaços ditos “sagrados”. Apesar da laicização do Estado trazida pela Republica, verifica-se que a Igreja Católica permaneceu exercendo grande influência na população soteropolitana. A liturgia católica, tradicionalmente reproduzida durante séculos, não escapou do crivo médico. Afirmava-se:

Há certas praticas multisseculares no catholicismo que a hygiene moderna com razão tem impugnado e condemna, e que não fazendo parte essencial do culto, podiam muito bem [...] ser modificadas ou mesmo abolidas sem

quebra dos dictames da Igreja, nem do fervor religioso dos devotos. Uma delas é, por exemplo, beijar medalhas de metal apresentadas indistinctamente a toda a gente [...] beijar pés de imagens nas igrejas, registos de santos, etc. (AGUA..., 1898, p. 35)

Contrapondo-se a uma devoção religiosa que ignorava os princípios básicos de higiene, a ordem médica iria esclarecer o quanto determinados costumes colocariam em risco a salubridade da população, principalmente os mais “fervorosos na fé”, em razão da sua exposição maior a transmissão de moléstias contagiosas, presentes no contato direto e frequente com “objetos sagrados”, que não desfrutavam de asseio constante. Além de tais esclarecimentos, a denúncia de omissão, por parte da própria Igreja e das autoridades sanitárias justificaria uma intervenção da higiene no sentido de “[...] atenuar ou prevenir o que taes praticas, deixadas ao arbítrio inconsciente do povo ignorante e supersticioso, possam ter de nocivas á saúde publica e individual”. (AGUA..., 1898, p. 37). Foi recomendado que, as águas bentas, passassem a ter um uso mais racional e individualizado, para evitar também a proliferação de moléstias presentes nas pias batismais, pouco higiênicas onde eram tradicionalmente depositadas.18

Além da recomendação de um contato atento com objetos e símbolos, que na Igreja estavam expostos, os higienistas observaram também o velório e seus bastidores. Após vestir o morto, uma ornamentação específica composta por panos pretos, papéis pintados, faixas de tecido de saco e outros elementos eram colocados no ambiente onde se encontrava o defunto. Na opinião dos médicos, os tecidos acabavam comprometendo a circulação do ar e contribuiam para potencializar o aumento da temperatura no espaço que começava a receber amigos e parentes para a despedida fúnebre. Nesse recinto quente, abafado e úmido, acumulava-se poeira, suor e moscas. Após velado o morto e, ao ser levado para o sepultamento, os objetos fúnebres de decoração eram retirados da casa, guardados e reutilizados posteriormente, sem que, o asseio correto, ocorresse. Em razão dessa precariedade afirmava-se: “[...] não apparecerá finalmente um senso que reaja contra esse lucto ridículo de convenção, uma sciencia que profligue esses sujos panos [...] uma lei que sem impedir a lastima a um morto vele pela saúde dos vivos que o deploram? Fóra, pois esses sujos pretos das armações”. (PEIXOTO, 1901, p. 241)

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O habito religioso e pouco higiênico de se beijar imagens e o uso irracional da agua benta dentro da igreja foi recorrentemente. Ver também: Peixoto (1902, p. 328)

As condições de higiene dos fiéis que adentram os espaços religiosos também foram alvo de inquietação higienista. Em 1902, o médico Afrânio Peixoto publicou o seu artigo Fragmentos de hygiene: as egrejas, retratando que os templos católicos abrigariam constantemente um volume significativo de fiés que buscavam conforto espiritual para suas mazelas. Para o autor, esses santuários acabavam sendo locais de ativa de proliferação de moléstia pois “[...] indivíduos de todas as condições sociaes conduzem nas suas vestes [...] afastadas da decência hygienica desejável e no próprio corpo, minado por diversíssimas enfermidades, os germes de quantos temíveis flagelos contagiosos há por ahi”. (PEIXOTO, 1902, p. 326) A proliferação de germes e bactérias era possível dada aglomeração dentro dos espaços de culto religioso. Na descrição do médico, era comum os escarros ficarem expostos no chão e nos cantos sendo transportados para outras partes da igreja através das roupas femininas, sempre compridas que funcionavam como verdadeiras “vassouras” ou “espanejadores de poeiras”, conforme identificadas pelo médico.

Como forma de atenuar a insalubridade nos espaços católicos da capital e, acompanhando alguns exemplos de Igrejas, em outros países, que chegaram até a implantar um regulamento sanitário, Peixoto (1902), preconiza algumas medidas profiláticas: abrir portas, janelas e vidraças dos templos, colocar raspadeiras metálicas nas entradas para remover as sujeiras da sola dos calçados, após reuniões passar soluções antisepticas no chão, afixar cartazes com a inscrição: “Respeitai a casa do Senhor, não escarreis no chão”. E, ainda, lavar bancos, cadeiras e confessionários dentre outras medidas. (PEIXOTO, 1902, p. 331)

Apesar das recomendações de Afranio Peixoto, os problemas com os espaços físico das igrejas permaneceram nos anos subsequentes como alvo de preocupação higienista. Em 1905, Othon Chateau para escrever a sua tese A

hygiene nas igrejas realizou uma pesquisa minuciosa no interior dos templos

católicos:

[...] comecemos pela entrada de um templo [...] nos deparamos com umas cortinas, que servem para embaraçar a entrada do ar puro [...] passando das taes cortinas, encontramo-nos á pouca distancia das portas, umas bacias de pedra, á que dão o nome de pias de agua benta, viveiro enorme de germes de todas as castas. [...] nessas pias, os tuberculosos, os morféticos, os syphiliticos etc., colocam seus dedos, d´ellas retirando e nelas depositando outros tantos germens propagadores de molestias (CHERTEAU, 1905, p. 23)

Apesar de todas as recomendações profiláticas de banimento do costume de beijar imagens nos templos, esse problema apareceu recorrente. Para os higienistas, os fiéis precisariam se conscientizar de que seus costumes religiosos poderiam colocar em risco a saúde coletiva e, por isso, deveriam ser abandonados:

[...] na saliva, que cae dos lábios, que beijam os pés de uma imagem, vão milhares de sementes [...] germens microscópicos, que lá ficam á sombra dos nichos, esperando outros lábios para leval-os [...] Quantos indivíduos não deixam nas imagens, que tocam com os lábios, em signal de adoração temíveis micróbios, convencidos, entretanto, de que estão praticando uma acção inocente. (CHERTEAU, 1906, p. 338-339)

Na mesma direção Octavio Torres da Silva (1908) descreve também em sua tese, os descompassos da higiene dentro do ambiente reservado as práticas confessionais. Também para o médico, a ausência de higiene se fazia sentir em todas as partes das Igrejas, inclusive no confessionário, local tradicionalmente reservado ao perdão das culpas e ao desencargo de consciência, mas também propagador de moléstias pelo fato de várias pessoas o utilizarem sem que a limpeza devida ocorresse, entre as confissões. Salivas, escarnos e suores se confundiam.19 Portanto, nem os espaços sagrados escapavam a lista de críticas da comunidade médica que queria imprimir valores e hábitos em um novo modelo de sociedade em fase de construção.

2.3 AS MOLÉSTIAS DA CAPITAL: OS OUTROS CONTRASTES DA