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CAPÍTULO 2 A COMPOSIÇÃO DE UM SISTEMA DE EDUCAÇÃO FÍSICA

2.2 Sobre o físico, a cultura física e a educação física: os saberes e as práticas da

2.2.2 Sobre ginástica: entre calistenia e esportes

2.2.2.2 Os esportes

Regulamentação de concursos e jogos atléticos, invenção de práticas esportivas, organização e realização de campeonatos internos, participação em torneios instituídos por ligas esportivas, aulas para os associados, publicações que versavam sobre os jogos coletivos. Esse conjunto de ações marcou a presença dos esportes na Associação Cristã de Moços, que, em um auto-entendimento, seria a responsável pela introdução de modalidades como “o basket ball e

170 Mocidade, maio de 1922, n. 339, p. 7-8.

o volley ball no Brasil”171, bem como, ocuparia um lugar de destaque no desenvolvimento dos esportes no país. “Devemos em parte á iniciativa da Associação Christã de Moços o gosto pelos sports, que cada vez mais recrudesce no Rio e quasi que no Brasil inteiro”172.

A adoção das práticas esportivas pela ACM é marcada fortemente pelo aspecto de formação do caráter e pelo sentimento de coletividade. “(...) é ahi, nos torneios e campeonatos, jogos e partidas, que melhormente se distingue o trapaceiro do honesto, o leal do desleal; e esta differenciação, por si só bastaria para elevar os jogos a alta categoria de escola de moral, como indutavelmente é”173. Futebol e beisebol, por exemplo, “exigem grande força, resistencia aos revézes, cooperação, e subordinação a um chefe para o exito do grupo”174.

Indícios da visibilidade dos esportes são também as iniciativas que pretendiam criar espaços específicos para sua prática. Se, no início de suas ações no Rio, a ACM criou instalações destinadas a exercícios ginásticos, com o passar do tempo, lugares para as práticas esportivas também foram produzidos. “O departamento de educação physica prosegue na installação do campo de athetismo (sic) na esplanada do Castello, comprehendendo dois campos de volley, um de basket e outro de base-ball, além do local para a pratica do athletismo”175.

Inicialmente, os termos jogos, esportes, jogos atléticos, atletismo se confundem e não parecem ser usados com tanta distinção para tratar práticas diferenciadas. A partir de um movimento de afirmação, o uso da palavra esporte parece ganhar contornos mais específicos para designar práticas que necessitavam de espaços característicos para sua realização, com uma materialidade particular, presentes em campeonatos organizados por entidades que promoviam as competições e regidas por regras comuns às ACM’s da América do Sul. Assim, os sentidos do termo esporte parecem ficar mais circunscritos.

Nesse processo de regulamentação, a Associação participou efetivamente da produção de normas para a prática esportiva. “Los juegos de competencia entre los cuadros, exigen, para evitar cuestiones y divergencias, la sujéccion extricta y acatamiento completo a reglas precisas y claras” justificava quando publicou, em 1921, Reglamentos de juegos atléticos adotados como oficiais pelas Associações Cristãs de Moços Sul-Americanas. Na publicação, há vestígios de que a normatização para os esportes já vinha acontecendo, pelo menos, desde a década anterior. Quando da realização da primeira conferência continental de diretores de Educação Física das

171 Mocidade, setembro de 1922, n. 343, p. 14 (grifos do autor). 172 Mocidade, outubro de 1922, n. 344, p. 7 (grifos do autor). 173 Mocidade, dezembro de 1922, n. 346, p. 15.

174 Mocidade, novembro-dezembro de 1921, n. 333-334, p. 21. 175 Mocidade, janeiro de 1924, n. 359, p. 14.

Associações Cristãs de Moços da América do Sul, em 1914, foi decidido por representantes de diferentes países, dentre eles Sims, “emplear en todas las Asociaciones Cristianas de Jóvenes Sudamericanas, idénticos reglamentos para los distintos juegos que se practican en la Asociación”. Complementando as regras da multiplicidade de jogos presentes no documento, “traducciones de algunos reglamentos publicados en Spalding’s Athletic Library”176. O nome da obra é uma referência a Albert Goodwill Spalding que inaugurou no ano de 1876, em Chicago, um negócio de artigos esportivos que levava seu sobrenome. Como parte das ações, o conjunto de publicações que promovia a divulgação de esportes e atividades físicas177. Na instituição de normas para a prática esportiva na América do Sul, a Associação recorria a códigos esportivos estadunidenses que subsidiavam referências para o treinamento físico, para o estabelecimento de regras para os jogos e para a criação de equipamentos específicos, a partir do mercado acerca dos esportes que lá se constituía.

Não era suficiente instituir regras, também se mostrava necessário um mecanismo para que fossem cumpridas, por isso, a figura do juiz. “Los oficiales serán considerados como árbitros imparciales y competentes. Las decisiones serán acatadas sin disputas”178. Para os modos de conduta, também uma fundamentação. “Recomendamos entonces, sea considerado anti-deportivo, indigno, deshonroso para un aficionado, el no demostrar un concepto superior del honor, honestidad, buen juego, cortesía, templanza, tanto hacia sus compañeros, como hacia sus adversarios y público”179. Sentidos que passam a se aproximar de acepções que vão afirmar o fenômeno esportivo no decorrer do século XX; contudo, diferentes termos e expressões como jogo, atletismo e jogo atlético ainda permaneciam sendo usadas pela ACM. No processo histórico de constituição do esporte como prática moderna, a Associação ordenou sobre maneiras de jogar; especificações de quadras e aparelhamentos para a prática esportiva; modos de conduta; diferentes funções dos sujeitos presentes nas competições: do jogador, do juiz, do cronometrista.

Os esportes foram objeto de interlocução com outras instituições, como o Comitê Olímpico Internacional. Os diretores de Educação Física da Associação eram correspondentes e consultores do Comitê no Extremo Oriente e na América Latina. Em relatório, publicado em 1924 pela Mocidade, sobre o que vinha se desempenhando na Ásia e na América, um membro do Comitê Internacional destacava a autoridade da ACM. “Sua grande experiencia na

176 YMCA. Reglamentos Oficiales de juegos atléticos. New York: American Sports Publishing Co. 1921, p. 3. 177 Disponível em <http://xroads.virginia.edu/~hyper/incorp/baseball/spalding.html> e <http://www.spalding-

basketball.com/en/about-spalding/history/>. Acesso em 17.10.16.

178 YMCA. Reglamentos Oficiales de juegos atléticos. New York: American Sports Publishing Co. 1921, p. 21. 179 YMCA. Reglamentos Oficiales de juegos atléticos. New York: American Sports Publishing Co. 1921, p. 23.

organização de encontros internacionaes, seu conhecimento das regras, sua competência na educação physica dão ás opiniões formadas por conselhos technicos, peso e valor”. Ainda na publicação, um sinal sutil de que a interlocução estabelecida poderia ser, para alguns, uma audácia da ACM. E para os avessos, a Associação estampava nas páginas do seu periódico as palavras elogiosas do Comitê, com um recado: “Eis, sem floreios de linguagem e sem o elogio superficial palavroso como a mais alta auctoridade do athletismo faz o panegeryco da Associação, frizando a modestia, o espirito serviçal e nunca intromettido da ACM” 180.

Nas formulações da Associação para as práticas esportivas, um posicionamento que possivelmente conflitava com outras organizações que também tinham nos esportes um conjunto de interesses: o combate ao profissionalismo e às apostas. A arma para o combate? A formação do caráter. Como podemos ver no trecho abaixo:

O profissionalismo tem sido a praga, dos nossos grandes desportos sociaes. Deve, pois, ser principal artigo do creado da ACM. combatel-o tenazmente. Alonga-se contra o profissionalismo disfarçado, uma de cujas principaes modalidades é a da collocação no commercio e na industria. (...)

Passando a tratar da segunda praga, que corrompe os desportos no Brasil, confessa ser impossivel evitar as apostas. Mas os altos ideaes do verdadeiro desporto precisam organizar-se de tal modo que eliminem estas fórmas viciosas181.

Para a ACM, jogar por dinheiro ou ter qualquer tipo de ganho em função da prática esportiva eram comportamentos considerados nocivos para os sujeitos. Abordando o processo de profissionalização de jogadores, no Rio de Janeiro, na transição da década de 1910 para a de 1920, Leonardo Pereira (2000) comenta que “o grande incremento do público, transformando o futebol em assunto sério, gerava para os clubes e ligas uma fonte de receita da qual a maior parte não poderia prescindir” (p. 309). A transformação do esporte em um negócio rentável ajudou a promover uma mudança na representação sobre tal prática no Brasil: de elemento que promoveria o bem do corpo à atração financeira. O autor comenta o início desse processo, quando da ocorrência do “‘profissionalismo oculto’, que mantinha sob a aparência dos princípios amadores equipes constituídas em grande parte por jogadores remunerados” (op. Cit., p. 310, grifos do autor). Era o deslocamento dos princípios formativos do esporte para os utilitaristas.

A “praga” das apostas fazia-se presente na cidade capital não apenas vinculada aos esportes. Expressão de tal prática era o jogo do bicho. Herschmann e Lerner (1993), recortando

180 Mocidade, fevereiro de 1924, n. 360, p. 10. 181 Mocidade, abril de 1924, n. 362, p. 10.

como temporalidade as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, enfatizam que “a loteria dos bichos, segundo os cronistas da época, mobilizava todos os grupos sociais, pois todos podiam apostar, bastando para isso ter um tostão, ao contrário das loterias federais que eram caras, o que reforçava seu caráter democrático e popular” (p. 71). Os autores afirmam que o incentivo às apostas era percebido pelas inúmeras casas lotéricas “por exemplo, Casa Mascotte, Loterias Nacionaes do Brazil, Loteria da Candelária e Loteria Esperança” (op. cit., p. 77). A Associação Cristã de Moços fazia a denúncia e lamentava: “Jogam os paes, jogam as mães, jogam as moças, jogam os filhos pequenos e os grandes: todos esperam anciosos os jornaes para ver que bicho deu, como dizem. Horror! Onde irá parar uma sociedade que despreza a pureza do caracter?!”182.

No tocante às práticas esportivas, Melo (2001) discute a popularização das apostas na cidade do Rio de Janeiro e aponta que, para atender às camadas populares, “os clubes passaram até mesmo a criar modalidades de apostas mais baratas” (p. 167). O autor expõe dispositivos de negócios que foram produzidos interessados na captação de dinheiro a partir daquela prática moralmente discutível: o aparecimento de casas especializadas; a reivindicação por parte de clubes para a exclusiva exploração das apostas; o surgimento de publicações caracterizadas por oferecer dicas para os apostadores. “Por um lado, atestava-se uma vitória do ‘espírito do capitalismo’; por outro, este mesmo espírito vinha desacompanhado de uma ética protestante, vinculada ao trabalho” (HERSCHMANN; LERNER, 1993, p. 77, grifos dos autores). Representadas como via para enriquecimento fácil, porque seriam possibilidades de escapar das difíceis condições sociais a que os populares eram submetidos, as apostas contrariavam, especialmente, os princípios da moralidade e do trabalho, tão caros à ACM. Em comemoração ao dia 1º de maio, a Associação exaltava a nobreza do trabalho e criticava aqueles que “estão sempre á espera de succeder alguma cousa que os ponha ao abrigo de trabalhar: estão sempre aguardando a chegada da sorte grande”. Orientada pelas palavras de Deus “<<Seis dias

trabalharás>>”, posicionava-se a ACM: “indigna é a ociosidade, a indigencia, a preguiça. O

trabalho nobilita o caracter, porque dá ao moço a satisfação de que elle vale alguma cousa, e que presta serviço á causa da humanidade”183.

A Associação não considerava o esporte positivado em si mesmo, mas um dispositivo potencial para a formação dos sujeitos. “O esporte livra os rapazes de muitos vicios, dando-lhes

182 A.C.M., 1 de março de 1901, p. 2 (grifos do autor). 183 A.C.M., 1 de maio de 1901, p. 1-2.

outras preoccupações. Quer dizer que o esporte póde ser um factor de grande importancia na formação do caracter, como tambem um grande perigo”184.

Demarcadas as possibilidades educativas dos esportes, a ACM posicionou-se também em organizações que visavam formulações para a educação no Brasil, especialmente, nas discussões afeitas à escolarização daquela prática. No âmbito do debate educacional, os esportes foram temática de diálogo com a Associação Brasileira de Educação. Sujeito atuante na interlocução estabelecida, Sims agiu posicionando-se sobre questões afeitas à Seção de Educação Física e Higiene da ABE. Propostas para a formação de professores e técnicos, implantação de praças de jogos e formulações sobre educação esportiva compuseram pautas de debate (LINHALES, 2006).

Se os esportes e a calistenia fizeram-se presentes como conteúdo das aulas de ginástica é porque fundamentos científicos também poderiam justificar sua importância para a formação física dos sujeitos. A cientificidade foi ainda um elemento que compôs a Educação Física empreendida na ACM.