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COMPROVANTE DE DECLARAÇÃO DE INFORMAÇÕES

5 A ATUAÇÃO DO BUROCRATA DE NÍVEL DE RUA NO CADASTRO ÚNICO PARA PROGRAMAS SOCIAIS: O TRATAMENTO DO RURAL A PARTIR DE

5.1 OS FATORES PESSOAIS NA IMPLEMENTAÇÃO DO CADÚNICO

Os fatores pessoais a que nos referimos são crenças, valores, altruísmo, vocação e auto interesse, que podem interferir no poder discricionário dos burocratas de nível de rua. Ao definirmos esse caminho, lidamos com suas grandes categorias que dialogam com os preconceitos e o senso comum. Ao tratarmos os assistentes sociais como burocratas de nível de rua, é fundamental que possamos compreender que o Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993 representa o ethos profissional e o perfil ético almejado pela categoria:

Espera-se que o assistente social seja competente, que exerça uma postura democrática; portanto, que não seja autoritário, preconceituoso e discriminatório, que se capacite continuamente, que seja respeitoso com seus colegas e com a população atendida, que seja responsável pela viabilização de direitos, por articulações políticas, no âmbito institucional e com as entidades profissionais e os movimentos sociais, entre outros. Em resumo: exige-se um profissional crítico, teoricamente qualificado e politicamente articulado a valores progressistas. (BARROCO, 2011, p. 76).

Com o Código de Ética de 1993 é que, pela primeira vez, foi trazida à tona a discussão do preconceito, expressa em dois dos princípios fundamentais, apresentados pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS, 1993, p. 23-24):

VI – O empenho na eliminação de toda a forma de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças; [...]

XI – Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e condição física.

O Serviço Social estabeleceu seu 1º Código de Ética em 1947, passando por reformulações em 1965 e 1975, período da Ditadura Militar que trouxe seus reflexos para o fazer profissional. Somente em 1986 deu-se início ao processo de reconceituação, acompanhando o processo de redemocratização no país, inserindo a participação dos movimentos sociais e de trabalhadores. Em 1993, de fato, conseguiu se apresentar com um projeto profissional que, vinculado a um projeto social radicalmente democrático, redimensionava a inserção do Serviço Social na vida brasileira, compromissando-o com os interesses históricos da população trabalhadora (CFESS, 1993).

Para enfrentar o tema do preconceito e do conjunto de valores e crenças pessoais que precisavam ser debatidos pela categoria profissional, o CFESS, em 2016, lançou uma série de debates, por meio de cadernos orientadores, e, na sua primeira edição, propôs o debate: Assistente social no combate ao preconceito: o que é preconceito?. Nesse sentido, estabeleceu a conexão que trouxemos para o campo da pesquisa, sobre a necessidade de pensar esse fazer profissional e propor algumas reflexões sobre o que foi conquistado pela profissão no campo ético-político e teórico-metodológico. Fazer as aproximações da teoria com a prática profissional nos CRAS Rurais, em especial no Cadastro Único, permitiu-nos vivenciar momentos em que essas questões se evidenciam ou se distanciam.

Ainda nesses termos, o CFESS (2016, p. 05) justifica a necessidade de trazer, em seu primeiro caderno de debates, o tema dos preconceitos, por entender que a realidade atual da sociedade brasileira demonstra a legitimação, por parte da população, de um caldo “[...] de cultura ultraconservadora, expressa em práticas fascistas e irracionalistas.”. Manifesta preocupação com as expressões cotidianas de ódio e violência contra quem pensa e age de forma diferente, revelando “[...] um cenário assustador e regressivo, do ponto de vista político e civilizatório, em que a intolerância e a discriminação marcam presença obrigatória” (CFESS, 2016, p. 07).

Com essa conjuntura de retrocessos, o CFESS alerta sobre a interferência desses conceitos na vida cotidiana, na subjetividade dos sujeitos, em seus valores e sentimentos, reproduzindo ideias, hábitos, modos de comportamento, que motivam a sua inserção em ações e movimentos coletivos que podem ou não reforçar o preconceito. O trabalho profissional, como parte da sua atuação profissional

cotidiana, não sendo imune a essa conjuntura, ainda conta com uma herança conservadora em sua trajetória. Sendo assim, o combate ao preconceito, inerente ao conservadorismo, é atual e necessário para uma profissão que vem ao longo da sua história buscando esse rompimento com uma atuação pautada no conservadorismo, pressupondo algumas exigências aos profissionais:

a) compromisso ético com os valores e princípios da ética profissional;

b) postura crítica necessária à refutação dos julgamentos provisórios e à crítica da ideologia dominante;

c) conhecimento teórico que oriente essa refutação, dando fundamentação ao entendimento das situações particulares em sua relação com a totalidade sócio-histórica, em suas conexões e contradições;

d) conhecimento ético que desvele o significado dos valores, da moral profissional, do preconceito de suas bases de sustentação social e de suas consequências para os/as usuários/as dos serviços sociais;

e) participação coletiva nos debates e iniciativas da categoria que ampliem a consciência ético-política, adensem a compreensão teórica e motivem a práxis social e política;

f) participação em diferentes atividades sociais, políticas, artísticas e culturais, que alimentem motivações capazes de elevar a consciência acima das necessidades singulares, dirigindo-a para exigências humano- genéricas emancipatórias (CFESS, 2016).

Destaca ainda, com relevância, que o preconceito se constitui por meio da permanência de julgamentos de valor provisórios. Embora os julgamentos de valor não se restrinjam à moral – pois também avaliamos politicamente, esteticamente etc. – a avaliação preconceituosa tende a ser moralista, julgando diferentes situações com parâmetros morais (CFESS, 2016).

O preconceito materializa-se na prática profissional de inúmeras formas, que impactam o trabalho do assistente social por meio da negação do direito e da manutenção das desigualdades presentes na sociedade de classe. Pereira (2016, p. 205) traz exemplos da materialização do preconceito, por meio da

[...] não aceitação do nome social de pessoas trans, da não aceitação da orientação sexual homoafetiva, da criminalização e moralização da pobreza e da população negra e apoio à reprodução da cultura machista que invisibiliza as mulheres.

Ao dialogarmos com a realidade do Cadastro Único para Programas Sociais no rural, percebemos uma série de valores e moralidades que perpassam o campo do desconhecimento e do preconceito ou de modo a ampliar a possibilidade de garantir cidadania e respeito aos grupos socialmente discriminados.

Em um dos dias de observação de campo no CRAS Rural A, caía uma chuva torrencial na cidade. Nesse mesmo dia foi marcado grupo, para que as famílias fossem renovar o cadastro. Em virtude do tempo e das condições de transporte na região, entendi que seria muito difícil as famílias comparecerem, porém, a técnica do CRAS afirmou na recepção “É complicado fazer coisas aqui no CRAS, esse povo recebe tudo de mão beijada, se está chovendo não vem, se está frio é porque está frio, se está calor é porque está calor, aí já não vem também.” Ou ainda, em situações que são destaques constantes quando se fala em programas de transferência de renda e Cadastro Único: “Esse povo só tem filho porque o dinheiro do Bolsa Família já garante uma cesta básica, pode anotar isso na tua pesquisa Paola”.

Ainda segundo Pereira (2016), a prática profissional pautada no projeto ético- político do assistente social exige uma consciência crítica capaz de articular as diferenças de escolha e decisões valorativas entre assistentes sociais e usuários no campo da diversidade, do pluralismo, da alteridade e da liberdade, entendida como capacidade de realizar escolhas mais ou menos livres dentro dos limites da sociabilidade capitalista. Nesse sentido, o respeito à diversidade pressupõe a tolerância.

Ocupar os espaços dos CRAS Rurais exige dos assistentes sociais maior atenção na sua atuação, sobretudo no diálogo com o conjunto dos profissionais que ali estão. Ao propor essa reflexão multidisciplinar, é fundamental atuar na consolidação de uma ação que rompa e constranja a prática que promove atos preconceituosos e discriminatórios.

Em situações que ocorrem nos dois CRAS Rurais observados, vimos que os assistentes sociais, bem como a equipe de cadastradores, atuam conforme o

entendimento do conjunto da equipe, podendo gerar ou não, o atendimento das demandas dos usuários nos CRAS Rurais:

a) no CRAS Rural A, ao iniciar o atendimento de uma família indígena, que por falta de um dos documentos é orientada a retornar quando estivesse com tudo completo, o cadastrador afirma: “Os índios são complicados de atender, eles são vadios, promíscuos e vagabundos, não entendem os encaminhamentos e ainda cheiram mal. ” (Observações e anotações registradas no Diário de Campo) Ao ser questionado sobre o comentário e o entendimento dos cadastradores sobre os indígenas, os assistentes sociais confirmam a visão preconceituosa, que muitas vezes dificulta o acesso, e ainda reforçam: “Se o atendimento do Índio é ruim, o do assentamento é muito pior, porque chama de tudo isso, e ainda não merecem ser atendidos porque são do Partido dos Trabalhadores” (Entrevista com Assistente Social do CRAS Rural A);

b) no CRAS Rural B, ao iniciar o atendimento de uma família indígena, o cadastrador exige a documentação e demonstrando estar assustada e constrangida por não entender o que devia ser apresentado, chama o seu companheiro e começam a dialogar em guarani. O cadastrador, com a voz bem alterada, começa a cobrar os documentos e refere que devem estar falando mal dele, por isso não falam em português. Antes mesmo que a família começasse a explicar a situação, um dos assistentes sociais interviu no atendimento e garantiu que fosse finalizando o cadastro, intermediando a explicação sobre a documentação e para que servia o próprio cadastramento. Em reunião de equipe, esse assunto foi pautado, abordando a questões específicas da população indígena, até mesmo a linguagem e a questão de gênero, buscando sensibilizar o conjunto dos profissionais do CRAS.

Marins (2014) relata casos levantados em sua pesquisa, retratando as sensações de humilhação que passam os beneficiários da política de assistência social. Ao trazer o exemplo da autora, verificamos como essas reproduções estigmatizadoras estão no cotidiano dos serviços e dos atendimentos na assistência social:

Um dia, uma menina que mora até por aqui chegou chorando por causa da humilhação. Falou que a menina a tratou tão mal que ela disse que não ia voltar mais lá [...]. Aí eu disse: vai amanhã porque, talvez, é outra que vai te atender... Talvez essa tenha amor no coração. E aí quando ela voltou, eles disseram: ‘Você não precisa receber não, você só tem um filho, tá nova e pode ainda trabalhar’. E aqui, minha filha, tem muita gente que sofre para conseguir o Bolsa, viu? (MARINS, 2014, p. 551).

Duas formas distintas de compreender o papel profissional na intervenção. No primeiro, em que ocorre explicitamente uma situação de preconceito e discriminação, evidencia-se uma atuação profissional que, mesmo reconhecendo a atuação como conflitiva com os parâmetros da ação da política de assistência social, crê que não seja de sua responsabilidade promover a reflexão e até intervir junto à equipe. No segundo caso, o profissional, ao se apropriar dos parâmetros, posiciona- se e envolve-se diretamente no atendimento, exigindo da equipe uma ação conjunta, que gera cuidado e zelo com os usuários.

Portanto, para que se mantenha uma consciência crítica e uma ação pautada no projeto ético-político da profissão, é necessária a apropriação dos instrumentos de atuação, somada a uma formação teórica, valorativa e filosófica sólida, capaz de construir finalidades profissionais orientadas por uma consciência crítica:

No entanto, o atual cenário, marcado pelo crescimento do ensino a distância, pela privatização e mercantilização do ensino superior, pela religiosidade e barbarização das relações sociais, traz avanços do conservadorismo na profissão. Tal fato cria uma dificuldade de se romper com a consciência do senso comum, durante a formação dos agentes profissionais, o que os coloca em um terreno propício à propagação de preconceitos, de violação de direitos e desrespeito à diversidade e à liberdade (PEREIRA, 2016, p. 207).

Ao somarmos, pois, o reconhecimento de uma efetiva precarização do trabalho e formação profissional, sobre a qual dialogamos no capítulo anterior, acrescido a um movimento histórico que nos remete a uma reatualização do conservadorismo e dos conceitos ultrapassados – mas sempre presentes de filantropia, assistencialismo e caridade –, constatamos que precisamos estar ainda mais atentos às práticas profissionais (BARROCO, 2011).

No entanto, o uso do poder discricionário e a relativa autonomia, tão disputada pela profissão, podem trazer diferenças consideráveis na implementação da política pública, na qual podemos verificar ações mais acríticas ao preconceito e

ao senso comum, assim como avanços para a ampliação da liberdade dos indivíduos e o acesso aos direitos sociais.

5.2 INCONSISTÊNCIA DE DADOS OU CRIMINALIZAÇÃO DOS POBRES