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CAPÍTULO 1 – OS INTELECTUAIS E ACADÊMICOS LATINO-AMERICANOS:

1.7 OS INTELECTUAIS LATINO-AMERICANOS: ENTRE DOMINADORES E

A exposição feita anteriormente busca problematizar o cenário em que se localizam e movem os intelectuais latino-americanos no sistema de produção do conhecimento na atualidade.

De forma geral, pode-se dizer que o paradigma em torno do termo "intelectual" transita entre as posições de dominadores e dominados, seja na esfera nacional ou global. Dentro de uma estrutura social mais ampla que inclui os interesses dos atores globais, os intelectuais, para garantir a sua progressão na carreira e suas publicações, se adequam às diretrizes estipuladas pelo regime de mercado existente. Eles, portanto, ocupariam a posição de dominados. Considerando os contextos nacionais, nos quais a perpetuação das diretrizes acadêmicas de produção do conhecimento é hegemônica, os intelectuais, enquanto categoria profissional, responsáveis pela produção de conhecimento que serve de base para a formação de muitos

sujeitos, estariam na posição de dominadores.

Se as posições dentro de uma estrutura social em geral são, em grande parte, determinadas pelo contexto sócio-histórico de um determinado período, sugerimos que, na atualidade, existe um crescente processo de institucionalização dos cargos e funções dos intelectuais. Aliás, a autonomia racional das artes, ciências, técnicas, filosofia, ética e direito foi fortemente influenciada pela forma tomada pela divisão social de classes dentro do sistema capitalista, com a separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Porém, as elites acadêmicas e intelectuais mundiais, guiadas pelos projetos de poder de suas nações e empresas, buscaram o ocultamento da determinação material da racionalidade, tal como se o “espírito” (ideias) pudesse determinar a “materialidade socioeconômica” (as condições de classe), e fosse ele capaz de produzir o “real” e a “marcha da história”. Como diz Chauí (2006, p. 8):

Ocultando a determinação histórica do saber, a divisão social das classes, a exploração econômica e a dominação política, as ideias se tornaram representações abstratas, imagens que a classe dominante possui de si mesma e que se estendem para todas as classes sociais e para todas as épocas.

Como detalhado anteriormente, a dimensão analítica de classe foi, e ainda é, ocultada por diversos mecanismos, pelas redes de atores transnacionais de caráter neoliberal que atuam no âmbito acadêmico latino-americano, marcadamente em campos disciplinares e instituições que mantém relações com movimentos sociais, tal como os Estudos Culturais. Esta é uma estratégia de inclusão de possíveis atores contestatários ao status quo capitalista em sua versão contemporânea, neoliberal, com fim de neutralizá-lo e criar, inclusive, um novo público para consumo dos seus produtos e ideologia.

Os intelectuais que não se posicionam contra essa estrutura, em última instância, terminam sendo cumplices desses manuseios teóricos e distorções de análise da realidade. Aliás, colocando em outros termos, pode-se dizer que eles são vitimas e cumplices da própria construção da imagem do termo “intelectual” e da realidade que o mantém aprisionado. Em outras palavras, ocupam a posição de dominar-dominado. Dentro do processo nomeado "modernização" que experimentamos há mais de cinco séculos, os intelectuais já não têm renda financeira livre, como era comum na elite clássica, dependendo de um salário corrente, muitas vezes obtido no campo universitário ou em instituições burocráticas e educacionais, na administração de bens culturais e, muito ocasionalmente, em pesquisas científicas, ambos submetidos aos “estímulos à produção”. Assim, ao se adequar a esta realidade guiada pelos “estímulos” existentes para a sobrevivência e/ou “sucesso” profissional, o intelectual perpetua

a realidade que o aprisiona. Ao mesmo tempo, por outro lado, a sua imagem segue sendo renovada como a de um líder formador; de um sujeito que leva a razão aonde não havia.

Chauí (2006), que antes foi utilizada nesse trabalho para localizar os sentidos e funções, por assim dizer, dos intelectuais, no mesmo trabalho, mais à frente, descreve as características do significado do termo no Brasil, o que, em grande medida, pode servir de base para a reflexão latino-americana. A autora ressalta a influência da tradição ibérica sobre o campo acadêmico e em sua relação com os demais campos da vida social. No interior deste campo, diz ela, os letrados se distribuíam enquanto formuladores do poder, como teólogos e juristas; no exercício do poder, como membros da vasta burocracia estatal e da hierarquia universitária; e no usufruto dos favores do poder, como bacharéis e poetas de prestígio. Esta tradição tinha como contexto geral a concepção da cultura como ornamento, signo de superioridade e instrumento de ascensão social, reforçando desigualdades e exclusões.

Com a industrialização, os intelectuais contra-hegemônicos começam a ocupar o rótulo da “esquerda” e, sob os efeitos do bolchevismo, colocaram-se como vanguarda esclarecida cujo papel era trazer a consciência de classe às massas proletárias alienadas. Para a autora, essa visão desconsidera a história dos movimentos operários, o anarquismo e o socialismo, as formas de ação e de organização dos trabalhadores brasileiros. Já no período fordista e taylorista, com o surgimento das universidades e das investigações científicas, a implantação da indústria cultural ou da cultura de massa pelos meios de comunicação e pela publicidade, a figura tradicional do letrado recebeu um acréscimo, qual seja, a do especialista, e tornou-se portadora do discurso competente. Este pressupunha que aqueles que possuíssem determinados conhecimentos teriam o direito natural de mandar e comandar os demais em todas as esferas da vida social. Assim, a divisão social das classes passou a ser sobredeterminada pela divisão entre os especialistas competentes que mandam, e os demais, incompetentes, que executam ordens ou aceitam os efeitos das ações dos especialistas.

Foi essa figura do intelectual brasileiro que gerou desconforto em Chauí e em outros intelectuais durante os anos de 1980. Surgiu a indagação sobre a capacidade daqueles em perceber os novos sujeitos sociais e políticos e escutar os seus discursos sem substituí-los pelo discurso competente sobre a sociedade e a política. O silêncio a essa indagação, diz a autora, não deveria ter sido uma opção. Mas a resposta não veio e a figura do letrado-especialista brasileiro simplesmente deslocou-se para os meios de comunicação de massa que, como a figura anterior do intelectual, impedem a instituição da esfera da opinião pública, impondo suas próprias opiniões. Tampouco o silêncio dos intelectuais gerou o fortalecimento da cidadania e da participação. Deu-se a mudança na forma de inserção das artes e do saber no modo de

produção capitalista e o refluxo do pensamento de esquerda ou da ideia revolucionária de emancipação do gênero humano.

Na América Latina existe a ideia de "intelectual", "pesquisador", "estudioso" - termos às vezes usados como sinônimos - associados à ideia de produção exclusivamente ligada à academia. Estes termos, limitados em sua "uni-significação", são reafirmados por discursos que fazem parte da "agenda modernizadora" ditada pelos governos, mídia universitária e diretrizes editoriais, onde se tenta fornecer normas, delimitar e controlar as produções intelectuais em termos de sua produtividade, como já discutido.

Parece claro que este mecanismo gera um círculo vicioso que pretende manter a hegemonia de certa classe de "intelectuais", além de fortalecer uma ideia de pesquisa objetiva. Consequentemente, essa dinâmica, fechada em si mesma, leva à desvalorização de práticas, estudos e produções extra-acadêmicas. No meio acadêmico, leva à desvalorização do uso de outros meios de comunicação além dos escritos acadêmicos, como as linguagens audiovisuais, a oralidade, entre outros. Ambos têm como consequência a dissociação entre práticas intelectuais acadêmicas e as práticas intelectuais de outros atores sociais. Como consequência, as instituições (geralmente governamentais e/ou universitárias) se distanciam da sociedade, da sua dinâmica, dos problemas cotidianos e, obviamente, dos "socialmente excluídos", aos quais deveriam servir.

Sobre esse processo de institucionalização acadêmica, marcado pelo neoliberalismo, Mansilla (2002, p. 437), diz que:

Aunque no existan datos empírico-documentales que permitan enunciados seguros, la observación de muchos fenómenos de este campo parece permitir el siguiente enunciado: el peso creciente de tecnócrata de tendencia neoliberal podría correr paralelamente a recortes presupuestarios que afectan los terrenos de la extensión cultural, las publicaciones y la investigación científica.

Ainda sobre o tema, Mato (2007) alerta para a relação entre as "agendas modernizadoras" e a institucionalização ou "academização" de disciplinas importantes para estudos de minorias historicamente marginalizadas. Assim, o processo de "academicização" e alinhamento a uma agenda modernizadora e de estímulos à produção estipulados especialmente a partir de atores neoliberais estadunidenses e europeus, são os mesmos que promovem a separação entre as práticas intelectuais produzidas na academia e as práticas intelectuais extra- acadêmicas, marginalizadas pelo caráter de não "cientificidade".

Em geral, pode-se dizer que, no que diz respeito principalmente à esfera política e econômica, além das clássicas teorias sociais, os intelectuais latino-americanos se baseiam em

estudos e obras de origem americana e europeia. Por outro lado, é verdade que eles, por medo de parecerem antiquados, quase sempre conseguem fazer uma reelaboração criativa dos paradigmas "do norte". Esta é uma dinâmica unilateral, na maioria dos casos, uma vez que as contribuições teóricas latino-americanas não são consideradas por estudiosos americanos e europeus - no máximo, eles ocupam um lugar de fonte de informações de testemunhos ou pontos de vista locais, principalmente por ignorância do português ou castelhano. Inclusive, em uma esfera latino-americana, nossa "mentalidade colonizada" faz com que, às vezes, seja necessário primeiro reconhecer autores latino-americanos no âmbito internacional, para, depois, estes serem considerados na esfera continental.

A implementação da chamada "agenda modernizadora" nas Ciências Sociais pode ocorrer, como já dito, pela associação de atores transnacionais que representam o "capital transnacional" com centros de estudos que lidam com questões como a diversidade cultural, vinculados a movimentos sociais de base, sob o discurso de uma boa causa ou uma boa intenção. Esta associação, em geral, ocorre através de financiamento direto ou através da oferta de bolsas, enquanto segue a naturalização do discurso neoliberal por estes mesmos atores. Esse é o objetivo dos think tanks.

A academia, devido à posição estratégica que ocupa na formulação, naturalização e propagação de representações e conceitos de consenso geral, além da legitimidade científica que possui, é uma esfera privilegiada de ação desses atores. Segundo Zizek (2008, p. 140), “la ideología dominante incorpora contenidos particulares populares auténticos y crea distorsiones cuanto a las relaciones de dominación y explotación”. Nesse sentido, torna-se muito interessante que esta ideologia se centre em campos acadêmicos ligados ao estudo de minorias e / ou vinculados a movimentos sociais, como dito.

Em relação à realização da propagação de ideias neoliberais através dessas redes, Mato (2007b) diz:

Estos actores, a los que denomino globales, han impulsado tales ideas a nivel mundial tanto a través de sus propias actividades como de las de redes transnacionales de actores sociales cuya formación estimularan. Así, han logrado proyectar el sentido común (neo)liberal a un punto tal que si no es el sentido común hegemónico de nuestra época, cuanto menos es el predominante; no sólo respecto de asuntos económicos, sino políticos y sociales en general. (MATO, 2007b, p. 23).

Em um contexto atual de crescente desilusão relacionado a variáveis econômicas e políticas, os intelectuais latino-americanos têm colocado de lado sua posição crítica e se integrado com facilidade surpreendente às estruturas de poder dos regimes neoliberais. Isso

implica uma perda do potencial intelectual dedicado à concepção de alternativas sociopolíticas e à correção de malformações existentes (MANSILLA, 2002).

Esta reprodução em relação às diretrizes de publicações e à geração de uma classe intelectual academicista pode explicar, em certa medida, a dependência dos países latino- americanos, não só nas esferas da produção do conhecimento, mas também em outras esferas sociais. Isso porque a capacidade da reflexão crítica e contextualizada, bem como a sua publicação e alcance, informam e formam sujeitos, gera posições críticas que levam a ações concretas em busca de uma outra realidade social mais igualitária e com maior autonomia nacional.

Considerando a ideia desenvolvida por Gramsci (1960) – de que o índice de hegemonia de uma classe pode ser medido pela sua capacidade de gerar "intelectuais orgânicos" criticamente engajados, permitindo um aumento da condição econômico-corporativa da sua classe -, parece evidente a importância do fortalecimento e expansão da educação, bem como da aproximação entre os acadêmicos e intelectuais das diferentes realidades sociais de seus respectivos contextos.

Como diz Carvalho e Águas (2016, p. 1024):

Descolonizar-se, para um acadêmico latino-americano, significa, entre outras coisas, admitir que não fomos capazes de incorporar plenamente os saberes dos mestres afro e indígenas, simplesmente porque atribuímos a posição de maestria apenas aos sábios dos países centrais do Ocidente.

Se é verdade que a segregação de classes étnica e racial no meio universitário nunca foi imposta legalmente no Brasil - e certamente isso vale para os demais países latino-americanos -, sua prática tem sido uma realidade no mundo acadêmico. Os mecanismos institucionais e as ideologias que fundamentam o racismo têm disso problematizadas com mais intensidade nos últimos anos na região latino-americana, mas seguem hegemônicos. Carvalho (2006) nos diz, por exemplo, dos casos de censura praticada pelos docentes, especialmente no universo das Ciências Sociais, sobre os estudantes que levantam problemáticas raciais ou que estão engajados em movimentos sociais.

Nos encaminhando para o fim desse primeiro capítulo, importante reafir que a ruptura com o paradigma hegemônico da produção de conhecimento baseado em contextos externos é uma tarefa complexa e pode ser trabalhada a partir de diferentes campos de ação. Internamente à academia e às estruturas escolares, uma reforma curricular que refletisse mais precisamente os processos históricos e que incluísse narrativas subalternalizadas seria fundamental, bem

como a expansão da inter e transdisciplinaridade; as atividades de extensão, o contato entre acadêmicos, estudantes e outros segmentos sociais, igualmente são pontos vitais a se enfatizar. Caminhando na mesma direção que Mato (2007), deve-se ressaltar a importância de visibilizar e valorizar um conjunto mais amplo de práticas intelectuais que têm uma história rica e presente na América Latina e que se caracterizam por questionar não apenas os limites disciplinares, mas as fronteiras entre práticas dentro das disciplinas acadêmicas e aquelas que transcendem ou se desenvolvem em outros contextos.

Seria necessário começar a analisar a própria dinâmica de hegemonia, desde os contextos micro (academia) até contextos macro (relações entre países), valorizando as perspectivas que consideram a diversidade intelectual representativa da riqueza cultural latino- americana. Acredito que este seja o primeiro passo para uma posição diferente - mais conscientes da própria realidade - em um contexto global.

Essa reflexão está relacionada com o resgate do conceito de engajamento intelectual enquanto uma figura que intervém criticamente na esfera pública, seja para questionar e transgredir a ordem existente, seja para problematizar e desenvolver conteúdos dentro de uma racionalidade própria e original, expressa nas atividades das artes, ciências, filosofia, direito, etc. Sobre a importância do engajamento e práxis intelectual, cabe pontuar a diferenciação que Chauí (2006) faz entre o intelectual e o ideólogo: enquanto o primeiro toma posição no interior da luta de classes contra a forma de exploração e dominação vigentes, o segundo fala a favor da ordem vigente, justificando-a e legitimando-a.

Tendo a noção de práxis de Marx, em mente, é importante destacar a necessidade de refletir sobre o conhecimento produzido e consumido na América Latina que, em última instância, serve como base para pensar seus problemas internos. É preciso que se popularize o questionamento crítico sobre os atores envolvidos; as estratégias em vigência; as imposições de termos, de paradigmas teóricos, metodológicos e linguísticos, em sua maioria importados e baseados em outros países. Essa percepção pode orientar a "resistência"95 e a “prática”, ou

“agência”, transformadora rumo à produção acadêmica em sintonia com problemas e dinâmicas sociais específicos de cada contexto nacional e comunitário.

Trata-se de unificar, portanto, o trabalho teórico, político e prático. Por isso a noção marxista de práxis é tão fundamental para nós. Como esclarece Gonzales (1991, p. 196) “praxis

95 Utilizamos este termo com base nos trabalhos sobre a cultura popular e subalterna de Stuart Hall. No presente trabalho

usamos esse termo para expor o potencial subjetivo dos intelectuais latino-americanos de “não se deixarem levar” pela imposição de "diretrizes modernizadoras" que buscam determinar as suas posições na atualidade. Ver Hall, S. (1984). “Notas sobre la deconstrucción de lo popular.” In Samuel, R. Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Grijalbo.

no es ni “praticismo”, ni “criticismo”, ni “cientificismo”, sino que es, unitariamente, la actividad humana – prático-sensible – en la que se articulan un determinado conocimiento de la realidad social, una crítica a dicha realidad u un proyecto para su transformación”. É por meio dela que os seres modificam o seu meio e a si mesmos. É por meio dela que os intelectuais latino-americanos podem conciliar a análise crítica sobre o campo acadêmico e a sua transformação, sendo essa transformação parte de uma mudança subjetiva.

Fora de uma prática transformadora, qualquer teorização crítica à forma como se produz conhecimento e às induções coloniais ainda presentes, mesmo em sua nova ideologia neoliberal, corre o risco de tornar-se insumo para esse mesmo sistema. Marx (1845), em sua segunda tese sobre Feuerbach, diz: “O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da teoria, e sim um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento. O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico”.

Além de questionar a atual estrutura da produção de conhecimento, essa postura leva a questionar os paradigmas teóricos e metodológicos utilizados pelos intelectuais latino- americanos e a perceber a ausência crônica de aportes epistêmicos dos povos e comunidades tradicionais. Estas populações detêm um inestimável acúmulo de conhecimentos, de enorme relevância, para tratar de problemáticas dessa região. Por consequência, o engajamento intelectual proposto também caminha no sentido de estabelecer diálogo horizontal com essas populações, buscando construir conhecimentos que colaborem para a diminuição da desigualdade social e para o respeito à diversidade cultural. Esse será o foco principal durante a crítica ao Pensamento Decolonial, no capítulo que se segue.