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CAPÍTULO 1 – OS INTELECTUAIS E ACADÊMICOS LATINO-AMERICANOS:

1.4 A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

A atividade reflexiva do conhecimento visa identificar, conhecer, explicar e validar as possíveis relações entre condições sociais e culturais historicamente localizadas e as produções de conhecimento de atores individuais e coletivos, guiados pela relação cognitiva subjetiva desses atores com a própria realidade. Usando as palavras de Llamo de Espinoza (1994) e outros colaboradores,

[...] a singularidade da Sociologia do Conhecimento deriva do fato de que toma por objeto todo conhecimento, tornando-se um conhecimento do conhecimento, um conhecimento reflexivo [...] Deste modo, a reflexividade é a operação que permite por em descoberto o sujeito do conhecimento, tematizando-o como parte, como parte ativa, do ato de conhecer (LLAMO DE ESPINOZA,1994 apud RODRIGUES JÚNIOR, 2002, p. 2).

Os progressos e desdobramentos das reflexões críticas sobre a produção do conhecimento, com a estruturação desse campo, ganha um lócus mais bem definido dentro da academia. Mannheim também teve o seu pensamento desdobrado por Bourdieu que, aplicando o que denominou “sociologia reflexiva”, voltou o seu olhar para o seu próprio trabalho e de seus colegas de profissão, realizando o que chamou de “sociogênese” e de “vigilância epistêmica”. Esse autor acumulou uma série de estudos sobre o “campo” acadêmico (especialmente o contexto da educação formal, básica e universitária, no contexto francês), suas dinâmicas, conflitos, influências e contradições, como exposto mais adiante, tornando-se uma importante referência contemporânea da Sociologia do Conhecimento e da Educação.

Outro nome mais contemporâneo de enorme influência no estudo das relações entre conhecimento e poder é Michael Foucault que, dentro de áreas mais gerais até as mais específicas, vai problematizar os usos instrumentais do conhecimento em contextos sociais e sua relação intrínseca com o poder: “O exercício do poder cria perpetuamente o conhecimento e, por outro lado, o conhecimento induz constantemente aos efeitos do poder” (1977, p. 52)78.

Foucault foi mais fundo na análise da microfísica das relações de poder e pensou a situação social em termos de lugar – microespaços -, como clínicas, fábricas e prisões, nos quais o conhecimento é produzido ou aplicado. Esse pensador refletiu sistematicamente sobre as “ordens do conhecimento”, afirmando que cada sociedade possui o seu sistema de verdade, sendo este definido por um lugar e por um período. Um sistema de verdade seria resultado das

78 Burke (2015), no entanto, alerta para o fato de que, duzentos anos antes das análises de Foucault sobre poder e conhecimento,

o governador geral de Bengala, Warren Hatings, declarou que “toda acumulação de conhecimento e, sobretudo aquele obtido pela comunicação social com as pessoas sobre as quais se exerce dominação…é útil para o Estado”.

principais formas e instituições de conhecimento encontradas em uma determinada cultura, somadas aos valores a elas associados. O resultado dessa equação pode ser percebido nas escolas, universidades, arquivos, laboratórios, redações de jornais, etc, de uma determinada região. Importante ressaltar que, como todo “produto social”, as “ordens do conhecimento” não são homogêneas e carregam, em maior ou menor medida, contradições e divergências entre os seus conteúdos. Ao aprofundarmos o olhar, perceberemos a hierarquia entre saberes dominantes e subordinados, assim como a relação dialética entre eles.

O pensamento foucaultiano que busca as relações entre a produção de conhecimento e a produção de poder encontra convergência com diversos outros autores, por exemplo, a defesa feita por Edward Said (2007) de que os estudos ocidentais do “oriente” seriam basicamente um meio de dominação dessa região79. Também parece ter sido um fator de inspiração, apesar da

falta de consenso, como veremos mais adiante, sobre a formulação de “geopolítica do conhecimento”, reivindicada autoria por Walter Mignolo. A distribuição do poder de acordo com as produções regionais e nacionais também ocupa Bruno Latour, que discorre sobre as relações entre os centros intelectuais e suas periferias, tal como dentro de uma visão econômica entre uma metrópole e suas colônias, e conclui que os “centros de cálculo” (metrópoles) importam matéria-prima de informações da periferia e, em troca, exportam o produto final, o conhecimento.

Na realidade é preciso apurar o discurso sobre a lógica eurocêntrica de apropriação de informações e conhecimentos de outros povos não-europeus, e perceber como o contato intercultural sempre acarreta, em maior ou menor medida, trocas para ambos os lados, ainda que alguns conteúdos dessas trocas fiquem mais implícitos do que outros. Nesse sentido, torna- se bastante útil a diferenciação que Polanyi realiza entre “conhecimentos tácitos” ou “incorporados” e “conhecimentos explícitos” (BURKE, 2015).

A História se guia muito mais pelos conhecimentos explícitos e documentados, sendo um enorme desafio metodológico o estudo dos saberes incorporados. Caberia aqui retomar o conceito bourdiano de habitus para descrever o conjunto de habilidades e fundamentos tão bem internalizados que os indivíduos nem se dão conta de que os possuem, assim como o de “agência” para explicitar que a divisão entre conhecimentos implícitos e explícitos não são exatamente rígidas, havendo processos de mediação fundamentais, seja na transformação do sujeito que internaliza determinado conhecimento ou no conhecimento que é repassado

79 Para Said (2007) orientalismo é, ao mesmo tempo, uma especialidade acadêmica, um estilo de pensamento e uma instituição

corporativa de apoio ao domínio ocidental, que teve início com a invasão do Egito por Napoleão, em 1798, quando ao exército francês juntou-se um grupo de 167 acadêmicos em uma comitiva de ciências e artes (BURKE, 2015).

“externamente”. Essa seria a dinâmica pela qual os sujeitos e a sociedade são transformados dialeticamente.

Essa reflexão leva à outra sobre a importância de relocalizar a história do conhecimento e das ciências. Sendo os métodos científicos frutos de práticas cotidianas menos formais - e isso, por si só, uma razão contra os etnocentrismos, especialmente o eurocentrismo -, a história da ciência deveria ser incorporada a uma história mais ampla dos conhecimentos. As cronologias da história do conhecimento, em sua enorme maioria, se limitam aos períodos marcantes da história europeia. Certamente que diversos desses períodos tiveram forte impacto sobre o restante do mundo. No entanto, o fio condutor é a Europa e pouca ou nenhuma ênfase é dada à colaboração fundamental de outros conhecimentos para a “evolução” da trajetória dita oficial dos conhecimentos europeus.

Curiosamente, isso pode ser percebido no próprio trabalho de Burke (2015). Na sua obra “O que é a história do conhecimento”, o autor chama atenção para o fato de que não existe uma história do conhecimento, e sim histórias do conhecimento. Com isso, ele discorre brevemente sobre a importância de se contextualizar cada sistema de conhecimento, evitando hierarquizações comparativas universalistas; esclarecendo que as conexões entre diferentes partes do sistema são mais visíveis para quem está de fora, sendo de difícil percepção para quem está dentro do sistema; e criticando, especialmente no último capítulo, a visão positivista e acumulativa do conhecimento, através dos trabalhos de Thomas Kuhn, Michael Foucault, Gaston Bachelard, entre outros que produziram criticamente sobre essa concepção.

Por outro lado, nas inúmeras referências e fatos históricos que utiliza para traçar a trajetória do conhecimento, Burke deixa de lado qualquer aprofundamento sobre a importância, dentro das diversas áreas e das diversas regiões, dos chamados conhecimentos tradicionais para a forma de vida das respectivas comunidades e sociedades. Inclusive deixa de pontuar a importância dos contatos entre os europeus e os povos autóctones das Américas para o próprio desenvolvimento do pensamento ocidental moderno. Ao basear-se nos estudos de Pyne, por exemplo, e pontuar os momentos históricos que devem ser distinguidos, nenhuma menção aos conhecimentos não-hegemônicos latino-americanos, por exemplo, é feita80.

80 O trecho a seguir é ilustrativo de como Burke (2015, p. 65) não tem a preocupação de inserir os conhecimentos não-

hegemônicos latino-americanos na “história dos conhecimentos”: “O que precisamos é distinguir essas maneiras: a era do manuscrito, por exemplo, a partir de 3000 a.c, e a primeira era da impressão de papel, ocorrendo no Ocidente mais ou menos entre 1450 e 1750. Depois de 1750, a periodização se torna mais difícil e controversa, porém é possível distinguir outra cinco eras: a era da estatística, de 1750-1840; a era do vapor e da eletricidade, 1840-1990 (transmitindo informações por prensa a vapor, navios a vapor, ferrovias e telegramas); a era da Big Science, de 1990-1950; a era das três revoluções, 1950-1990 (a terceira era dos descobrimentos, a terceira revolução científica e a terceira revolução industrial); e a nossa própria era, a era da World Wide Web, a partir de 1990”.

Essa não é uma postura rara e costuma aparecer com frequência entre os autores do campo da Sociologia do Conhecimento. Dentro da proposta de um estudo crítico e epistemológico desse campo, nota-se a contradição entre o universalismo e a relatividade. Ao ter a pretensão de estabelecer o status de verdade e objetividade do conhecimento científico, identifica-se um problema nesse campo: por um lado, a gênese do conhecimento e, por outro lado, e, consequentemente, a validade científica desse conhecimento. Partindo da ideia de que o conhecimento, tal como reivindicado pela própria Sociologia do Conhecimento, tem origem nas relações estabelecidas entre as condições sociais historicamente localizadas e nas produções culturais dos atores individuais e coletivos, então, obviamente, chegamos à conclusão de que diferentes contextos sociais devem gerar conhecimentos diferentes, que só podem ser válidos em determinadas condições sociais. Sobre a impossibilidade de elaborar um conhecimento da verdade universal, Rodrigues Júnior (2002) diz que: “Isso nos levaria a conceber a existência de conhecimentos apenas particularizados, atomizados, e a considerar que todo o conhecimento estaria inevitavelmente vinculado a uma forma social, impossibilitando a construção de uma verdade única” (p. 03).

Se a reflexão for feita em termos científicos, a rejeição encontrada pela Sociologia do Conhecimento tem sua origem precisamente nessa problemática: o conhecimento nasce determinado pelas condições da realidade coletiva, então só ela mesma poderia autorizar o estabelecimento de critérios de validade para determinação do que é conhecimento verdadeiro ou falso, uma vez que esse conhecimento está ligado às lógicas temporais, circunstanciais, locais e culturais dos diferentes contextos sociais.

De fato, no que diz respeito ao debate sobre a Sociologia do Conhecimento, alguns autores argumentam que, para que ela adquira o status de ciência, como um ramo da Sociologia, teria que abandonar toda pretensão para falar sobre a validade científica do conhecimento, se detendo ao estudo da gênese social dos mesmos. Assim, o próprio Manheim (1982, p. 306- 307), sobre as pretensões da Sociologia do Conhecimento, nos diz que:

[...] todos os problemas epistemológicos foram evitados ou colocados num segundo plano. É possível tal reserva de nossa parte e é mesmo desejável tal isolamento de um conjunto de problemas, na medida em que nosso objetivo seja somente o de uma análise desinteressada de determinadas relações concretas, sem distorções oriundas de preconceitos teóricos.

Todas as disciplinas atravessam, de forma desigual, crises de paradigma. Isso significa questionar a própria forma de inteligibilidade do real que um determinado paradigma fornece, e não apenas as ferramentas metodológicas e conceituais que permitem o acesso a tal

inteligibilidade. Nesse sentido, parece que a Sociologia do Conhecimento já nasce carregada desta reflexão epistemológica, como se sua natureza, legitimidade e racionalidade incluíssem essa crise e essa reflexão crítica.

Da mesma forma, ao falar de produção intelectual, deve-se também falar dos contextos sociais e históricos dessas produções, da origem desse intelectual, da aplicabilidade do conhecimento produzido, das fontes de financiamento, isto é, considerar a produção intelectual como parte do exercício reflexivo, fazendo uma leitura desses trabalhos e, ao mesmo tempo, considerando os seus diferentes contextos de produção social, política, histórica, econômica, etc.

Como parte desse exercício crítico constante de formulação do conhecimento, deve-se considerar o risco de cair no que se denomina "Sociologia Espontânea", pautada pela ilusão de conhecimento imediato. Se, por um lado, a formulação do conhecimento sobre o ambiente social começa com impressões pela busca de generalizações ou padrões fictícios e frágeis, por outro lado, o exercício de elaboração crítica neste primeiro momento torna-se fundamental para a credibilidade desses mesmos conhecimentos.

“A familiaridade com o universo social constitui, para o sociólogo, o obstáculo epistemológico por excelência porque ela produz continuamente concepções ou sistematizações fictícias ao mesmo tempo em que as condições de sua credibilidade”. (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2000b, p. 23).

O sociólogo nunca conseguirá eliminar a Sociologia Espontânea e, portanto, deve se impor um incessante exercício crítico contra as evidências ilusórias que proporciona, sem grandes esforços, a ilusão do saber imediato. Nesse sentido, a vigilância epistemológica dentro da Sociologia do Conhecimento deve ser perene e inflexível diante da pretensão de estabelecer o status de verdade e objetividade do conhecimento científico. Nesse sentido, a Sociologia do Conhecimento pode servir como ferramenta para o exercício crítico que relaciona a produção do conhecimento com o contexto sócio-histórico do meio ambiente, onde sua legitimidade e função estão localizadas.

1.5 A HIERARQUIZAÇÃO ENTRE O CONHECIMENTO CIENTÍFICO E O