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OS MANUAIS ESCOLARES E O PROCESSO ENSINO/APRENDIZAGEM

GEOGRAFIA DO 3º CICLO NO ENSINO BÁSICO

1- OS MANUAIS ESCOLARES E O PROCESSO ENSINO/APRENDIZAGEM

No processo educativo intervêm elementos como o professor, o aluno e os materiais escolares. A actividade do professor circunscreve-se na implementação das orientações definidas pelo Ministério da Educação. O aluno é o centro do processo ensino aprendizagem, ponto de partida de toda actividade pedagógica (Huot, 1989). O trabalho desenvolvido nas escolas visa preparar o aluno para a sua integração na sociedade de forma participativa. Os materiais escolares devem proporcionar as diferentes funções de modo a permitir uma formação íntegra do formando.

O manual escolar é um instrumento estruturador do saber, é um elemento que permite uma aquisição ordenada dos conhecimentos, isto é, o acesso aos saberes organizados (Choppin, 1992). Gérard (1993), define manual escolar como um instrumento impresso intencionalmente estruturado, para se inscrever num processo de aprendizagem, com o fim de melhorar a eficácia dessa aprendizagem. Contrariamente, a outros tipos de livros, este tipo de material define-se pela sua intenção mais ou menos explicita de servir de suporte escrito ao ensino de uma disciplina no seio de uma instituição escolar (Choppin, 1992). A este propósito Richaudeau (1986), distingue duas categorias de obras, as que apresentam uma progressão sistemática, e as de consulta e de referência. As primeiras propõem uma ordem de aprendizagem, através da organização de conteúdos por capítulos, assim como pela contemplação de modos de ensino: resumos, exercícios de aplicação e avaliação. De acordo com o mesmo autor os manuais escolares pertencem a esta categoria. As obras de consulta facultam um conjunto de informações que é possível referir sem implicar uma organização rigorosa de aprendizagem, são consideradas como organizadores do trabalho do professor e dos alunos.

Os manuais escolares são objectos particularmente complexos, para o que contribuem decisivamente, a rede de relações intertextuais em que estão posicionados, a natureza plural dos seus destinatários, a multiplicidade de objectivos que a sua utilização persegue, e ainda, o tipo de condicionalismos que marcam a sua produção, difusão e utilização.

52 Transpondo, com as necessárias adaptações o princípio bernsteineano de que a linguagem é a expressão visível das relações sociais, será teoricamente defensável o princípio de que a análise de um manual, permitirá aceder, desde que usada a instrumentação adequada, às características dos diversos factores que o configuram.

A explicitação das funções que um manual procura desempenhar é de extrema importância na medida em que este instrumento pode servir quer ao professor, quer ao aluno, isto é, consoante o tipo de utilizador, o manual pode possuir diferentes configurações. Importa referir que independentemente do tipo de destinatário, o manual escolar cumpre uma multiplicidade de funções as quais concorrem para um mesmo fim: contribuir para a eficácia do processo de ensino/aprendizagem.

Tradicionalmente, o manual escolar era concebido tendo como finalidade a transmissão de conhecimentos. Muitas críticas se fazem a este tipo de concepção, pois a prática revela que existem outras funções e a actividade pedagógica não deve ser perspectivada apenas sob ponto de vista cognitivo. É verdade que constitui preocupação fulcral a manipulação cognitiva, a transformação do estado cognitivo do aluno. Contudo, estes saberes devem situar-se num certo espaço e tempo, daí a dificuldade de neutralidade dos manuais no que diz respeito à visão cultural, social e ideológica tanto dos seus autores ou como do mundo circundante.

Todos os estudiosos dos materiais escolares defendem a multiplicidade de funções que estes instrumentos desempenham. Gérard (1993), refere que “um manual tem sempre uma função principal e uma ou várias secundárias”. A mesma posição é assumida por outros autores como Choppin (1992), Richaudeau (1986), Huot (1989) e Castro (1999).

Para uma breve compreensão deste assunto vejamos algumas das funções apontadas. Richaudeau (1986), apresenta três pontos de vista na base dos quais se definem as diferentes funções, sob o ponto de vista científico, pedagógico e institucional.

No que diz respeito à perspectiva científica, o mesmo autor explica que manual escolar serve para oferecer um certo número de conhecimentos. Do ponto de vista pedagógico apontam-se três grandes funções: uma função de informação, uma função de estruturação e uma função de organização da aprendizagem. À perspectiva institucional cabe a orientação do aluno na apreensão do mundo exterior, na elaboração de conhecimentos adquiridos por outras vias que não formais. Estas funções não entram em conflito entre si, apesar de se reconhecer que os autores podem privilegiar uma em detrimento das outras.

53 Gérard (1993), indica as funções relativas ao aluno, obedecendo a dois parâmetros: as funções orientadas às aprendizagens escolares e as funções orientadas à ligação entre as aprendizagens e a vida quotidiana. As funções baseadas na aprendizagem são a transmissão de conhecimentos, o desenvolvimento de capacidades e de competências, a consolidação e avaliação de aquisições. No tocante à relação com a realidade, apontam-se as funções de ajuda na integração de aquisições, como obra de referência de educação social e cultural. O mesmo autor enumera as funções relativas ao professor, as quais se relacionam com a formação. Esta pode incidir na informação científica e geral, na formação pedagógica, na ajuda nas aprendizagens, na gestão das aulas e na avaliação.

Como se pode concluir, o manual escolar é um instrumento polifónico, pois assume múltiplas funções (Choppin, 1999). É redutor atribuir-lhe uma só função, não obstante se reconhecer o seu carácter selectivo, na medida em que apresenta uma visão incompleta de uma realidade complexa.

A complexidade destes objectos, que Choppin sistematiza atribuindo-lhes marcas de objectos pedagógicos, culturais e de produtos de consumo, suscita naturalmente múltiplos olhares que neles podem privilegiar diferentes dimensões, relativas às funções culturais, ideológicas e pedagógicas que podem desempenhar. Segundo esse mesmo autor, os manuais escolares podem ser analisadas à luz de quatro dimensões (1992), que são:

1) Como produto de consumo, dependente das políticas educativas, da evolução demográfica e da capacidade de produção e difusão das empresas. Algumas das opções tomadas por autores e editores a nível das múltiplas estratégias de sedução que são desenvolvidas, não podem ser desarticuladas das características do “mercado” em que têm que concorrer, mas radicam-se mais em preocupações comerciais do que pedagógicas, e das características do(s) público(s) alvo.

2) Como suporte de conhecimentos escolares e o depositário de conhecimentos e das técnicas, que a sociedade julga ser a aquisição necessária à perpetuação dos seus valores e que deseja, consequentemente, transmitir às jovens gerações. Sendo os manuais escolares um repositório dos conteúdos legitimados na escola e para a escola são, em simultâneo, uma tecnologia para a transmissão daqueles, integrando aspectos relativos à sequência e ao ritmo da sua transmissão através, por exemplo, das actividades que propõem e dos modos de avaliar as aquisições realizadas.

54 3) Como veículo de um sistema de valores, de uma ideologia, duma cultura, participando estreitamente dos processos de socialização, de aculturação do publico jovem ao qual se destina. O currículo, é sabido, resulta sempre de operações de selecção de cultura. Numa dada sincronia, e de entre o conhecimento disponível, são realizadas escolhas e nestas escolhas os manuais escolares têm uma importância fundamental. Assim sendo, os manuais escolares podem ser descritos em função dos princípios que subordinaram as inclusões e exclusões que realizam.

4) Como instrumento pedagógico, o qual se apresenta na sua elaboração como na sua utilização, inseparável, das condições e dos métodos de ensino do seu tempo. Os manuais podem permitir aceder ao conhecimento da “ideologia pedagógica” subjacente, do modo como é entendido o processo de “transmissão” e “aquisição” que tem lugar na aula e do “papel” que nele é reservado aos alunos e aos professores. Possuem uma importância fundamental na conformação das formas e dos conteúdos do conhecimento pedagógico.

A consideração destas dimensões permitem ajudar a reconhecer elementos que caracterizam, em cada sociedade e em cada momento, concepções e práticas de ensino.

Se percorrermos a história, verificamos que o manual passou de objecto raro, frágil, de difícil manuseamento e de utilização colectiva a um objecto mais comum, de acesso progressivamente mais fácil e de utilização individual (Castro, 1995).

Como suporte de conhecimentos e veículo de valores, as suas funções sofreram, igualmente, alterações.

Nos finais do século XVIII, o manual identificava-se com a escola como método, disciplina e enciclopédia, no qual estão condensadas todas as matérias indispensáveis ao conhecimento. Apresentava-se como a principal porta de entrada na vida e na cultura (Magalhães, 1999).

Com o advento da Escola Nova, cujos princípios pedagógicos valorizam uma pedagogia activa, o manual não é mais visto como enciclopédia, mas apresenta-se como uma abertura de caminhos, com vista à remissão para outras leituras e outras fontes de informação e formação (Magalhães, 1999).

A primeira metade do século XX é, em Portugal, fortemente marcada por um regime político de ditadura, em função do qual a escola se articula. Neste contexto, o manual é estruturado em função dos princípios e valores determinados e controlados pelo Estado que decreta o regime do livro único. Segundo Magalhães (1999), o manual constitui-se, nesta altura, como uma antropologia, uma visão total e organizada sobre o mundo. Esta

55 consideração é identificável no discurso de tomada de posse de Carneiro Pacheco, em 1936, o qual, referindo-se ao manual escolar, tece as seguintes considerações: «vem, depois, o livro, outra tragédia! Como de cada cabeça, cada sentença, há uma multiplicidade de formas para a mesma matéria e para o mesmo grau, determinando no espírito do estudante a confusão. O Estado Novo nunca pode adoptar senão um conceito de verdade histórica. Estas minhas palavras envolvem um aviso aos interessados, para que se não lancem em edições imprudentes».

O fim da ditadura marca, também, de forma mais definitiva o fim do livro único. A “democratização” do ensino reflecte-se nos manuais que, entretanto, proliferam. Paralelamente, os avanços técnicos e tecnológicos possibilitam a emergência de novas fontes de informação e de referência. Estes avanços não retiraram, porém, ao livro escolar o estatuto de suporte por excelência, ou, nas palavras de Gérard e Roegiers (1998), de suporte de aprendizagem mais difundido. Esta centralidade advém para alguns autores, do facto de o manual se constituir como garantia estruturada de conhecimentos e práticas, permitindo, de forma organizada, o acesso ao conhecimento que de outra forma se apresentaria desconexo. Os livros escolares são instrumentos de acesso a conhecimentos organizados, ou saber-fazer específicos, cuja apropriação progressiva proporciona o sucesso escolar e a inserção sócio-económica (Huot, 1989). Nesta perspectiva, o manual permite também nivelar as desigualdades sociais, uma vez que o acesso a fontes de informação alternativas é limitado pelo estatuto económico, social e cultural. Para além deste aspecto, advém uma função importante do facto de se atribuir à família um papel mais importante na educação e um maior envolvimento na vida escolar. O manual pode constituir o ponto de ligação com a escola, ou, dito de outra forma, pode possibilitar aos pais acompanhar e verificar as aprendizagens dos filhos (e indirectamente o ensino do professor). O manual assegura a relação entre a escola e a família. Sem os manuais, que conheceriam os pais acerca do que as suas crianças fazem na sala de aula? E poderiam eles ajudá-las? (Choppin, 1992).

O manual constitui-se como referência daquilo que pode ser dito nas aulas (os conteúdos); como forma como estes se transmitem e adquirem (a pedagogia): «loci de recontextualização do discurso pedagógico» (Castro, 1995), como meio autorizado de transmitir saber legítimo aos alunos (Dendrinos, 1997).

No contexto português, esta legitimidade é-lhe atribuída, em primeira instância, pelos documentos oficiais. A Lei de Bases do Sistema Educativo, no artº 41º, confere-lhe o estatuto de «recurso educativo privilegiado». A Lei nº47/2006, no art.3º b)

56 refere que o manual é um recurso didáctico-pedagógico relevante, ainda que exclusivo do processo de ensino e aprendizagem, concebido por ano ou ciclo, de apoio ao trabalho autónomo do aluno que visa contribuir para o desenvolvimento das competências e das aprendizagens definidas no currículo nacional do ensino básico e secundário, apresentando informações correspondentes aos conteúdos nucleares dos programas em vigor, bem como propostas e actividades didácticas e de avaliação das aprendizagens, podendo incluir orientações de trabalhos para o professor. A mesma lei, no art.2º, estabelece princípios orientadores no regime de avaliação, certificação e adopção dos manuais escolares (QUADRO IX).

QUADRO IX- PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO REGIME DE AVALIAÇÃO E ADOPÇÃO DE MANUAIS ESCOLARES

- Liberdade e autonomia científica e pedagógica na concepção e na elaboração dos manuais escolares.

- Liberdade de autonomia dos agentes educativos, mormente os docentes, na escolha e na utilização dos manuais escolares no contexto do projecto educativo da escola ou do agrupamento de escolas.

- Liberdade de mercado e de concorrência na produção, edição e distribuição de manuais escolares. - Qualidade científico-pedagógica dos manuais escolares e sua conformidade com os objectivos e conteúdos do currículo nacional e dos programas e orientações curriculares.

- Equidade e igualdade de oportunidades no acesso aos recursos didácticos pedagógicos. Fonte: ME, Lei nº47/2006

Na prossecução desses princípios cabe ao Estado definir linhas de actuação para a certificação, avaliação e adopção de manuais escolares (QUADRO X).

QUADRO X- LINHAS DE ACTUAÇÃO PARA A CERTIFICAÇÃO, AVALIAÇÃO E ADOPÇÃO DE MANUAIS ESCOLARES

- Definição de um regime de adopção formal dos manuais escolares pelas escolas e pelos agrupamentos de escolas.

- Definição do regime de avaliação e certificação dos manuais escolares para efeitos da sua adopção formal pelas escolas e agrupamentos de escolas.

- Promoção da qualidade científico-pedagógica dos manuais escolares e dos demais recursos didáctico-pedagógicos.

- Promoção da estabilidade dos programas de estudos e dos instrumentos didácticos correspondentes.

- Apoio à aquisição e à utilização dos manuais escolares.

- Formação dos docentes e responsáveis educativos em avaliação de manuais escolares

57 A referida lei também define os seguintes critérios na avaliação e certificação dos manuais escolares que visam melhorar a qualidade dos mesmos (QUADRO XI).

QUADRO XI- CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO E CERTIFICAÇÃO DE MANUAIS ESCOLARES - Rigor científico linguístico e conceptual.

- Adequação ao desenvolvimento das competências definidas no currículo nacional.

- Confidencialidade com os objectivos e conteúdos dos programas ou orientações curriculares em vigor.

- Qualidade pedagógica e didáctica, designadamente no que refere ao método, à organização, à informação e à comunicação.

- Possibilidade de reutilização e adequação ao período de vigência previstos. - A qualidade material, nomeadamente a robustez e o peso.

Fonte: ME, Lei nº47/2006

Nos critérios de apreciação para adopção de manuais escolares, estão incluídos quatro domínios que são: organização e método, informação, comunicação, características materiais. É com base nos parâmetros de cada um desses domínios que é feita a escolha do manual a adoptar (QUADRO XII anexo II: 228).

No manual escolar estão reflectidos os entendimentos dominantes de cada época, relativos às modalidades da aprendizagem e ao tipo de saberes e de comportamentos que se deseja promover (Vidigal, 1994). O manual apresenta-se, em consequência, fortemente condicionado pelas mutações sociais, económicas, políticas e culturais, quer nos tipos de saberes que são representados, quer nos valores que explícita ou implicitamente veicula.

Como se pode observar, a caracterização do manual escolar espelha o valor que este tem na acção escolar. Porém, não se pretende concluir que o papel do professor seja secundário, pois há muitos aspectos que o manual não pode preencher como a adequação do manual escolar ao tipo de público, à faixa, que só o professor pode resolver no momento concreto da aplicação de um manual escolar.