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4. VAMOS ÀS POLÊMICAS?

4.3 OS MELHORES HOMENS PODEM SER ALVOS DE POLÊMICA: A

O movimento “me too.80”, criado em 2006 pela ativista norte-americana Tarana Burke, nasceu a partir de uma história pessoal da própria Burke81. Em um acampamento,

79 Há hashtags, por exemplo, que se aplicam a outros enunciados, isto é, que não necessariamente estão vinculados a certo tema. Pode-se citar o caso do #sqn (só que não); essa hashtag não está associada a um assunto específico, mas a uma condição presente no extralinguístico comum à imagem/ao vídeo ao qual ela passa estar relacionada.

Tarana atuava como conselheira de jovens meninas negras em situação vulnerável. Segundo ela, certo dia, após uma sessão de aconselhamento coletivo, uma das meninas a procurou reservadamente.

A garota, Heaven, começou seu relato sobre o que seu “stepdaddy”82 vinha fazendo com ela. Burke desabafa que não conseguiu ouvir mais que cinco minutos de confidência, tamanha revolta e repulsa sentida por ela ao ouvir a história da menina. Tarana não se sentiu preparada para ajudar ou aconselhar Heaven e a encaminhou para outra conselheira. A ativista conta que a expressão da garota ao ter seu desabafo interrompido e não ter sido acolhida por ela a assombra até os dias de hoje.

Burke admite não ter tido a coragem de Heaven e ter demonstrado empatia dizendo “me too.”. E foi daí que partiu o movimento.

Somente em 2017 “me too.” tornou-se hashtag (#metoo), quando viralizou nas redes sociais, após as denúncias contra o produtor e co-fundador da Miramax Pictures e da The

Weinstein Company83, Harvey Weinstein. A atriz nova-iorquina Alyssa Milano criou a

hashtag e a publicou em um tweet, em seu perfil pessoal do Twitter, convidando a todos que

já sofreram algum tipo de violência sexual a responderem sua postagem, usando #metoo. Segundo Milano, ainda em seu tweet, “se todas as mulheres que sofreram assédio ou foram agredidas sexualmente escrevessem “me too” como status, nós talvez consigamos dar às pessoas uma ideia da magnitude do problema. ”84.

81 Disponível em: https://metoomvmt.org/get-to-know-us/history-inception/. Acesso em 30 ago. 2020. 82 “padrasto”, em português.

83 Para se ter ideia da dimensão da influência de Harvey Weinstein em Hollywood, somam-se oitenta estatuetas do Oscar de filmes sob seu comando ou sob sua influência. Fonte:

http://www.adorocinema.com/slideshows/filmes/slideshow-137798/. Acesso em 30 ago. 2020. 84 Tradução da autora, da figura 37.

Figura 38 - Tweet que deu origem à hashtag #metoo

Fonte: Twitter (@alyssa_milano, 2017)

A postagem de Milano alcançou visibilidade e engajamento internacional e, inclusive ainda em 2020, a hashtag metoo é utilizada referindo-se a assuntos relacionados a assédio e violência sexual.

Figura 39 - Tweet de 30 de agosto de 202085

Fonte: Twitter (@boris_fli, 2020)

A reenunciação da hashtag, assumida nesse novo enquadramento, de 2020, indica a incorporação de #metoo à memória discursiva. Nesse sentido, Ellen DeGeneres, apresentadora e comediante americana, brincou dizendo que, caso alguém queira utilizar essa mesma hashtag em outros contextos, comentar um filme, por exemplo, deve agora pensar em dizer de outro modo, “I also”, “Me as well”86, porque, justamente, Me too assumiu um significado coletivo, isto é, tornou-se um signo.

85 “Onde está o movimento #metoo? Misoginia 101: Pessoas doando e ajudando Jacob Blake, enquanto ignoram completamente a mulher que ele estuprou.” – tradução da autora. Resumidamente, sobre o caso Blake, Jacob Blake foi condenado por estupro e, de acordo com uma das versões do caso, ao cumprirem o mandado de prisão, Blake resistiu à prisão e acabou sendo baleado. Por ser negro e ter sofrido violência policial, o caso reacendeu o recente debate sobre os excessos na ação policial envolvendo pessoas negras, como aconteceu com George Floyd, em 25 de maio de 2020; episódio esse que também fez subir uma hashtag, também associada a outro movimento, #blacklivesmatter.

Os signos também são objetos únicos e materiais e (...) qualquer objeto da natureza, da tecnologia ou de consumo pode se tornar um signo. Neste caso, porém, ele irá adquirir uma significação que ultrapassa os limites da sua existência particular. O signo não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante. (VOLÓCHINOV, 2018 [1928], p. 93).

Ainda, segundo Volóchinov (2018 [1928]), o estabelecimento de um signo dá-se na ordem da coletividade, ou melhor, “um signo só pode surgir em um território

interindividual, que não remeta à ‘natureza’ no sentido literal dessa palavra” (grifos

originais, p. 96). E mais,

[o] signo tampouco surge entre dois Homo sapiens. É necessário que esses dois indivíduos sejam socialmente organizados, ou seja, componham uma coletividade – apenas nesse caso um meio sígnico pode formar-se entre eles. A consciência individual não é só incapaz de explicar algo nesse caso, mas, ao contrário, ela mesma precisa de uma explicação que parta do meio social e ideológico. (VOLÓCHINOV, 2018 [1928], p. 96-97).

A expressão “Me too.” ganhou tanta visibilidade nos meios de comunicação, que foi eleita como “palavra do ano” pelo Dicionário Macquarie87, de 2018; enquanto, “toxic”88 foi eleita pelo Dicionário Oxford89, também em 2018, a qual também está associada ao movimento encabeçado por Burke.

Tal repercussão refletiu em uma série de mudanças e medidas tomadas em relação à cultura do assédio, entre elas, um fundo, Time’s Up, criado para amparar financeiramente mulheres vítimas que enfrentam processos jurídicos ao terem denunciado abusos, por exemplo. Outra medida, voltada para os homens, é o programa A Call to Men, o qual consiste em promover treinamentos dentro de empresas, entre outros serviços, endereçados ao público masculino, que buscam uma masculinidade positiva90.

Nessa linha, a empresa Gillette lançou uma campanha estreitamente vinculada ao movimento “me too.”. Em 13 de janeiro de 2019, três meses após o boom das denúncias contra produtores e atores hollywoodianos e, consequentemente, da viralização da referida

hashtag (#metoo), a Gillette publicou em seu canal do YouTube “The Best Men Can Be91”.

87 Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2019/jan/15/me-too-named-2018-word-of-the-year-by-

australias-macquarie-dictionary#:~:text=1%20year%20old-,'Me%20Too'%20beats%20'big%20dick%20energy'%20as%20Macquarie,2018%20word%20of%20the%20ye ar&text=The%20phrase%20'Me%20Too'%20has,2018%20word%20of%20the%20year.. Acesso em 31 ago. 2020.

88 “Tóxico”, em português.

89 Disponível em: https://www.cnbc.com/2018/11/15/toxic-is-oxford-dictionary-2018-word-of-the-year.html#:~:text=Oxford%20Dictionaries%20named%20%E2%80%9Ctoxic%E2%80%9D%20its,and%20% E2%80%9Cpost%2Dtruth.%E2%80%9D. Acesso em 31 ago. 2020.

90 “Healthy manhood” é o termo empregado pela A Call to Men. Optei pela tradução “masculinidade positiva” em oposição à expressão “masculinidade tóxica”.

O vídeo, de 1 minuto e 49 segundos, amplia a discussão tratando não apenas de assédio e abuso sexual, mas também da agressividade, do bullying e do manterrupting92.

Assumindo o material da campanha como um gênero discursivo, tem-se que, enquanto enunciado, o vídeo remete

[à]s condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem (...) mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo de comunicação. (BAKHTIN, 1997, p. 261-262).

A título de nomenclatura, entende-se que a Gillette lançou um vídeo marketing, ou

social video marketing. Diferentemente da propaganda convencional, o vídeo marketing tem

como objetivo aumentar o engajamento do público, aumentando a consciência que se tem da marca, por meio de um enredo, personagens/atores, música e outros elementos que contribuem para a construção de um storytelling. Aqui, o que se busca é provocar um envolvimento emocional do público a ponto de estimular o compartilhamento do material nas redes sociais93.

Compreende-se, nesse ponto, a importância do pathos, inclusive, sob o viés da polêmica. Amossy (2018) define pathos como sendo “o efeito emocional produzido no alocutário.” (p. 206). Como campanha, observa-se que o interesse da Gillette, em produzir o vídeo, não é, explicitamente, fortalecer as vendas de certo item ou apresentar um novo produto; e sim, posicionar-se diante uma temática, registrando os valores da marca.

Tal posicionamento, considerando tratar-se de um anúncio publicitário, não pode ser julgado como inocente, uma vez que a opção de produzir um vídeo marketing, por parte da empresa, é promover o diálogo marca-público diretamente nas redes sociais e, com isso, ganhar visibilidade. Além disso, a campanha acolhe a causa do Me too., movimento voltado ao público feminino. Nesse sentido, pode-se apontar como objetivo, por parte da Gillette, atrair as mulheres, que já vêm utilizando cerca de um quinto dos aparelhos de barbear da

92 Ainda sem tradução em português, essa expressão refere-se à atitude masculina em interromper a fala da mulher, muito comum em ambientes de trabalho. Não é incomum deparar-se com esse termo associado a outros três: mansplaining, quando um homem assume uma posição professoral e explica algo para a mulher, julgando-a inocente ou ignorante em algum assunto, podendo, ser inclusive, do próprio universo feminino (amamentação, parto, menstruação, etc.); gaslighting, quando um homem sugere que a mulher enlouqueceu, está exagerando ou que “está surtando”, ao ser confrontado ou é questionado sobre algo; e, por fim,

bropriating, quando uma ideia da mulher é roubada por um homem e este leva os créditos por ela. Fonte:

https://annelisegripp.com.br/gaslighting-mansplaining-manterrupting-bropriating/. Acesso em 03 set. 2020. 93 Não foi possível encontrar um estudo específico que tratasse de vídeo marketing; portanto, a síntese feita refere-se a uma reunião de leituras de diversos sites que abordam a temática do marketing digital.

linha masculina. Ademais, as mulheres ainda são as principais responsáveis pelas compras do lar, o que pode determinar a escolha dos produtos Gillette por parte delas94.

Tendo isso em vista, se o objetivo da campanha é aumentar o engajamento não somente para fidelizar a marca, mas também para persuadir uma mudança de comportamento, é válido avaliar de que modo o vídeo marketing em questão foi arquitetado a fim de atingir o público e alcançar tais metas.

Assim como o ethos, o pathos também está atrelado a uma doxa comum. A doxa, nesse caso, estaria relacionada com o despertar de uma emoção esperada, isto é,

(...) a emoção se inscreve claramente em um saber de crença que desencadeia certo tipo de reação, diante de uma representação social e moralmente proeminente. Normas, valores e crenças implícitas sustentam as razões que suscitam o sentimento. A adesão do auditório às premissas determina a aceitabilidade das razões do sentimento. (AMOSSY, 2018, p. 208).

Observa-se, nesse sentido, que a campanha é composta por clichês. Os clichês, de acordo com Amossy (2018), “provocam efeitos de familiaridade ou de desgaste que permitem construir com o alocutário uma inter-relação que ora o gratifica apresentando algo conhecido, ora o irrita ao lhe impor banalidades.” (p. 239).

Os quatro homens que aparecem nos seis primeiros segundos do vídeo estão em frente ao espelho do banheiro. São homens de idades diferentes, mas que se reconhecem na posição de se olharem no espelho para poderem se barbear.

Figura 40 - A doxa de se barbear em frente ao espelho do banheiro

Fonte: Gillette (YouTube, 2019)

94 Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2019/01/31/gillette-irrita-clientes-antigos-para-conquistar-nova-clientela.htm. Acesso em 04 set. 2020.

Diferentemente de uma propaganda em que há ênfase no produto, na campanha, o foco está voltado para o homem. Verifica-se um interesse em tratar do interior e não do exterior, como o que se vê no espelho. É possível atestar isso, uma vez que, ao fundo, o que se ouve são notícias relacionadas ao que se teve ao Me too.

A abertura da campanha dirige-se, portanto, a um convite de “olhar para o interior” em uma cena tipicamente banal como a de se portar em frente ao espelho para poder fazer a barba. Na propaganda de 198995, por exemplo, a ênfase é dada exclusivamente ao produto e às conquistas provenientes desse autocuidado.

Figura 41 - Propaganda de 1989

Fonte: YouTube (bebop2905, 2009)

A segunda parte do vídeo marketing, de 2019, traz, justamente, a mensagem articulada pela de 1989: “The Best a Man Can Get”96, em uma estreita relação dialógica, podendo ser classificada como um discurso citado; o que o caracteriza como um já-dito na cadeia enunciativa da marca, remetendo à sua tradição e promovendo sua atualização.

Nesse momento do vídeo, ocorre não só a retomada verbal do slogan, mas também dois trechos do anúncio de trinta anos atrás: o final da propaganda, tal como ilustrado na YG02, e outro excerto que aponta uma das possíveis conquistas obtidas pelos usuários de Gillette, como na YG03.

95 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ThDBf14qPsc. Acesso em 04 set. 2020. 96 “O melhor que um homem pode conseguir”, tradução da autora.

Figura 42 - Enunciado de 1989 citado no de 2019 (YG02)

Fonte: YouTube (Gillette, 2019)

Figura 43 - Segundo trecho da propaganda de 1989 exibido na campanha de 2019 (YG03)

Fonte: YouTube (Gillette, 2019)

Rodrigues (2001), em sua tese, propõe um ponto de vista de bivocalidade, que poderia ser pensado nesse fragmento do vídeo marketing. “O discurso bivocal foi considerado como o discurso que do ponto de vista gramatical (sintático) pertence a um único falante, mas onde se tem, na verdade, a ‘fusão’ de dois enunciados (potenciais), de duas perspectivas axiológicas (assimiláveis ou não).” (p. 198).

Contudo, ainda sobre a inserção, é relevante considerar que essa “outra voz” é, na realidade, do mesmo enunciador, mas em um outro tempo. Essa visão do mesmo, que hoje é um outro, permite trazer à tona o conceito de cronotopo. Amorim (2018) sintetiza como se estabelece essa relação temporal, na perspectiva do herói, levando em conta a noção de cronotopo desenvolvida por Bakhtin.

A concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova temporalidade, corresponde um novo homem. Parte, portanto, do tempo para identificar o ponto em que este se articula com o espaço e forma com ele uma unidade. O tempo (...) é a dimensão do movimento, da transformação (...). (AMORIM, 2018, p. 103).

Na campanha, destaca-se a voz do narrador, representando a materialidade da voz neste tempo-espaço em contraposição à voz de 1989; dessa maneira, a bivocalidade expressada no vídeo contrasta duas visões de homem uma vez já-ditas pela Gillette. Inclusive, não apenas o slogan é lido por este novo narrador, como tanto a imagem quanto o

áudio da propaganda de 1989 são reenunciados. A imagem de “vídeo antigo” e a música-tema do anúncio emolduram o discurso em uma espécie de aspas dentro do vídeo marketing de 2019.

As aspas, ainda de acordo com Rodrigues (2001), ao analisar o artigo jornalístico, delimitam certo distanciamento entre duas vozes.

O distanciamento do autor face às palavras aspeadas no discurso pode apresentar diferentes matizes de sentido, ou seja, indicar diferentes orientações dialógicas, desde uma pequena tomada de distanciamento até uma rejeição total. Mas, apesar dessas diferentes relações com o outro, as aspas mantêm esse outro discurso a uma certa distância, marcando o seu papel também na construção do movimento de desqualificação, de distanciamento no artigo. (RODRIGUES, 2001, p. 201).

Analogamente, no vídeo marketing em pauta, entende-se esse trecho como sendo aspeado, principalmente, levando em consideração a fala que antecede a inserção: Is this the best a man can get?97 (Imagem da propaganda antiga e cena de um grupo perseguindo outro garoto, rompendo com a propaganda de 1989) Is it?98

Nessa parte, é como se o narrador olhasse a cena e apontasse: é isso? Tal pergunta só é feita quando se toma distância do acontecimento, quando há desaprovação.

A partir disso, compreende-se que a Gillette, em 1989, falava a um público, com outros valores e com outras preocupações sociais. A Gillette de 2019 retoma explicitamente o enunciado-ancião e rompe com ele, literalmente.

Essa atualização está atrelada ao público-alvo, isso porque a concepção de masculinidade de 1989 não corresponde ao ideal do homem de 2019. Essa orientação determina a construção da enunciação, uma vez que da parte dela há dependência “do peso sócio-hierárquico do auditório, isto é, do pertencimento de classe dos interlocutores, da sua condição econômica, profissional, posição no serviço (...).” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 189).

97 “Isso é o melhor que um homem pode conquistar?”, tradução da autora. 98 “É isso?”, tradução da autora.

Figura 44 - Rompimento com a voz do enunciado de 1989 (YG04)

Fonte: YouTube (Gillette, 2019)

Amostra desse rompimento, inclusive, é a mudança do slogan: “The Best a Man Can Get” (1989)

“The Best Men Can Be” (2019)

A ênfase do individual (a man99) é deslocada para o coletivo (men100). A Gillette poderia ter optado em manter o individual – The Best a Man Can Be. Porém, pode-se compreender essa escolha a partir da necessidade de uma mudança coletiva de comportamento, e de uma responsabilidade social sobre o problema. Além disso, percebe-se a manutenção da estrutura frasal com o uso do verbo modal “can”, mas com uma alteração significativa do verbo principal – “get” por “be”. “Get” está associado a conquistas, posses, ganhos, etc., enquanto “be” diz respeito ao “ser”; o que até, de certo modo, explica as cenas iniciais do vídeo de 2019 em que os atores estão se olhando no espelho, diferentemente do de 1989 em que a primeira cena é a de um homem recebendo os parabéns de seus amigos por seu casório.

O rompimento está associado também ao interlocutor, ao ouvinte. Sabe-se que, sob uma perspectiva dialógica de linguagem, a construção do enunciado tem como norte um destinatário: “[a] quem se destina o enunciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado.” (BAKHTIN, 1997, p. 301, grifos da autora). Sendo assim, constata-se uma atualização do enunciado da marca Gillette em 2019 ao destinatário do século XXI, em resposta aos movimentos voltados ao público masculino.

99 “um homem”, tradução da autora. 100 “homens”, tradução da autora.

Assumindo o enunciado como “um elo na cadeia da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 1997, p. 299), verifica-se uma reação-resposta ao tema Me too., por parte da empresa, inclusive intercalando esse enunciados referentes ao Me too. no interior da propaganda.

(...) [O] ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta e, nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. (BAKHTIN, 1997, p. 271).

Figura 45 - Trecho da campanha em que noticiários comentam as denúncias envolvendo o movimento "me too."

Fonte: YouTube (Gillette, 2019)

E como enunciado, a campanha da Gillette passará a estar sujeita a respostas e essas respostas a outras respostas, em um ininterrupto fluxo de falas e respostas.

Considerando que a campanha visa um engajamento do público, pode-se dizer que ela opera em bases argumentativas, uma vez que busca atingir o público de modo a despertar uma mudança de comportamento, isto é, persuadi-lo. Sendo assim, é possível empregar as modalidades propostas por Amossy (2018), no que toca à incitação à polêmica, pelo viés do

pathos.

De acordo com Amossy (2018),

[o] sentimento suscitado no auditório não deve ser confundido com aquele que é sentido ou expresso pelo sujeito falante. Também não devemos confundi-lo com aquilo que é designado por um enunciado e que atribui um sentimento a um sujeito humano. (...)

A questão que se coloca é a de saber como uma argumentação pode não expressar, mas suscitar e construir emoções discursivamente. (p. 207).

Logo, procura-se avaliar discursivamente como a emoção é suscitada, e não, abertamente expressa.

Dessa forma, pode-se verificar o casamento entre logos e pathos com lentes argumentativas. Partindo disso e assumindo a polêmica como sendo do campo da argumentação, Amossy (2018) aponta modalidades do discurso polêmico. A primeira diz respeito à emoção propriamente dita; a segunda justifica tal emoção; e, por fim, a terceira recorre a argumentos racionais, fazendo uma crítica velada, camuflando a polêmica.

(...) [E]stamos diante de uma modulação que expõe as possibilidades maiores do vínculo discursivo entre logos [razão] e pathos [emoção]: emoção cuja estrutura argumentativa é dissimulada; emoção explicitamente argumentada; emoção oculta por trás de um raciocínio. (p. 221).

Analisando o vídeo marketing da Gillette (2019), pode-se afirmar que a emoção suscitada é a do senso de responsabilidade. A estrutura da campanha é organizada de modo a ocultar essa emoção por trás de um raciocínio, o qual é desenvolvido com base em clichês, como já mencionado. Amossy (2018) surpreende ao recorrer às figuras de linguagem para delinear os traços da argumentação, além do clichê, a autora também aponta a antítese, a

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