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2 OS CONSTRUTORES DOS OCEANOS E MARES: OS ARTESÃOS DAS

2.4 OS OFICIAIS MECÂNICOS E OS PERIGOS DAS ROTAS MARÍTIMAS:

Os perigos vivenciados nas rotas atlânticas, seja os presentes na própria tripulação das embarcações, a iminência de ataques de corsários e, pior, naufrágios resultantes das mais diversas naturezas, eram justificativas para o encarecimento do crédito aos artesãos que os solicitavam para investir em mercadorias nos poros de destino. Esta certamente era uma condição vivenciada pelos grande comerciantes também, todavia, a capacidade de adquirir crédito dos trabalhadores artesanais deveria ser bem inferior que a dos comerciantes. Mas vejamos alguns casos.

Em 1802 o carpinteiro Teotônio Domingues embarcou em São Luís do Maranhão à serviço no navio Plumbet que levava algodão para Portugal. Não sabemos de onde Teotônio era originário, mas é provável que fosse natural do Brasil e que também já fosse um artífice experiente nas viagens marítimas. Certamente esta viagem acabou sendo uma das mais movimentadas de sua vida. Já muito próximo à entrada da barra do porto de Lisboa, nas proximidades ao Cabo da Roca, o navio Plumbet foi tomado por corsários franceses, que prontamente levaram a embarcação em direção ao norte. Para a sorte dos tripulantes, não demorou muito para que os corsários franceses se deparassem com navios da marinha britânica que retomaram o navio das mãos dos corsários, aparentemente sem prejuízo ao Plumbet. E quando as coisas pareciam resolvidas, como o barco sendo direcionado ao porto de Lisboa, o seu destino, os ingleses cometeram grave erro e acidentaram o navio, encalhando-o na altura de Figueira da Foz, imediações de Coimbra. Mas uma vez os tripulantes se salvaram pois os ingleses conseguiram embarcar toda a tripulação em um dos seus navios, assim também como

grande parte da carga de algodão.65

Pelo trabalho na viagem, foi combinado o soldo de 70$000 com Teotônio Domingos, que acabou não recebendo, haja vista que – como praxe – deveria receber assim que desembarcasse no porto de destino. E justamente por não ter recebido o seu soldo, o carpinteiro resolver entrar com uma ação cível no Juizado da Índia e Mina contra o capitão da embarcação Pedro José de Oliveira. Segundo a argumentação do capitão do navio, como quem o artesão

havia realizado o contrato de trabalho, uma vez ocorrido o naufrágio, ele não tinha a obrigação de pagar a soldada e que mesmo tendo sido recuperado a carga, nada havia recebido. E como o capitão Pedro José era natural da Bahia, acabou se retirando para Salvador antes do fim do processo.66

Mas foi justamente alegando o fato das mercadorias do navio terem sido salvas, que Teotônio Domingos acabou ganhando a causa e recebeu o seu soldo, como podemos observar nos autos do processo:

Diz Teotónio Domingues que ele alcançou sentença de liquidação das soldadas que venceu no navio Plubeta, que era comandante Pedro José de Oliveira, de que é escrivão Cláudio da Costa Pereira, e como o produto do navio, por onde se julgou que o suplicante cobrasse as soldadas, e o lancho se acha na Real Junta de Comércio, são os efeitos passar-se precatório para a dita junta afim de se fazer entrega do julgado.67

Apesar da grande aventura ao qual esteve empregado, o carpinteiro Teotônio acabou chegando a salvo no porto de Lisboa e ainda garantiu o recebimento do seu soldo lançando mão da justiça. O mesmo não pode ser dito ao analisar outras trajetórias que tiveram um final trágico.

Joaquim José Vieira, português, morador do bairro de Santa Izabel de Lisboa, era mestre calafate que, assim como muitos outros artesãos, atuava nas rotas que cruzavam o Atlântico e

o Pacíficoe com os seus trinta anos já poderia ser considerado um artesão experiente no ofício.

Artesãos como ele, mais experientes, eram preferidos principalmente nas viagens mais longas ao Oriente. Assim, em 1805 embarcou no navio São Francisco Xavier com direção ao Oriente, especificamente à Macau. Ao contrário das viagens apresentadas aqui, a do navio São Francisco Xavier acabou tragicamente com um naufrágio na altura do seu destino na China, tendo morrido

todos os tripulantes, e entre eles o calafate Joaquim Vieira.68

No ano seguinte, em 1806, a viúva de Joaquim, Luiza Tereza de Jesus, entrou na justiça

com uma petição para que fosse reconhecida como herdeira do soldo que fora acordado com o seu marido que, tomando como referência outros casos aqui trabalhados, situava-se entre 400$000 e 500$000. Interessante é que Luiza Tereza de Jesus alegou o costume praticado entre os artífices e os capitães ou senhorios dos barcos para receber o soldo do marido, mesmo com

o naufrágio e a morte do artífice.69

Como trabalhamos apenas com os autos de petição e justificação, não sabemos o resultado do processo, mas uma recorrência nesses casos, é participação de outros artífices

66 Idem. 67 Idem.

68 ANTT: PT/TT/JIM/A/0082/00013 69 Idem.

como testemunhas. Na ocasião do referido processo, Luiza Tereza de Jesus contou com o testemunho de dois homens, além dos papeis comprovatórios, para certificar que era casado com o calafate que falecera no naufrágio e para confirmar que o seu marido se empregava constantemente nas viagens marítimas. Os dois homens eram o também mestre calafate Luís Joaquim, morador do bairro de Santa Catarina de Lisboa, de trinta e dois anos e Manoel José

dos Santos, cuja profissão não foi informada e que morava no mesmo bairro Luiza Tereza.70

Tais participações apontam para as redes de solidariedade que envolviam esses trabalhadores cujas funções envolviam os riscos das viagens marítimas, e também as suas famílias. De forma semelhante também identificamos as redes de solidariedade dos oficiais mecânicos

estabelecidos dos centros urbanos, sobretudo os moradores dos arruamentos.71

Estratégia parecida foi realizada por Vitória de Jesus de Macedo. Vitória era casada com Manuel Gonçalves, carpinteiro de navios, que partiu para uma viagem no navio Aniceta no início da década de 1790. A viagem deve ter transcorrido bem até a entrada do navio na barra do Tejo, e tão pertinho do porto de destino o navio acabou naufragando. Não sabemos se toda a tripulação pereceu no naufrágio, mas entre os que morreram estava o carpinteiro; certo é que parte da carga do navio ainda foi salva. Em 1794, Vitória de Jesus requereu de João Dekins, administrador dos bens do proprietário do navio – que também deveria ser o piloto – e aparentemente também faleceu no naufrágio, o pagamento do soldo prometido ao seu esposo, em seu nome e dos seus filhos. Também fazendo valer a força dos costumes que mediavam as relações de trabalho e contratação desses artífices, em 3 de dezembro de 1794 a viúva Vitória

obteve o pagamento do soldo do seu marido requerido na justiça.72

Para finalizar os nossos exemplos acerca dos perigos enfrentados pelos trabalhadores

das embarcações, trazemos o caso do oficial calafateAntónio Lopes Coelho. Ao contrário da

maior parte dos casos analisados aqui, onde são retratados artesãos experimentados nas viagens marítimas, António Coelho estava ainda no início de sua trajetória profissional e ainda buscando se firmar em seu ofício.

Entre o final de 1779 e início de 1780 António Lopes Coelho embarcou no navio Santo

Antônio, conhecido como o Voador, capitaneado por José Francisco, com destino a

Pernambuco. Esta era a segunda viagem a trabalho do artífice e a segunda na mesma

70 Idem.

71 Os arruamentos foram estabelecidos desde a Idade Média em alguns centros urbanos europeus. Tratava-se do ordenamento dos artesãos, de acordo com as suas respectivas profissões, em ruas específicas. Daí o fato de algumas até hoje permanecerem conhecidas por Rua dos Ferreiros, Rua dos sapateiros, dos tanoeiros etc. A vida e o trabalho, lado à ados nesses centros urbanos aprofundava as redes de sociabilidades entres esses trabalhadores. No quinto capítulo voltaremos a discutir esta questão.

embarcação, assim também como o destino. Ao contrário de todos os casos aqui analisados, António embarcou não como oficial calafate do navio, mas como marinheiro; o diferencial é que o seu soldo não seria avaliado de acordo com o seu merecimento, expressão comum aos marinheiros que viajavam sem um pagamento pré-estabelecido, mas sim “ganhando a mesma soldada que ganhavam os que tivessem a sua inteligência” como relatou a testemunha

Domingos Gonçalves Franco, que provavelmente era contramestre do navio Santo Antônio.73

Sobre esta questão podemos apenas conjecturar; para além das necessidades financeiras dessa população pobre, acreditamos que o jovem calafate ainda estava se inserido na rede profissional e por isso ainda não havia realizado uma viagem como o único ou principal calafate da embarcação. E mais, como todos os ofícios exigiam um período de aprendizagem, não é demais pensar que António Lopes Coelho estivesse viajando em companhia de um mestre calafate a aprender as particularidades do seu ofício em viagens marítimas, e até por isso tivesse sido registrado como marinheiro recebendo soldo.

Certo é que na viagem de retorno do porto do Recife para Lisboa, em algum ponto do Atlântico, o jovem calafate foi realizar algum serviço no barco e, pendurado na âncora suspensa do navio, escorregou caindo no mar. Segundo os relatos das testemunhas, apesar da tripulação

ter procurado por ele, António não teria tornado, desaparecendo no oceano.74

António Lopes Coelho era morador em Tougues, distrito da Cidade do Porto, e parece

ter crescido em meio a outros oficiais mecânicos. O seu pai,Domingos Lopes Coelho, não era

artesão, mas o seu irmão mais velho era oficial calafate e foi justamente com ele que aprendeu o ofício. É muito provável que o irmão de António tivesse sido inserido nas atividades como aprendiz do mestre calafate Domingos Gonçalves de França, que no processo tratado por nós, então com quarenta anos, foi testemunha e afirmou conhecer António desde criança, assim como a sua família. Assim, Domingos Coelho não era artífice, mas os seus dois filhos acabaram ingressando na profissão através de um mestre próximo à sua família. No processo ainda

apareceram Manoel Gonçalves e Custódio de Azevedo, ambos também moradores do Bairro de

Santa Catarina do Monte Sinai, na cidade do Porto, que também eram calafates, sendo o último ainda jovem com vinte e três anos e provavelmente ingressou no ofício junto com António. Ou seja, o quadro de testemunhas apresenta parte da rede sócio profissional ao qual António Lopes Coelho estava inserido, artesãos experimentados ou jovens do ofício de calafate, que além de exercerem o mesmo ofício, atuarem nos mesmos espaços quando não estavam viajando,

73 ANTT: PT/TT/CCPP/0015/00008 74 Idem.

também residiam no mesmo bairro. Além dos artífices, testemunharam também no processo

trabalhado, o contramestre e o capitão do navio ao qual o nosso jovem calafate embarcou.75

Em março de 1780 o pai do calafate António resolveu entrar com uma ação cível para habilitar-se como herdeiro do soldo do artífice morto na viagem. Provavelmente naqueles anos Domingos Lopes Coelho morava apenas com o seu filho que acabara de falecer, e era viúvo de Marina da Costa que havia falecido há anos, enquanto o seu outro filho mais velho, também calafate, deveria morar em outra residência. António era solteiro e não tinha filhos, e o seu pai

Domingos conseguiu comprovar ser o “único e miserável herdeiro”.76

Casos como os aqui apresentados nos ajudam a pensar porque os soldos cobrados pelos

artífices que embarcavam e atravessavam os oceanos trabalhando nas embarcações eram superiores aos cobrados em terra firme, assim também como alguns privilégios adquiridos por esses. Passar meses ou anos longe de casa enfrentando uma série de perigos, afastar-se de outras oportunidades profissionais, entre outras situações, requeriam esforços que deveriam ser bem recompensados. E se essas situações faziam, inevitavelmente, parte do cotidiano dos marítimos, os marinheiros, capitães, mestres, pilotos, entre outros que atuavam nas embarcações, elas poderiam ser evitadas pelos artesãos cujas profissões podiam inseri-los em outros espaços mais seguros.