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2 OS CONSTRUTORES DOS OCEANOS E MARES: OS ARTESÃOS DAS

2.5 POR QUE EMBARCAR? NICHOS PROFISSIONAIS, GANHOS E PRIVILÉGIOS

Podemos fechar este capítulo tentando responder a esta questão: por que os artesãos embarcavam, já que tinham outras possibilidades de atuação, até mais dinâmicas? Bom, para além das respostas mais óbvias, como a constatação de que as viagens marítimas efetivamente necessitavam de ao menos um calafate e um carpinteiro nos barcos, é preciso pensar que em quase todos os casos aqui analisados, os artesãos pertenciam a um nicho específico dos ofícios mecânicos.

E como temos dito, nos referimos a nichos sócio profissionais, os espaços de trabalho, moradia e de construção de laços de solidariedade, que acabava por integrar os oficiais mecânicos em torno dos respectivos ofícios. Em alguns casos aqui trabalhado, os artesãos cresceram e aprenderam seus ofícios, junto a familiares ou pessoas próximas, em regiões portuárias, e acabavam por atuar nas ribeiras. Nos portos esses artesãos se especializavam na fabricação e manutenção das embarcações e recebiam convites para atuar durante as viagens

75 Idem. 76 Idem.

que atravessavam os oceanos. Como analisaremos nos capítulos quarto e quinto deste texto, as ribeiras concentravam um grande número de oficias mecânicos e apresentava uma dinâmica social e profissional própria, assim também como hierarquias que eram reconhecidas e estimuladas pela Coroa.

Também podemos visualizar as diversas articulações necessárias para que esses trabalhadores pudessem ser engajados nas viagens marítimas. Certamente precisavam ser reconhecidos e estar próximos aos artífices mais experientes e ou aos que exerciam mais poder na região portuária. Desse modo, podemos pensar que mesmo espalhados pelas diversas coordenadas geográficas inseridas nos espaços de circulação do mundo português, cada carpinteiro ou calafate, estavam diretamente ligados a uma rede de solidariedade e de poder que associava esses trabalhadores especializados. Assim, mesmo estando em Macau, o profissional ainda estava ligado aos outros trabalhadores em Lisboa, Porto ou a outras ribeiras de onde tinha sido inserido na profissão ou onde atuava com mais constância.

Outro aspecto que destacamos foram os soldos pagos e os privilégios aos quais os artesãos poderiam gozar em viagem. Como foi mostrado, em uma viagem relativamente curta entre Lisboa e Pernambuco, o artesão poderia faturar em três ou quatro meses de atuação o correspondente a um ano de trabalho. E mesmo considerando as muitas variáveis, ainda assim consideramos uma atividade lucrativa, uma vez que esses trabalhadores poderiam angariar outros soldos atuando nos portos de destino em outros navios e até no que já trabalhava e ainda uma viagem ao Oriente, com duração de cerca de dois anos, poderia render quase 500$000 ao artífice. E para além dos ganhos diretos com o ofício, os artesãos ainda viajavam como oficiais com direito a cabine própria durante as viagens. E em uma sociedade marcada pelos símbolos, pelos gestos, pela aparência, a distinção já era uma considerável premiação. Ou mais, era o reconhecimento de uma condição diferenciada em relação aos demais marítimos, possibilitada pelo trabalho especializado, era o reconhecimento pelo ofício mecânico, um paradoxo que estará presente por toda a nossa discussão.

Mas os privilégios também traziam ganhos financeiros. Viajar com cabine própria dava direito a carregar consigo mercadorias sem a necessidade de pagar frete, o direito a agasalho, tornando-a mais lucrativa ao seu proprietário. E como vimos, os carpinteiros e calafates das embarcações frequentemente pegavam dinheiro emprestado antes das viagens e investia em mercadorias revendendo-as no caminho ou no porto de origem. Também operavam vendendo o direito de agasalho a outro tripulante ou comerciante. Tais operações garantiam soldos ainda maiores do que os já estabelecidos por esses trabalhadores e seus contratantes antes de partir para a viagens.

Por fim, nos impressionou a capacidade de circulação pelos espaços dos territórios do Império português por parte desses trabalhadores, e os instrumentos de intermediação das relações de trabalho aos quais os artífices se inseriam. Para além das discussões sobre os sistemas políticos e econômicos, a circulação de pessoas é que conferia organicidade aos sistemas, e esses homens que atravessavam mercadorias, ideias, correspondências burocráticas, sonhos, doenças, entre outras coisas, eram fundamentais na materialização do mundo português. Desse modo é que se inseriam as trajetórias dos carpinteiros e calafates que atravessavam os oceanos. E mais estimulante ainda é pensar sobre os códigos que regulavam a atuação desses trabalhadores.

Salientamos aqui a presença de uma linguagem que intermediava o trato dos artesãos desde a contratação do seu trabalho nos portos aos entendimentos desses trabalhadores com os artífices locais. Essa linguagem personalizava os oficiais mecânicos, tantos os que estavam atuando nos barcos quanto os que trabalhavam nas ribeiras, seja na Europa, América, África ou Ásia, permitindo com que houvesse entendimento entre os profissionais, acertando modos de ser e fazer não apenas durante o ato de trabalhar. E vimos aqui o quanto essa linguagem está inserida em um conjunto de regras, aos quais os trabalhadores frequentemente se referiram como costumes, que tornavam completamente inteligível e possível o trabalho artesanal nas embarcações e ribeiras por todo o mundo português. E mesmo quando esses costumes, e linguagens não estivessem institucionalizados, em corporações e irmandades de ofício, por exemplo, eram utilizadas, e com bastante êxito, nos processos cíveis aqui apresentados, demonstrando assim a sua existência e principalmente a sua força.

Assim, mesmo em circulação pelo mundo português, os oficiais mecânicos construíram linguagens e costumes próprios que conferiam sentido, concretude às suas vidas profissionais e lhes permitiram construir e trocar conhecimentos e experiências, assegurar privilégios, garantir lucros e uma condição diferenciada no mundo do trabalho e nas hierarquias sociais.

3 OS ARTESÃOS E OS OFÍCIOS RÉGIOS: A INSERÇÃO NOS MECANISMOS DO