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O conceito de paradigma provavelmente foi mais desenvolvido por Kuhn (1962). O seu conceito refere-se tanto às estruturas de comunicação que produzem uma comunidade de estudiosos com objectivos comuns, bem como às preocupações e os conteúdos desses objectivos, a "matriz disciplinar" e "generalizações simbólicas", que constituem o partilha de compromissos da comunidade. Kuhn argumenta que um paradigma governa, em primeira instância, não assuntos, mas sim um grupo de profissionais. Van de Ven (2005) distingue, pelo menos, quatro diferentes paradigmas que apareceram nos séculos XIX e XX e são concorrentes entre si, seja aberta ou ocultamente. Eles são rotulados de maneira diferente por diferentes autores, mas há semelhanças surpreendentes em que eles defendem um certo valor das orientações do paradigma sobre a educação, com fortes implicações para o conteúdo, para as actividades de ensino e aprendizagem e sobre a legitimidade do ensino de língua. Na discussão pela hegemonia entre paradigmas e grupos paradigmáticos, de um modo geral, o valor das orientações paradigmáticas podem criar fortes pressões sociais, que mais ou menos promovem e apoiam um certo paradigma.

Van de Ven (1987, 1988, 1989, 1996) estudou a história do TEM (Models for

mother-tongue education) na Holanda. Assim, numa perspectiva histórica do ensino da

76 i) o paradigma académico

No século XIX, na escola, o tema "língua materna" ganha uma posição dominante nos currículos do ensino secundário. É, em grande medida, uma disciplina leccionada por grupos de professores com os seus graus académicos tirados nas Universidades e com os seus respectivos estudos em língua e literatura. Desse modo, o ensino da língua materna é definido como nos estudos universitários: "Língua escrita", nomeadamente em termos de gramática e Literatura Canónica. O ensino da escrita, por exemplo, tem em vista a reprodução das normas gramaticais e literárias. A Leitura é ensinada numa abordagem “passo-a-passo”. A abordagem didático-pedagógica é monológica, caracterizada por imitação, memorização e exercícios de completar pequenos "bits" da linguagem. Podemos ver, no presente, o princípio da elementaridade: predominância de pequenos exercícios de funcionamento da língua (análise) que leva, automaticamente, ao controlo de todas as actividades de língua (escrita). O objectivo do ensino é a utilização da língua padrão, a utilização da língua nacional (a língua nacional tem um importante valor em si mesma). O ensino da literatura tanto serve o património cultural nacional como uma moral de sólida socialização. O professor é o perito, que introduz os alunos nas normas da língua escrita, utilizando os métodos baseados em exercícios sobre os pequenos "bits" da linguagem. Em suma, trata-se de um currículo muito fechado.

A nova racionalidade técnica, no século XIX, provocou um forte debate sobre educação. Este debate terminou com um novo e moderno currículo, com novas disciplinas escolares utilitaristas como ciências, línguas modernas e ensino da língua materna. Contudo, o ensino da língua materna permaneceu menos “moderno”- a sua construção mostrou um compromisso com a velha racionalidade, uma vez que se baseou numa longa tradição de escolaridade Latina. Esse ensino foi legitimado em termos de divisão clássica em estudo de língua e literatura. Essa orientação dominante assumiu uma dimensão académica e era caracterizada por uma perspectiva de estabilidade social e representava a velha visão do mundo aristocrata, com as suas absolutas e permanentes normas de "verdadeiro, bom e belo". Podemos perceber este paradigma representado por Brinke (1977) como uma orientação conservadora, caracterizado por Matthijssen

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(1982) como sendo literário-religioso de racionalidade e por Englund (1996) como uma concepção patriarcal de educação.

ii) o paradigma do desenvolvimento

Na primeira década do século XX, promoveu-se um paradigma centrado na criança, fortemente influenciado pelos apoiantes da reforma pedagógica e pelos cientistas modernos, transportando uma investigação empírica sobre a linguagem. Eles sublinharam que a educação deve estimular o desenvolvimento da linguagem usada pelas crianças que vivem e que falam a língua que se apresenta como foco do ensino. A língua deixou de assumir uma vertente de escrita "colectiva", para ser encarada como o domínio do falar de uma individualidade. O ensino da gramática normativa era para ser substituído pelas reflexões descritivas da língua. O ensino da escrita destinava-se à expressão individual no próprio e “autêntico” idioma. O acto de ler, também serviu para o desenvolvimento pessoal. A literatura deixou de ser corporizada por estreitas imitações de um modelo, mas assumiu-se como um modelo de expressão individual. O currículo tornou-se menos fechado. A abordagem pedagógica tornou-se exploratória e criativa, sublinhando o aprender fazendo. O professor era um especialista em pedagogia. Este paradigma foi legitimado por um novo paradigma de estudos linguísticos, nomeadamente o estudo empírico do falar quotidiano, da língua falada, da variação linguística e dos dialectos. Foram também importantes os contributos vindos da psicologia da linguagem.

Estas tendências podem ser vistas como influenciadas pela recém dominante racionalidade técnica. Existe uma forte ligação, tanto nos estudos de língua e literatura, com o sucesso das ciências naturais com ênfase no seu empirismo e positivismo. A perspectiva social é uma perspectiva de mudança, de subir a escala social através dos próprios méritos individuais. O ensino da língua materna ainda serve o património cultural, mas também serve o progresso social. Afinal, não é mais uma relíquia de uma aristocracia, mas representa uma nova perspectiva meritocrática. É, em grande parte, McNeil's (1977) que fala numa perspectiva “humanista”, mas também Matthijssen fala da racionalidade tecnocrática, porque neste paradigma a ênfase estabelece-se sobre a individualidade do aluno.

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Durante o século XX, até este paradigma do desenvolvimento perdeu a sua posição dominante devido àqueles académicos que defendiam o ensino da "norma". O velho paradigma académico dominou novamente o debate sobre o ensino da língua materna. É preciso compreender esta nova posição dominante no contexto de crise económica e social, em que a sociedade acusava o ensino de não cumprir a sua “santa” função. Também se deve considerar a crescente massificação do ensino e o acesso ao ensino de crianças de nível socioeconómico diversificados. Tal realidade também leva, em grande parte, a Europa Ocidental a assumir novas perspectivas em que as funções mais utilitaristas do ensino da língua materna são expressas - tais como a utilização de textos considerados de referência para desenvolver a competência de leitura e de escrita, em vez de textos "literários".

iii) O paradigma comunicativo

Nos anos 60 e 70, promoveu-se um novo paradigma, conhecido na Europa Ocidental como o paradigma "comunicativo". Este paradigma destacou uma perspectiva com dupla face em relação à língua: a língua, acima de tudo, é a comunicação e as crianças devem aprender a comunicar para cumprirem a sua função na sociedade. Mas a língua acarreta, também, uma visão detalhada da sociedade e, assim, é potenciadora da emancipação. Este paradigma centra-se na sociedade e caracteriza-se por apresentar uma visão bastante aberta do seu currículo pedagógico-didáctico e a sua abordagem é dialógica, dando espaço para a experiência e para os conhecimentos dos alunos e dando- lhes oportunidades para "negociar" os conteúdos escolares e as suas próprias necessidades.

No paradigma comunicativo, a abordagem baseia-se em competências. Aprender a ler e a escrever baseia-se no uso da linguagem em situações da vida real. O ensino de acordo com competências é legitimado quando as crianças parecem não necessitar de alguma competência de formação, quando o seu uso linguístico mostra alguns aspectos problemáticos. Para os estudantes, a reflexão sobre a língua torna-se muito importante. Os alunos aprendem como a língua é utilizada através da sua manipulação. Os alunos aprendem a escrever uma vasta gama de diferentes tipos de textos, utilizando a escrita para compreender a sua própria individualidade e também o mundo. A leitura deve-se

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basear não só na leitura de livros escolares, mas também nos textos escritos pelos próprios estudantes. No ensino da leitura de textos, não só se deve ter em conta a formação de leitores competentes, mas deve-se dar atenção, também, ao conteúdo dos textos, traduzindo, com a frequência, uma visão do mundo. A literatura também serve tanto o desenvolvimento individual dos alunos como a sua compreensão da sociedade. A oralidade é novamente importante. O professor é o que cria situações comunicativas, que estimula o uso da língua e não pode, apenas, centrar a sua prática nos livros didácticos.

O paradigma comunicativo deve ser visto no contexto de uma crescente perspectiva sociológica referente ao ensino de língua e literatura (como a sociolinguística e a sociologia da literatura). É claro que o paradigma comunicativo representado por McNeil apresenta uma perspectiva social reconstrucionista, Matthijssen apresenta-nos a racionalidade comunicativa, Eglund a concepção democrática da educação e Brinke a perspectiva emancipatória da educação.

No paradigma comunicativo existe uma forte ênfase na emancipação (das crianças que até então não tiveram oportunidades de aceder à educação: crianças da classe trabalhadora, crianças que falam dialectos de certas regiões, as crianças pertencentes a minorias étnicas). A igualdade social é vista como um objectivo da educação. Ao mesmo tempo, ainda vigora uma perspectiva meritocrática: a educação deve ensinar as crianças a comunicar de forma tão eficiente quanto possível na sua vida diária como adultos. Também deve proporcionar um aumento da frequência e dos anos de escolaridade, com normas cada vez mais complexas, porque as sociedades precisam de cidadãos competentes. Este paradigma, por sua vez, conduz a uma perspectiva mais utilitária sobre o ensino da língua.

iv) o paradigma utilitário

Na década de 80, o carácter meritocrático do paradigma comunicativo ganhou a batalha da hegemonia sobre o aspecto emancipatório. A longo prazo, a já existente perspectiva utilitarista relativa ao ensino tornou-se dominante. Apoiada por aqueles que questionavam as capacidades linguísticas, apoiada, sobretudo (ainda que não exclusivamente), pela ala direita de políticos e por novas instituições cujos principais

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interesses são o desenvolvimento de estudos sobre a língua, de estudos psicométricos para o ensino da língua, e na implementação de testes e exames nacionais, verificou-se que uma perspectiva utilitarista do ensino da língua materna dominava as discussões, representando claramente a racionalidade técnica. Englund vê, na Suécia, na última década do século XX, “a restauração tradicional de educação”, o que representa a acepção de uma racionalidade técnica.

A língua ainda é vista como a comunicação, mas actualmente a perspectiva comunicativa é muito restrita, em comparação com a dos anos 60. A comunicação é, essencialmente, definida como o domínio "transaccional" do uso da língua. Os alunos devem ser educados para uma futura contribuição na sociedade e para o desenvolvimento da mesma, em especial no respeitante ao domínio do progresso económico. O currículo apresenta-se, novamente, mais fechado. Este paradigma combina uma abordagem baseada em mais conhecimentos perspectivados, também, no ensino e aprendizagem da “linguagem como um todo”, de modo que a aquisição das competências leva o aluno a ler e escrever eficazmente uma variedade de textos. A abordagem pedagógico/didáctica também é, mais do que antes, mais normativa, monológica. Dominam as normas gramaticais e os padrões derivados da comunicação transaccional. Principalmente os textos para serem lidos e para serem escritos representam paradigmas da comunicação transaccional. A ficção, a criatividade exploratória dos textos são menos importantes. O ensino da literatura é valorizado em termos de património nacional, onde a discussão abrange os textos canónicos mas auto- evidentes, em que o seu estudo, na escola, é mais conduzido para a apreciação.

Este paradigma surge num contexto neoliberal de "reforma" e numa abordagem de "nononsenso” relativamente aos problemas sociais. Pode haver um elemento de emancipação neste paradigma – as crianças imigrantes, por exemplo, podem obter melhores hipóteses, só porque a economia precisa deles. Permanece, no entanto, muita discussão sobre o aspecto multi-étnico da sociedade ocidental e do papel da cultura nacional no ensino da língua materna.

v) Paradigma sócio-interaccionista (interaccionismo sócio-discursivo)

A abordagem sócio-interaccionista concebe a aprendizagem como um fenómeno que se realiza na interacção com o outro. A aprendizagem acontece por meio da

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internalização, a partir de um processo anterior, de troca, que possui uma dimensão colectiva. Segundo Vigotsky, a aprendizagem deflagra vários processos internos de desenvolvimento mental, que tomam corpo somente quando o sujeito interage com objectos e sujeitos em cooperação. Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento. O conceito de interacção com o qual trabalha o sócio-interacionismo não é um conceito amplo e apenas opinativo, mas significa, no âmbito do processo de aprendizagem, especificamente, afectação mútua, uma dinâmica onde a acção ou o discurso do outro causam modificações na forma de pensar e agir, interferindo no modo como a elaboração e a apropriação do conhecimento se consolidarão. As proposições do sócio-interacionismo podem ser consideradas absolutamente compatíveis com as exigências das novas formas de relação com o conhecimento, em função do carácter relacional dessa proposta. O conhecimento deixa de ser consumido, assimilado passivamente e passa a ser produto de processos de elaboração e construção. O sócio-interaccionismo de Vigotsky, surge na abordagem do indivíduo como sujeito do processo de aprendizagem, que não pode ser fragmentado, que deve ser compreendido na sua totalidade, organismo biológico e social, integrante de um contexto sócio-histórico que é parcialmente local, parcialmente planetário.

Em suma, pode-se concluir que o(s) paradigma(s) dominante(s) no domínio do ensino de língua depende(m) de vários factores, alguns externos à própria escola, mas que operam mudanças, criam tensões, apropriações e (re)configurações no processo de ensino e aprendizagem. Por outro lado, temos os próprios programas escolares que, como discursos oficiais, (re)configuram e (re)contextualizam as práticas dos professores, orientando-as e indicando-lhes o que é legítimo estudar num dado período temporal. Do mesmo modo, não nos podemos esquecer dos domínios, dimensões, instrumentos e recursos que exercem uma influência poderosa sobre a prática dos docentes. Procedemos, também, a uma sistematização dos paradigmas que podem funcionar como organizadores de práticas e concepções que podem ser reconhecidas no campo do ensino das línguas. Ora, estes são os princípios em que assenta este trabalho, que procurará, através da análise dos discursos dos docentes, pela método da entrevista, aceder às concepções que dizem respeito ao ensino de língua, logo, indicadoras da prevalência de determinado(s) paradigma(s). No capítulo seguinte, traçam-se as

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coordenadas do estudo empírico, apresentam-se os instrumentos escolhidos, o seu processo de construção e os participantes na investigação, isto é, descreve-se como o trabalho de investigação foi conduzido para tratar os objectivos propostos.

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CAPÍTULO III

COORDENADAS DO ESTUDO EMPÍRICO

Este capítulo trata da caracterização da pesquisa, envolvendo o modo de investigação, o objecto de análise, os objectivos do estudo, o corpus do estudo e a sua operacionalização e as técnicas utilizadas para recolha e análise de dados.