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Os participantes do processo de interpretação constitucional

CAPITULO II FERRAMENTAS DA TEORIA CONSTITUCIONAL

4 A COMUNIDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES DA CONSTITUIÇÃO: a

4.2 Os participantes do processo de interpretação constitucional

A investigação sobre os participantes do processo de interpretação é conseqüência do conceito republicano de interpretação aberta que deve ser considerada como objetivo da interpretação constitucional. Uma teoria constitucional que se concebe como ciência da experiência deve estar em condições de explicitar os grupos concretos de pessoas e os fatores que formam o espaço público, o tipo de

392

Ibid., p.12.

393Häberle retira a expressão “sociedade aberta” da obra de Karl Popper intitulada “A Sociedade

Aberta e seus Antípodas” Cf. POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. 3. ed. São Paulo: Itatiaia, 1987. t.1.

394

HÄBERLE, op. cit., p. 12-13.

395 Ibid., p. 12-13. 396 Ibid., p. 15. 397 Ibid., p. 17.

realidade de que se cuida, a forma como ela atua no tempo, as possibilidades e necessidades existentes.398

Häberle afirma, sem prejuízo da precedência que atribui à jurisdição constitucional – até porque reconhece que a ela compete dar a última palavra sobre a interpretação –, que devem ser reconhecidos como igualmente legitimados a interpretar a constituição os seguintes indivíduos e grupos sociais:399

a) o recorrente e o recorrido, no recurso constitucional, como agentes que justificam a sua pretensão e obrigam o tribunal constitucional a tomar uma posição ou a assumir um diálogo jurídico;

b) outros participantes do processo, que têm direito de manifestação ou de integração à lide, ou que são convocados, eventualmente, pela própria corte;

c) os órgãos e entidades estatais, assim como os funcionários públicos, agentes políticos ou não, na suas esferas de decisão;

d) os pareceristas ou experts;

e) os peritos e representantes de interesses, que atuam nos tribunais; f) os partidos políticos e frações parlamentares, no processo de escolha

dos juízes das cortes constitucionais; g) os grupos de pressão organizados;

398

Ibid., p. 19.

399

Omar Serva Maciel, ao abordar em um texto de sua lavra quem são os intérpretes da constituição na obra Hermenêutica Constitucional, de Häberle, traça as seguintes considerações críticas, cuja transcrição literal reproduzo: “A propósito, permitimo-nos a seguinte crítica pontual ao raciocínio de HÄBERLE. É que este prestigiado Autor aparentemente retira do seu rol de intérpretes (idem, p. 20- 23) a maioria silenciosa, representativa da comunidade como um todo, e que também vive a constituição. Poder-se-ia abonar esse esquecimento caso se retenham as considerações preliminares (ibidem, p. 19) encarecidas pelo próprio Häberle a respeito da mencionada catalogação, no sentido de que o método empregado no seu discurso e os conceitos que o informam se ressentem de uma definitividade, como que justificando, por corolário, a natureza in fieri da classificação realizada. Igualmente, conjectura-se que o respeitável publicista alemão purga-se da mencionada omissão ao afirmar que a “interpretação constitucional é, todavia, uma „atividade‟ que, potencialmente, diz respeito a todos” (ibidem, p. 24). De qualquer modo, é de se causar espécie que essa exclusão tenha recaído numa categoria que desempenha papel tão importante no concerto pluralístico da contemporaneidade. Conquanto marginalizada pelo processo de exclusão socioeconômica, essa massa disforme e inorganizada compõe um pano de fundo decisivo para a construção dos canais de comunicação constitucionais que necessariamente haverão de existir em uma sociedade aberta de intérpretes. Aliás, precisamente por que pretende ser incluído no alvo das políticas redistributivistas - até para que não restem desacreditadas as promessas que soem serem feitas no âmbito das Constituições Dirigentes, tais como “erradicação da pobreza”, “eqüitativa distribuição de renda”, “solidariedade social”, “dignidade da pessoa humana” e etc. -, esse “oceano de esquecidos” deve se fazer ouvir, posto que atua (e é essa a parcela de cidadania pró-ativa que lhe cabe), quando nada, como um inconsciente coletivo hermenêutico”. MACIEL, Omar Serva. A interpretação pluralista de

Peter Häberle como contributo à democratização do processo constitucional. Disponível em:

<https://redeagu.agu.gov.br/UnidadesAGU/CEAGU/revista/Ano_IV_marco_2004/Omar%2020A%20int erpretacao%20pluralista.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2006.

h) os requerentes ou partes nos procedimentos administrativos de caráter participativo;

i) a mídia, em geral, imprensa, rádio e televisão;

j) a opinião pública democrática e pluralista, e o processo político; k) os partidos políticos fora do seu âmbito de atuação organizada; l) as escolas da comunidade e as associações de pais;

m) as igrejas e as organizações religiosas;

n) os jornalistas, professores, cientistas e artistas;

o) a doutrina constitucional, por sua própria atuação e por tematizar a participação de outras forças produtoras de interpretação.

Atesta Häberle que até pouco tempo imperava a idéia de que o processo de interpretação constitucional estava reduzido aos órgãos estatais ou aos participantes diretos do processo. Todavia, a interpretação constitucional é uma atividade que diz respeito a todos, já que a conformação da realidade da constituição torna-se também parte da interpretação das normas constitucionais pertinentes a essa realidade.400 Também nas funções estatais, reforça ele, não se pode perder de vista as pessoas concretas, os parlamentares, os funcionários públicos, os juízes.401

No mesmo sentido é a afirmação feita por Inocêncio Mártires Coelho, segundo a qual num estado de direito a leitura da constituição deve ser feita “em voz alta e à luz do dia”, no âmbito de um processo verdadeiramente público e republicano, do qual participem os diversos atores sociais, agentes políticos ou não, pois todos os membros da sociedade, e não apenas os dirigentes, fundamentam na constituição os seus direitos e obrigações.402

Em Häberle, a interpretação é um processo aberto. A ampliação do círculo dos intérpretes é apenas uma conseqüência da necessidade de integração da realidade ao processo de interpretação.403 O juiz interpreta a constituição na esfera pública e na realidade. Essas influências que ele recebe não podem ser

400

HÄBERLE, op. cit., p. 23-25.

401

Ibid., p. 23-25.

402

COELHO, 2001, passim.

403

vistas apenas como ameaça à sua independência, mas também como parte da sua legitimação, evitando o livre arbítrio da interpretação judicial.404

Assim, se de um lado não se deseja em uma sociedade aberta o isolamento do juiz em sua torre de marfim, inacessível aos cidadãos, alheio à realidade que o circunda, de outro, não se permite um juiz que julgue apenas de acordo com a vontade da maioria. Como assevera Ferrajoli, em um estado constitucional e democrático de direito a legitimidade do juiz não deriva da vontade da maioria, mas da defesa dos direitos fundamentais do cidadão contra qualquer maioria405. O papel que o juiz exerce no estado constitucional é, portanto, um papel contramajoritário.

Do ponto de vista teorético-constitucional a legitimação das forças pluralistas da sociedade para participar da interpretação constitucional reside no fato de que essas forças representam um pedaço da publicidade e da realidade da constituição.406 Numa sociedade aberta, reforça Häberle, a democracia se desenvolve também por meio de refinadas formas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana, especialmente mediante a realização dos direitos fundamentais. A democracia desenvolve-se mediante a controvérsia sobre alternativas, possibilidades e necessidades da realidade e, também, no “concerto” científico sobre questões constitucionais.407

Nessa perspectiva, a democracia deve ser vista como o domínio do cidadão e não do povo, no sentido rosseauniano do termo. A democracia do cidadão é mais realista do que a democracia popular. Assim, é a liberdade fundamental – pluralismo – e não “o povo” que se converte em ponto de referência para a constituição democrática. A sociedade é livre e aberta na medida em que se amplia o círculo dos intérpretes da constituição em sentido amplo.408 Segundo Omar Maciel,

A lucidez da abordagem feita por HÄBERLE radica no fato de que o conceito “povo” refere-se a uma dessas expressões “gordas” que podem ser facilmente manipuláveis, as mais das vezes pelas maiorias eventuais, descomprometidas com um sentimento de pertença e com a abolição de toda sorte de exclusões ou discriminações.409

404

Uma possível objeção poderia ser a de que, dependendo da forma como seja praticada, a interpretação constitucional pode dissolver-se num grande número de interpretações e de intérpretes. Porém, uma vinculação limitada à constituição corresponde a uma legitimação igualmente mais restrita. Ibid., p. 29-32.

405

FERRAJOLI, 2001, passim.

406

HÄBERLE, op. cit. p. 33.

407

Ibid., p. 36-37.

408

Ibid., p. 38-40.

409

Friedrich Müller, no mesmo sentido, afirma que o núcleo da democracia está ancorado na idéia de uma determinação normativa do tipo de convívio de um povo pelo próprio povo. Segundo ele, diante da impossibilidade material do autogoverno, ambiciona-se ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base no debate amplo e aberto entre opiniões e interesses, com alternativas palpáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político.410