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B. Nossa pesquisa diante da bibliografia

III.1 Os pioneiros na transição neoliberal

A conjuntura em que a ideologia neoliberal se difunde no Brasil é marcada pela crise do Estado desenvolvimentista. O cenário dos anos 1970, com abundância de crédito para o setor privado, taxas de crescimento constantes e retomada da industrialização, reverteu–se no final da década. A partir daí se configurou – impulsionada pela elevação das taxas de juros internacionais, pela recessão da economia mundial, deterioração das finanças públicas e interrupção do financiamento externo – uma severa crise do balanço de pagamentos, o que levou os governos da década de 80 ao controle das importações, justamente na contramão das idéias e receitas neoliberais ditadas pelas agências internacionais. Com o crédito externo dificultado e sem

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reservas nacionais para fazer frente à recessão, menos capacidade teve o Estado de retomar a política desenvolvimentista. Os resultados deste processo foram o recuo das taxas de crescimento e a disparada da inflação (Fiori, 1995). Como último recurso para retomar a política desenvolvimentista, os governos instituíram planos "heterodoxos" de estabilização que, fracassados, fomentaram, além do retorno da inflação, resistências ainda maiores ao modelo intervencionista208.

Os sucessivos fracassos dos planos de estabilização contribuíram para que crescesse na mídia, entre os políticos e, em certa medida, entre os trabalhadores uma crítica, mais ou menos difusa, à "incompetência econômica" e à "incapacidade administrativa" não apenas dos governos, mas do próprio Estado. Se somarmos o descrédito com a capacidade "administrativa" do Estado em controlar a inflação aos escândalos de corrupção no setor financeiro, na previdência social e na política, pode–se indagar se não estariam dadas, na conjuntura dos anos de 1980, algumas condições para a disseminação da crítica neoliberal ao padrão vigente de intervenção do Estado na economia.

É provável que este cenário de reticência para com as políticas intervencionistas e de descrença com a retomada do crescimento econômico só não foi mais "substantivo" porque, durante o período Constituinte, os debates sobre a necessária intervenção, social e econômica, do Estado ganharam novo fôlego.

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A difusão do pensamento econômico liberal não se restringe à conjuntura de crise do Estado desenvolvimentista. A crítica à intervenção do Estado na economia e a defesa da liberdade de mercado têm sido periodicamente clamadas por frações da burguesia, tanto quanto por alguns acadêmicos e políticos, entre os quais tiveram destaque Eugênio Gudin, Roberto Campos, José Merquior, Delfim Neto, entre outros. Segundo Fiori (1995), desde os anos de 1940, o pensamento conservador vinha repondo a cada crise econômica ou política a necessidade de desestatização da economia e da sociedade brasileira. A campanha anti-estatizante, desencadeada por setores do empresariado brasileiro em 1976, foi um exemplo (Cruz, 1997).

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A Constituinte polarizou os interesses das classes e frações na medida em que definiria a conformação das relações de poder da sociedade brasileira. No campo das classes dominantes, as frações da burguesia, cuja tendência dominante era o apoio à democratização política, passavam a exigir abertura econômica e redução do papel do Estado na economia. No campo das classes dominadas, além da redemocratização, alguns segmentos de trabalhadores organizados lutavam pela constitucionalização dos direitos trabalhistas e sociais. Se utilizarmos a metáfora direita X esquerda, o quadro na Constituinte seria, grosso modo, o seguinte. Para os setores à esquerda, tratava–se de "pagar a conta social", herdada da ditadura, e avançar na universalização dos direitos dos trabalhadores – o que seria possível, apenas, com ampliação do intervencionismo estatal e com desenvolvimento econômico. Para os setores à direita, tratava–se de preservar os pilares da ordem econômica; de um lado, garantir a livre iniciativa e a definição do direito de propriedade e, de outro, enfrentar o avanço político e social dos trabalhadores organizados209.

No front de batalha, porém, tais setores não se manifestavam em bloco, não havia unidade em torno de projetos políticos predefinidos e as disputas entre as frações da burguesia e entre elas e os representantes dos partidos de esquerda eram intensas (Lima, 2002; Dreifuss, 1989). Notadamente, processa–se, na fase de votação, a formação de uma articulação à direita, conhecida como "Centrão", cuja unidade política poderia ser definida pela defesa dos interesses das frações do grande capital210. O "Centrão" passou a direcionar e a representar, em particular

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Na "Subcomissão de princípios gerais, intervenção do Estado, regime da propriedade do solo e atividade econômica", os setores à esquerda defendiam o capital nacional e maior intervenção do Estado na economia, enquanto a articulação à direita defendia os princípios neoliberais: "a limitação da intervenção do Estado na economia ao carácter estrito de excepcionalidade e à abertura para o capital estrangeiro a partir de conceitos amplos, como por exemplo, o de empresa nacional" (Cf. Lima, 2002). 210

O "Centrão" era composto por constituintes do PMDB, PFL, PL, PDC, PTB, PSC e PDS, além de cinco deputados do PDT. Surgira de um manifesto pela mudança no regimento interno da Assembléia

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nos capítulos referentes aos direitos trabalhistas (que discutiam a regulamentação das relações de trabalho) e à ordem econômica (abertura econômica e desestatização), os interesses neoliberais. Formou–se então uma frente conservadora dentro da Constituinte, frente que encontrou o apoio, político e financeiro, de organizações representativas dos interesses do grande capital como a FIESP, Associação Comercial do Estado de São Paulo, da Confederação das Associações comerciais, Sociedade Rural Brasileira, Federação da agricultura de São Paulo, do Instituto Liberal (Gros, 2002), entre outras, mas encontrou também um importante aliado político no interior do movimento sindical: o "sindicalismo de resultados".

Na conjuntura que antecede as eleições para o Congresso Constituinte se disseminam, através de associações de classe e de outras instituições, os preceitos do neoliberalismo entre setores da burguesia brasileira. Além das associações patronais oficiais como a FIESP211, foram atuantes a Câmara de Estudos e Debates Sócio–Econômicos (CEDES), o Instituto Liberal (IL), a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), A União Brasileira de Empresários (UB) e a União Democrática Ruralista (UDR) (Cf Dreifuss, 1989)212. A principal estratégia destas instituições era fazer propaganda neoliberal (defesa das teses desestatizantes, fundamentalmente) e eleger o maior número possível de representantes para o Congresso

Nacional Constituinte. Participaram do agrupamento político 319 congressistas, cujo objetivo era tentar conter, diminuir ou extirpar do futuro texto constitucional as poucas conquistas populares aprovadas nas fases anteriores. Liderado pelos deputados José Bonifácio de Andrada e Roberto Cardoso Alves, o grupo pretendia liquidar as propostas de estabilidade no emprego, da jornada de trabalho de 40 horas e da nacionalização da distribuição do petróleo (Cf. Lima, 2002).

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A revitalização das entidades corporativas patronais foi outra estratégia da burguesia brasileira para disseminar e propor reformas inspiradas no ideário neoliberal. A FIESP, por exemplo, ao longo da década de 80, passa a propor uma série de reformas de caráter neoliberal. Para uma análise das propostas da FIESP, ver Galvão (2003).

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Deve–se destacar também a criação do PSDB em julho de 1988, partido que, como sabemos, assumiria o governo a partir de 1995 e que implementaria de forma sistemática o programa político neoliberal no Brasil.

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Nacional, em 1986. Criadas no "calor da hora", a CEDES, a CNF e a UB viram naquele momento a oportunidade histórica de promulgar uma "carta liberal". A CEDES, cujo principal líder e mentor era Delfim Neto, tinha como objetivo "unir o empresariado no sentido de demonstrar que o neoliberalismo não é um capitalismo selvagem, um criador de miséria, mas uma alavanca de desenvolvimento social" (apud Dreifuss, 1989: 52). A principal estratégia da CEDES era fomentar campanhas de candidatos identificados com as teses neoliberais e formar, durante a Constituinte, um bloco parlamentar identificado com a tese de que era preciso "conter a ação econômica do Estado" (Dreifuss, 1989: 53). Num dos encontros organizados pela instituição foram sistematizadas as seguintes recomendações aos empresários: "abertura ao exterior, na forma de incremento das exportações e atração de capitais estrangeiros; abandono da excessiva proteção contra as importações; redução do déficit orçamentário e redução do papel do Estado, além da 'desregulamentação' da economia, como meios de promover um desenvolvimento sustentado"213. A Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) foi outra instituição criada no preâmbulo da Constituinte por representantes do capital financeiro. A CNF tinha como objetivo assegurar diretrizes (leis) que atendessem aos interesses do setor e que reduzissem a presença da máquina estatal na economia, avançando, se possível, no processo de privatização. A UB, criada em 1986, a partir de esforços da CNI e com apoio de outras seis confederações, teve, como as demais instituições, o objetivo de apoiar – na impossibilidade de se fazer representar através de um partido totalmente identificado com as idéias liberais – quaisquer candidatos que defendessem a livre iniciativa.

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Num dos eventos mais importantes organizados pelo CEDES, com a presença de mais de uma centena de expressivas lideranças empresariais, o então ministro–chefe do gabinete civil, Marco Maciel, resumia a preocupação com a Constituinte: "Não dá para tirar uma linha do que será a Constituinte, nem se uma proposta liberal será tendência majoritária" (apud Dreifuss, 1989: 53–54). Mas alertava que as eleições para o Congresso constituinte seriam mais importantes que para a Presidência da República.

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Se o empresariado procurou criar algumas instituições no "calor da hora", um legítimo

think tank neoliberal já vinha assumindo, desde o início da década de 80, o papel de difusor do

neoliberalismo. O Instituto Liberal (IL) tinha um objetivo mais ambicioso do que alcançar apenas o empresariado brasileiro; pretendia disseminar a doutrina liberal, em especial os preceitos da Escola Austríaca de Economia, entre os formadores de opinião – jornalistas, universitários, políticos, militares, juristas e intelectuais em geral –, bem como formular estudos e propostas de políticas públicas de cunho neoliberal214. Criado em 1983, com sede no Rio de Janeiro, o IL conheceu seu maior desenvolvimento durante a Constituinte quando se transformou em uma rede de institutos espalhados por vários estados brasileiros215. Segundo o diretor do IL do Rio de Janeiro, à Constituição caberia a função específica de assegurar a

"liberdade de mercado, isto é, a de garantir a ausência de coerção entre os agentes econômicos; e que ao mercado, ao livre intercâmbio dos particulares, caberia a solução dos problemas econômicos do País, restando ao Estado a responsabilidade pela manutenção da ordem concorrencial e a administração dos problemas que legitimamente lhe cabem resolver numa organização econômica liberal" (apud Gros, 2002: 201).

Entre as propostas feitas pelo IL, ganha especial destaque a de "flexibilização da legislação trabalhista". As partes contratantes devem negociar as condições de trabalho sem interferências, especialmente do Estado. Quando isso não ocorre, os próprios cidadãos acabam arcando com as perversas consequências da excessiva intervenção, isto é, com o desemprego e

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Entre as estratégias de ação do Instituto Liberal uma chamou nossa atenção. O IL fez algumas investidas no meio sindical através da realização de cursos de formação de lideranças promovidos em convênio com o Instituto Cultural do Trabalho (Cf. Gros, 2002).

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Em junho de 1987, apoiou o Manifesto pela liberdade empresarial, bem como a campanha do empresariado gaúcho pela conquista de assinaturas para a formalização de uma proposta de emenda popular contra a aprovação da estabilidade, da redução da jornada de trabalho e do direito irrestrito de greve no texto da nova Constituição. Neste período, o IL atuou junto ao "Centrão" com o objetivo de garantir a formulação de uma Constituição alicerçada nos seguintes princípios: a) supremacia do indivíduo sobre a sociedade, b) liberdade econômica que os indivíduos devem ter para perseguir a satisfação de seus desejos e necessidades individuais através de um mercado livre, e c) papel meramente garantidor da ordem e da justiça que o Estado deve desempenhar.

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com o pagamento de serviços que não usufruem. Com este princípios em pauta, os estudos publicados pelo IL enfatizavam a necessidade de "liberar" os trabalhadores dos entraves trabalhistas que dificultavam o livre jogo do mercado, provocavam desemprego e aumento da informalidade.

Se a legislação trabalhista herdada dos anos 30 já era alvo de severas críticas, quando algumas das propostas trabalhistas foram aprovadas pela Comissão de Sistematização, os membros do IL se agitaram. Aprofundaram–se as pressões sobre os membros do "Centrão" e foram amplificadas as críticas à Constituição, que corria o risco de, segundo o ex–presidente do IL de São Paulo, se tornar "utópica", "demagógica", "corporativista", "socialista", "estatizante", "paternalista", "assistencialista", "fiscalista", "recessiva" e "xenófoba". É, pois, neste quadro que entra em cena o "sindicalismo de resultados".