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OS PRIMEIROS RELATOS E A APRECIAÇÃO DOS RELIGIOSOS DA QUESTÃO INDÍGENA

Ainda que para alguns militares ou navegantes coubesse a incumbência de registrar as primeiras observações sobre o espaço e os habitantes do Novo Mundo, caberia aos religiosos serem os verdadeiros principiantes a realizar um rigoroso estudo das terras e principalmente dos naturais. A nova e imprevisível realidade surgia justamente quando a mentalidade europeia debatia-se entre uma Idade Média que deixaria marcas na campanha militar que se seguiu à descoberta, e uma Era moderna que deixava para trás a velha concepção teocêntrica e passava a questionar, como já observamos, as particularidades do homem fora do férreo controle do imaginário imposto pela igreja desde os primeiros momentos desta Idade Média. Sem levantar muita expectativa e muito menos muita polêmica, as primeiras notícias trazidas por Colombo sobre as terras descobertas foram recebidas na Europa com um misto de estranheza e de exotismo. Índios, papagaios e algumas matérias-primas não foram suficientes para acender a chama; os intelectuais europeus ainda demoraram algumas décadas para encontrar algo digno de ser estudado naquelas terras ignotas.

Assim, não se encontrou inicialmente muito atrativo espiritual nem científico naquele, segundo diziam alguns, paraíso terreal. Porém, a paulatina chegada de matérias-primas que inundavam os mercados europeus durante os anos seguintes mudou radicalmente essa primeira imagem da terra que foi entregue pelo Papa à Coroa de Castela e Aragão. O rigoroso controle nas fronteiras no Novo Mundo por parte da Coroa espanhola limitou em muito a percepção que o restos dos países europeus teria daquelas terras. Os rumos da literatura colonial desses primeiros séculos foram ditados pela mão de aqueles que, a serviço dos interesses dos monarcas espanhóis, tiveram a sorte ou a desgraça de fincar seus pés sobre o território.

Mas, se por um lado os primeiros relatos dos pioneiros estavam mais focados na descrição da terra, em suas prováveis riquezas e na facilidade com que os indígenas aceitariam a palavra de Deus, muitos dos textos redigidos pelos religiosos mostraram, desde

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os primeiros momentos, a sincera preocupação com o tratamento que deveria ser dado aos nativos. Os relatos dos soldados, escritos no fragor da batalha ou posteriormente, tinham outros interesses: para alguns, deveriam mostrar as possíveis estratégias de ataque; para outros, o objetivo da narração era emular as aventuras lidas tantas vezes em livros como o Amadis de Gaula, e serem eles os protagonistas. Finalmente, para muitos soldados escritores a finalidade era reivindicar um reconhecimento por seus corajosos feitos ou reclamar por direitos justamente ganhos e nunca recebidos. Dessa maneira, a literatura colonial passou por uma série de fases, de acordo com os diferentes interesses dos conquistadores, colonizadores e evangelizadores.

A primeira dessas fases foi a conhecida como literatura informativa, que teve como protagonistas os diferentes navegantes que alcançaram a costa americana nos últimos anos do século XV e nos primeiros do XVI. Pertencem também a essa fase os textos redigidos por religiosos que trazem as primeiras denúncias contra os abusos cometidos aos indígenas. São freqüentemente cartas ou informes com destino à Coroa espanhola. Posteriormente, acompanhando as campanhas, surgiram relatos da denominada conquista militar: um conjunto de textos redigidos por alguns dos que participaram dos diferentes combates para ocupar a terra dos indígenas. Quase simultaneamente, apareceram os textos referentes à conquista espiritual, os quais tiveram nos religiosos seus principais protagonistas. Numa última fase dentro do período colonial, estão os escritos pertencentes à chamada conquista intelectual ou natural das Índias. Entre os autores dessa literatura, incluem-se alguns dos integrantes da fase anterior e cronistas oficiais da Coroa, como Gonzalo Fernández de Oviedo ou Jose de Acosta.

A difícil convivência entre os europeus e seus anfitriões, revelada já nos primeiros momentos, provocou, como já observamos, as primeiras queixas por parte dos religiosos aos seus superiores, a Coroa espanhola. A literatura epistolar ou informativa foi a encarregada de plasmar as denúncias de uma situação que, com o passar do tempo, convertera-se em um dos mais graves problemas do processo de colonização.

Muitos dos pormenores desta controversa etapa nos são conhecidos pelos registros epistolares e demais documentos como informes, memoriais, etc. que tanto conventos quanto bibliotecas ou arquivos têm até hoje guardados muitas vezes na sombra.

Do dominicano Bartolomé de las Casas até Francisco de Vitoria, passando por uma longa lista de nomes, entre os quais destacam-se outras figuras tão relevantes como Jerónimo de Mendieta, Gines de Sepulveda ou o incansável religioso franciscano Frei Bernardino de Sahagún, todos eles indagaram sobre a natureza dos indígenas, a pertinência ou não da

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conquista, e posteriormente da chamada guerra justa e da necessária redução das diferentes comunidades nativas. Acima de tudo, a principal questão foi, sem dúvida, como se deveriam estabelecer as futuras relações entre os dois mundos que agora se encontravam.

Cabe, talvez, neste ponto de reflexão, considerar aspectos que muitas vezes não são tratados com a devida atenção nos estudos sobre a América Colonial; o primeiro é derivado da impressão causada pela leitura de religiosos que intentaram ver nesse Novo Mundo a possibilidade de um regresso a um modelo da igreja dos primeiros cristãos, e das consequências derivadas do retorno a ideais que a Idade Média havia sepultado. Com tal objetivo, esses religiosos aprofundaram-se nos possíveis paralelismos entre a nova igreja desejada e a realidade daquele mundo indígena que pretendiam evangelizar.

Porém, examinado por outra perspectiva talvez menos cristã, e aqui se abre uma nova fonte de pesquisa que, pelo explícito recorte temático desta tese não cabe indagar nele; o empenho dos religiosos, ao menos dos mais teóricos, pode ser entendido como o componente de uma estratégia de se enxergar o Novo Mundo diante do desconhecimento; um tático distanciamento provocado pela falta de compreensão das culturas locais e, principalmente, de sua complexa cosmogonia. Essa perspectiva não é compartilhada pelo autor desta tese. A aproximação aos cultos locais, fosse através de analogias, comparações ou assimilações, não deixa de ser um meio de superar o desconhecimento. O estudo das culturas locais não deixa dúvidas desse empenho na hora de entender a cultura dos naturais, ainda que tal empenho fosse, como diz Bernardino de Sahagún, para diagnosticar o mal antes de receitar o remédio.

Apesar do comprometimento mostrado na hora de estudar essas culturas, seus costumes e crenças, os religiosos nunca alcançaram uma grande compreensão do mundo indígena, o qual foi muitas vezes estudado, como no caso do citado Bernardino de Sahagún, como uma forma de erradicar a heresia dos indígenas, e não como uma visão antropológica. Ainda assim, séculos mais tarde, os textos deixados pelos religiosos podem ser considerados um impressionante legado para o estudo da organização social das sociedades indígenas. Muitos dos conhecimentos que temos hoje sobre as culturas pré-hispânicas do Novo Mundo não seriam possíveis sem a consulta aos documentos redigidos naquela época.

Que sirva de exemplo o caso exemplar do ambivalente religioso Frei Diego de Landa, que, após ter se destruído, num grande Auto de Fé, grande parte dos códices Maias, posteriormente investigou a cultura desta civilização e deixou-nos um legado que abriu as portas aos futuros estudos sobre a cultura desse povo mesoamericano. Processos parecidos

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ocorreram com Bernardino de Sahagún ou Juan de Betanzos, em relação às culturas Nahua ou Inca, respectivamente.

Como se tem visto em inúmeras ocasiões ao longo da história da humanidade, é mais fácil impor uma nova cultura do que tentar entender as tradições locais e assimilá-las dentro da nova ordem. Assim uma cultura perece ou é assimilada, ao menos em parte, pelo invasor que freqüentemente aproveita os alicerces desta para dar forma a um novo modo de entendimento. Processo similar aconteceu nos territórios da Nova Espanha após a entrada das tropas cortesianas na capital Mexica; porém, como já observado, o encontro das duas culturas produziu-se de um modo diferente e suscitou o debate sobre os direitos dos naturais, bem como o interesse pelo estudo das culturas locais.

Resulta inegável que esse interesse pelo homem americano, ao menos nas primeiras décadas, é incentivado pelo súbito interesse do humanismo, chegado ao Novo Mundo pela mão dos religiosos; trata-se do estudo da própria natureza do homem e da procura pelo conhecimento que o período histórico suscitou no mundo intelectual europeu.

A adequação da cultura ocidental e principalmente do pensamento cristão no Novo Mundo foi, para a Espanha, uma árdua tarefa. Isso decorreu, como visto e conforme será mais detalhado adiante, da dificuldade de conciliação entre a cultura local e a estrangeira. A tentativa de acomodação levada a cabo principalmente pelos religiosos leva-nos a contemplar outro aspecto, que não deixa de ser uma conseqüência direta de algo já mencionado, mas ainda assim um novo elemento a ser considerado: o controvertido poder das ordens mendicantes no Novo Mundo no decorrer do século XVI.

A inclusão do indígena nas reflexões mileneristas, escatológicas ou apocalípticas nas quais os religiosos debruçaram-se ao longo do século XVI era uma voz de mão única. Questionava-se a forma de vida dos indígenas, suas crenças e seu futuro, mas, salvo muito raras exceções, eles não eram consultados sobre o que pensavam a respeito de tais assuntos. Nas poucas consultas realizadas através dos famosos questionários de Sahagún, por exemplo, o peso da cultura então dominante era demasiado sufocante para que se tratasse de um verdadeiro diálogo. Foi assim nos colóquios estabelecidos entre os franciscanos e os senhores principais pouco depois da chegada dos membros do famoso grupo dos doze. Sobre esses Colóquios voltaremos a discutir na segunda parte desta tese.

Segundo Otavio Paz (1971, p.53), a situação de órfão do indígena após a queda de sua cultura e de seus deuses favoreceu a implantação do novo modelo religioso, mas nunca

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suplantou totalmente o mundo pré-hispânico que, durante décadas, conviveu junto ao pensamento cristão imposto pelos espanhóis de modo forçado.

Diante de um mundo que se acaba diante de deuses que os haviam abandonado e diante da brutalidade dos soldados espanhóis, não eram muitas as alternativas que sobravam para aqueles que tinham sobrevivido às doenças e ao trabalho forçado imposto pelas encomendas.

Entre as alternativas mais drásticas perpetradas pelos indígenas estavam o suicídio, o aborto dos filhos ou a morte destes logo após o nascimento. A perspectiva de conviver com o mesmo povo que os escravizava e violentava provocava esse tipo de atitudes dramáticas.

Porém, se para alguns a solução estava na auto-imolação, para muitos outros a alternativa que restou foi a conversão – em alguns casos forçada, em outros por comodismo – e a, em menor proporção, sincera aceitação dos princípios cristãos que agora se lhes eram apresentados como a única fé verdadeira.

Muitas vezes, a igreja estudou o assunto indígena a partir de uma perspectiva antropológica, como no caso de Sahagún; como já discutido, tratou-se mais de um meio de atingir o mal para poder vencê-lo do que de uma aproximação natural, aproximação que talvez tivesse estimulado uma convivência tolerante com os naturais e suas crenças.

Quem quiser indagar sobre como realmente se deram as relações entre os dois mundos, terá que ir além das comparações de ordem teórica e comparatista, e procurar uma visão mais prática e realista a partir dos muitos documentos que alcançaram nossos dias sobre o verdadeiro impacto da chegada dos espanhóis ao Novo Mundo, muitos deles ainda por serem descobertos e paleografados. Talvez, encontremos algo nas entrelinhas desses documentos redigidos já durante o período da colônia, textos como o Popol Vuh, dos maias, ou os relatos de autores indígenas convertidos ao cristianismo como, Muñoz Camargo e Hernandez de Alvarado. Em todos esses textos, com maior ou menor empenho, seus autores tentaram resgatar através de marcas textuais implícitas, antes que fosse perdida sua cultura ancestral, uma imagem o mais nítida possível de um modo de ver o mundo que se diluía diante do ímpeto avassalador da cultura já dominante.

Muitas vezes, textos como a Historia eclesiástica indiana de Mendieta, ou o Livro das

profecias de Cristóvão Colombo parecem-nos aquilo que Phelan denominou de volta forçada

(1972, p.), ou seja, a necessidade de interpretar, de modo favorável, a realidade mística americana. Uma reinvenção benéfica para os interesses de uns e outros.

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Se para Colombo a releitura particular das profecias era proveitosa para enaltecer sua figura num momento extremamente difícil para ele, para Mendieta e para os franciscanos pró- indios – como denomina Phelan a um dos dois grupos antagônicos criados no entorno dos membros da ordem de São Francisco na Nova Espanha –, o rocambolesco exercício de hermenêutica cristã no Novo Mundo parece ter sido também benéfico para ajudar a Ordem num momento em que a decadência das ordens mendicantes era cada vez mais evidente. Tal declínio fica constatado no tom de algumas das cartas enviadas por membros da ordem à Coroa espanhola a partir da segunda metade do século XVI.

Segundo Phelan, a crise das ordens mendicantes chegará ao seu ponto álgido com a promulgação da cédula papal de 1583, que limitava o poder destas.

El golpe decisivo fue la cédula de 1583. El clero regular recibió tratamiento preferente en cuanto a nombramientos para beneficios. A medida que aumentaba la presión exterior contra los privilegios mendicantes, las discusiones internas se intensificaron. Para fines del siglo los frailes tenían sólo dos alternativas – retirarse pacíficamente a sus monasterios o transferir su entusiasmo misionero a las fronteras coloniales entre los indios menos civilizados. (PHELAN, 1972, p.83)

Anteriormente, a partir de 1560, como lembra o mesmo autor (p.87), os próprios franciscanos se dividiram entre a facção pró-índia e a anti-índia. Mendieta, juntamente com Frei Miguel Navarro, foi um dos principais protagonistas do primeiro grupo. Outro personagem ilustre que fez parte do grupo foi o estudioso Frei Bernardino de Sahagún, que depois de anos dedicados à pesquisa dos costumes indígenas, teve seu trabalho dificultado pela intervenção de outro grupo em conflito. Segundo Phelan, o texto de Mendieta seria, em muitos parágrafos, uma argumentação histórica do grupo que representava.

Aunque Mendieta recibió en 1573 órdenes de sus superiores en España de escribir la historia de los Franciscanos, la Historia eclesiástica es – por lo menos en parte – la argumentación histórica desde el punto de vista del partido proindio. La esencia de esta justificación era adaptar las tradiciones del misticismo franciscano, el apocaliptismo Joaquinita y el culto a la pobreza apostólica a la situación de la Nueva España.

Una de los propósitos de La Historia era el de convencer a todos los frailes de que la única esperanza de preservar la porción general de sus privilegios estaba en volverse a consagrar a la pobreza apostólica. […] Tácticamente esto era necesario, porque todos esos frailes que explotaban a los indios por ventajas temporales sólo proporcionaban a los obispos seculares la prueba para desacreditar las órdenes mendicantes en general. (PHELAN, 1972, p.87)

Podemos pensar assim: como em muitos casos, as interpretações místicas da realidade americana e a transposição quase sempre forçada da tradição cristã ao Novo Mundo foram

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motivadas por múltiplos interesses que nem sempre guardavam uma relação intrínseca com o mundo indígena.

É por essa razão que ao refletir sobre a vinculação dos religiosos com as populações indígenas devemos ter em conta os vários fatores que estavam em jogo, além da questão contextual que, como discutido aqui, é de vital importância para entender satisfatoriamente o desenvolvimento daquele momento histórico. Por um lado, o referencial teórico criado dentro dos moldes da utopia cristã, muito em voga naquele tempo, serviu para justificar a presença e as ações das diferentes ordens religiosas no Novo Mundo; referencial que, como observa Phelan, responde mais a um propósito ligado ao poder e à necessidade de assegurar a permanência destas do que à própria missão evangelizadora.

Por outro lado, a partir de um ponto de vista mais prático, houve o labor empreendido por uma série de religiosos que tentaram cumprir, com um trabalho de campo mais objetivo, apesar das muitas vicissitudes, sua missão evangelizadora da melhor maneira possível e dentro de um processo previamente organizado que os levou a colocar em prática ações como o estudo das culturas locais, a aproximação das crianças devido à dificuldade em tratar direitamente com os adultos etc.

Considerando esses dois aspectos, pode-se dividir o labor dos religiosos no Novo Mundo em dois tipos: primeiro, aqueles que, na tentativa de aproximar as duas sociedades e de realmente criar uma Nova Espanha, como Fray Jerônimo de Mendieta, procuraram, como já visto, encontrar um paralelismo entre as sagradas escrituras, a igreja dos primeiros cristãos e o processo de evangelização e colonização do Novo Mundo, e, baseando-se nisso deram um suporto teórico, às vezes um tanto forçado, à presença dos espanhóis e principalmente dos religiosos naquelas terras; segundo, os que, a partir de um ponto de vista mais prático, estudaram os costumes indígenas e conviveram diariamente com os nativos na tentativa de conciliar duas realidades aparentemente irreconciliáveis e abrir espaço para a criação de um Novo Mundo em que tanto uns como outros pudessem se adequar. Porém, quando nos referimos à literatura epistolar esta divisão não pode ser aplicada do mesmo modo; o Mendieta teórico e idealista da Historia Eclesiástica Indiana difere muito do Mendieta prático e objetivo que revela através de seu epistolário. A partir dessa divisão entre o realismo e o idealismo, serão também observados os diferentes textos que compõem o corpo da pesquisa.

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2ª Parte

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CAPÍTULO 1