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3 A HEGEMONIA DO AGRONEGÓCIO

3.4 Imprensa e ficção: discurso e representação estética do sucesso do

3.4.2 Os Reis do Gado: o agronegócio das novelas

No campo da ficção, no Brasil, o grande destaque é para as novelas como um canal privilegiado para a constituição de um imaginário comum na sociedade. Por isso, a aposta em debater temas da conjuntura nacional, da realidade urbana, entre outros, quase sempre esteja presente. O mundo rural não é exceção, seja nas tramas mais históricas, mas também nas mais atuais, pautando temas que dizem muitas vezes respeito ao modelo de desenvolvimento e projeto de país. A tática da inserção de propaganda ideológica na trama das novelas não é nova e tem se mostrado eficaz, pois

[...] diferentemente do caráter formal dos telejornais, em que a forma notícia supostamente retrata questões da realidade, com a pretensa finalidade de informar a população, no caso da ficção a propaganda ideológica é diluída na trama narrativa, pegando os telespectadores no momento em que se encontram desarmados dos filtros críticos que possam ter ao assistirem aos telejornais. (VILLAS BÔAS, 2008, p. 2).

Um exemplo foi o caso de “A Favorita”, do chamado “horário nobre”, onde era feita a defesa das empresas de celulose. Novamente, aqui os mecanismos são diversos: harmonização dos conflitos, estereótipos, invisibilização dos sujeitos coletivos e dos processos de luta, estão entre os mais comuns. Para Villas Bôas:

Um dos focos de conflito da trama é a resistência que um personagem oferece para vender suas terras para a empresa [de celulose], que já comprara todas as terras ao redor de sua propriedade, pois pretende estender o monocultivo de eucalipto, visando ao fornecimento de madeira para a produção de papel. É um dos personagens mais estereotipados da trama, que ‘vive no mundo da lua’. [...] Em ‘A favorita’, nenhum sujeito político coletivo, nenhum movimento social que se contrapõe com frequência, e de diversas formas, à prática predatória das empresas de celulose apareceu. Pelo que sugere a trama, ser contra o progresso garantido pelo avanço da empresa seria, no mínimo, um ato romântico e idealista, ou ‘coisa de louco’. A tática de combate por meio da ficção implica a supressão do ponto de vista das classes populares, por meio de seus movimentos organizados. (VILLAS BÔAS, 2008, p. 2).

O tema do “rural” entra assim na pauta da ficção também como um tema que pode atrair audiências. Cansado das novelas sobre a realidade urbana, cuja dureza já é vivida pela maioria da população no dia a dia, o público tende a preferir tramas que o remetam para um espaço para o qual ainda sonham poder um dia retornar, mesmo que apenas para descansar da loucura da vida citadina. Mesmo tomado pelas grandes plantações, o campo das novelas sempre tem comida em cima do fogão a lenha, rede na área e ar puro que se acredita respirar através das memórias de um tempo passado próximo, mas distante, que era sofrido, mas que se acredita ter sido de muita felicidade. É ainda um sintoma de país que não há muito tempo deixou de ser um país agrário para se tornar um país com uma população vivendo maioritariamente nos centros urbanos.

Foi também um sucesso de público a reprise, mesmo sendo no horário da tarde, de “O Rei do Gado”, novela “onde a luta pela reforma agrária foi o mote do inverossímil enredo dramático que teve na trama um romance entre uma sem terra e um latifundiário” (VILLAS BÔAS, 2008, p.02). Quando foi exibida pela primeira vez em 1996, a novela também teve uma grande audiência e “por mais dramática e manipulada que fosse aquela trama, ela cumpriu o papel de divulgar amplamente a luta pela reforma agrária e os movimentos sociais que levantam essa bandeira, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)” (VILLAS BÔAS, 2008, p.02), indo assim no sentido oposto à ideologia defendida pela

emissora. Parece que, em 2015, dar novamente espaço para a bandeira da reforma agrária na ficção, não constitui mais um problema. A emissora que, nos últimos anos, do ponto de vista jornalístico sistematicamente omite as ações dos movimentos sociais, em especial do MST, parece ter querido deixar uma mensagem: de que a luta pela reforma agrária, mesmo que ainda “aqueça corações”, é definitivamente coisa do passado, embora o campo seja coisa do presente. Qual campo?

Em setembro de 2015, a Globo anunciou que iria alterar a ordem das próximas novelas das 21hs, dando prioridade a “Velho Chico”, uma trama “rural” de Benedito Ruy Barbosa, mesmo autor de “O Rei do Gado”, em torno da transposição do Rio São Francisco, mas tendo como pano de fundo o amor impossível entre membros de duas famílias de fazendeiros rivais. Parece que a velha fórmula foi recuperada – inclusive o ator cotado para ser protagonista é Antônio Fagundes, o próprio Rei do Gado - na tentativa de voltar a trazer para o horário nobre uma audiência que as últimas novelas “urbanas” não conseguiram. Não deixam de ser curiosos os argumentos que circulam na mídia sobre o porquê da troca das novelas:

[...] a Globo decidiu adiar a produção de Sagrada Família (nome provisório) [...]. Oficialmente, a novela perdeu a vez porque sua trama central gira em torno de uma família de políticos, e a emissora poderia ter problemas com as restrições da legislação brasileira durante a campanha eleitoral de 2016. Extraoficialmente, um outro motivo para o adiamento de Sagrada Família foi a busca de tramas menos focadas na realidade nacional. (CASTRO, 2015).

A mesma matéria conclui:

Apesar de se basear em um Romeu e Julieta do campo, Velho Chico não será uma novela alienada da realidade nacional. A trama abordará questões ecológicas e econômicas, como a transposição do rio São Francisco, e terá confrontos entre jovens que lutam contra a poluição do rio e políticos corruptos. A trama central começará em 1968 e seguirá até os dias atuais, com um amor impossível entre a filha de um coronel e o filho de um capataz. (CASTRO, 2015).

A novela está prevista para começar em março e terminar em outubro depois das eleições municipais de 2016, para que depois dessa venha uma novela em que possa falar de política, quando já não haverá restrições eleitorais. Segundo o diretor de dramaturgia diária da Globo, Sílvio de Abreu, "A novela da Maria Adelaide é muito boa e traz uma trama política que poderia ficar prejudicada por causa das eleições do ano que vem. Como o Brasil tem uma legislação eleitoral muito rígida, a partir do início de junho teríamos que eliminar essa trama da novela, porque entraríamos no período em que não se pode falar de política.” (RICCO, 2015).

A Globo troca uma novela onde iria falar de políticos corruptos, provavelmente gravada em um grande centro, como Rio, São Paulo ou alguma outra capital, para ir para o

nordeste, região que tem o maior número de municípios comparando com as outras regiões. A trama da novela é deslocada para as pequenas cidades do interior onde mais (em quantidade) se estará dando a disputa eleitoral, fazendo a relação mais direta entre os problemas locais e sua resolução, ou não, pela política municipal.

Além disso, é a região onde a Presidenta Dilma teve mais votos, e que desde 2002, tem sido fundamental para as vitórias do PT. Mas também é uma das regiões onde o agronegócio está apostando fortemente, em especial na nova região de fronteira agrícola, o MAPITOBA, que engloba parte dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia. O “Reino das Fazendas Corporativas”, como denominou Xico Graziano (2013), é já o responsável de mais de 10% da produção nacional de soja, além de outras culturas para exportação como laranja, milho e algodão. A própria transposição do Rio São Francisco se insere dentro de uma lógica de expansão do agronegócio na região, em especial as monoculturas extensivas que necessitam de muita água, como é o caso, por exemplo, da produção de frutas e de camarão, e também por isso tem sido alvo de muita polêmica.

Para não falar da relação histórica dos coronéis com a política local e nacional, parece que nada mais político do que uma novela rodada neste cenário e com uma trama como a que foi anunciada. Ainda assim, o autor prefere descrever a sua novela como uma história de amor que, no máximo, se permitirá abordar as mazelas sociais e o abandono das populações ribeirinhas,

‘Com essa história, eu retomo uma discussão muito importante que é a relação do homem com a terra. E, nesse momento em que vemos tantos problemas com os nossos recursos naturais, acho importante abordar esse tema. Mas, antes de tudo, Velho Chico é uma história de amor. Cheia dos desencontros e paixões que movimentam todas as histórias de amor. Falaremos do amor dos ribeirinhos pelo São Francisco, seus encantamentos, sua beleza arrebatadora e comovente, mas também de suas mazelas sociais, seu abandono. É uma história que merece ser contada de mãos dadas com o Brasil real, suas fantasias, seus sonhos e uma imensa emoção. É nisso que eu acredito’, explica Benedito. (‘VELHO..., 2015).

O cidadão/consumidor que ainda não teve seu horário de trabalho flexibilizado e chega em casa no final da tarde, terá certamente a oportunidade de receber direta ou indiretamente informações e imagens relacionadas com a vida no meio rural e, consequentemente, nos dias de hoje, sobre a cadeia do agronegócio, seja via jornalismo, novelas ou publicidade, num discurso unificado de sucesso.

A substituição do espaço público pelo espaço da visibilidade televisiva, cujo poder de transmissão de imagens vem abarcando parcelas cada vez mais amplas da vida, consolidou uma espécie de ficção totalitária que articula jornalismo, entretenimento e publicidade numa mesma sequência ininterrupta de imagens. (KEHL, 2004, p. 156).