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Capítulo 2. Pressupostos Teóricos

2.1 Os sambaquis e o histórico de suas pesquisas

Sambaquis são sítios arqueológicos observados em quase toda a costa brasileira,

apresentando maiores concentrações em ambientes estuarinos e lagunares. Existem

registros de sua implantação desde o litoral do Rio Grande do Sul até a costa paraense.

Muitos desses sítios foram totalmente destruídos pela extração de conchas utilizadas na

construção de antigos centros urbanos como São Francisco do Sul, Santos, São Vicente,

Rio de Janeiro e Salvador, ou mesmo aterrados e engolidos pela expansão dos municípios

costeiros (Gaspar 2000).

Geralmente possuem formato monticular de base arredondada, mas podem

apresentar-se em formato cônico, semilunar, achatado ou alongado. O tamanho sofre

variações importantes, alguns com menos de um metro de altura e poucos metros quadrados

de área, até imensos morros com trinta metros de altura e quatrocentos metros de

comprimento (Andrade Lima 2000; Gaspar 2000). Alguns sambaquis se apresentam quase

que exclusivamente compostos por conchas, outros, contém sedimento associado a elas,

existindo ainda, sítios monticulares e litorâneos formados majoritariamente por sedimento

com lentes de conchas esparsas, causando, neste caso, dubiedade por parte de alguns

autores a respeito de sua classificação como sambaquis (Prous 1992; Gaspar 2000). Nesses

montes de conchas podemos encontrar vestígios de atividade humana, tais quais restos

alimentares caracterizados por ossos de peixes, mamíferos, aves, anfíbios, crustáceos e

répteis. Em muitos deles são encontrados resquícios de antigas fogueiras e instrumentos

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feitos em matérias-primas diversas como ossos, conchas e pedras, além de material residual

de lascamento para confecção ou reavivagem desses artefatos (Gaspar 2000). Boa parte

desses sítios apresenta sepultamentos humanos, os quais, às vezes são acompanhados de

muita comida, machados em pedra polida, colares de contas feitos em osso, dentes ou

conchas, compondo complexos arranjos funerários.

Fig.7- Exemplos de sambaquis de diferentes tamanhos encontrados na área de estudo, em primeiro plano temos o pequeno Santa Marta IX e ao fundo, podemos ver o grande Santa Marta III.

Alguns sítios conchíferos podem também ser encontrados mais para o interior, nas

margens de rios, tais quais o Amazonas, o Itajaí e o Ribeira de Iguape e alguns de seus

afluentes, apresentando semelhanças composicionais com os sambaquis litorâneos. No

entanto, alguns autores advogam uma origem distinta dos grupos litorâneos para estes

sítios. Aterros com presença de grande quantidade de conchas podem ser encontrados

também no Pantanal do Mato Grosso do Sul, Jorge Eremites de Oliveira (2004) descreve

diferentes tipos de aterros com alturas e tamanhos variados, os interpretando como

originários de distintos grupos, inclusive com datações recuadas. O aterro MS-CP-22

localizado na margem direita do Rio Paraguai apresenta datas calibradas de mais de 8.000

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anos AP, demonstrando que a ação de construir montes de conchas não é exclusiva das

populações do litoral.

Quanto à função destes sítios, pesquisas realizadas em vários sambaquis discutem

que sua utilização estaria relacionada a múltiplos papéis. Alguns pesquisadores relatam ter

encontrado estruturas que indicam a utilização de alguns desses sítios arqueológicos como

áreas de moradia. Um dos exemplos mais marcantes pode ser encontrado no trabalho de

Márcia Barbosa, Maria Dulce Gaspar e Débora Rocha Barbosa (Barbosa, Gaspar &

Barbosa 1994) sobre o sambaqui Ilha da Boa Vista I, localizado no município de Cabo Frio,

no litoral norte do estado do Rio de Janeiro. As autoras propõem um entendimento da

organização espacial das estruturas habitacionais através de uma análise da distribuição dos

artefatos dentro do concheiro. Dividindo a área do sambaqui em três partes, centro, entorno

e periferia, percebeu-se que a área central apresentava uma grande gama de vestígios

interpretados como indicadores de atividades cotidianas, como restos alimentares,

fogueiras, estruturas de habitação e maior quantidade de artefatos. Em contrapartida, as

áreas periféricas apresentavam manchas de fogueira sem restos faunísticos ou artefatos.

A análise da distribuição espacial dos artefatos líticos, divididos em sete tipos

básicos: Almofariz, Alisador, Batedor, Seixo com Canaleta, Lâmina de Machado, Seixo

com Ranhura e Quebra Coquinho, comprovou maior ocorrência destes na região central do

casqueiro, colaborando para a premissa de que ali se davam as atividades cotidianas, sendo

assim interpretadas como área de habitação.

Em Santa Catarina, escavações realizadas no sambaqui Jabuticabeira II,

demonstraram que o seu processo construtivo estaria relacionado às práticas funerárias

(Klökler 2000; DeBlasis et al 1998, 2004 e 2007). As estruturas de combustão e a

distribuição dos artefatos estariam dispostos de modo relacionado às áreas de sepultamento.

A fauna encontrada em grande quantidade faria parte do acompanhamento funerário e de

eventos ligados a memória dos ancestrais, indicando que esse sítio arqueológico fora

construído e utilizado como cemitério e local de atividades ligadas ao culto aos

antepassados ( Fish et al 1998).

Os sambaquis enquanto objetos de pesquisa há muito são estudados dentro da

arqueologia brasileira. Já durante o período imperial, D. Pedro II patrocinava estudos

relacionados aos concheiros. Recentemente Ferreira & Noelli (2007) publicaram um artigo

sobre os trabalhos do pesquisador Richard Francis Burton, com traduções de textos

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produzidos entre os anos de 1866 e 1874, demonstrando o longevo interesse de cientistas

estrangeiros sobre os sambaquis brasileiros.

A questão que norteou as primeiras pesquisas tinha relação com a origem desses

grandes amontoados de conchas. Alguns cientistas acreditavam que os sambaquis seriam

resultado de deposição natural, formados por bancos de moluscos marinhos como os que

são encontrados em diversas regiões costeiras do Brasil. Outra vertente acreditava numa

ação antrópica para construção desses sítios, que seriam resultado do acúmulo dos restos

alimentares de populações pré-históricas. E por fim, uma terceira linha de pesquisa

defendia uma origem mista, concebendo-os como fruto de trabalhos humanos sobre

concheiros de formação natural (Andrade Lima 2000; Gaspar 2000).

Trabalhos de escavação foram realizados durante boa parte do século XX,

principalmente na sua segunda metade, período caracterizado por transformações teóricas e

metodológicas na abordagem do tema. Uma vez caracterizada a origem antrópica destes

sítios, o olhar se volta ao entendimento do modo de vida de seus construtores. Acreditava-

se que a costa brasileira fora povoada por populações coletoras de moluscos, pouco

numerosas e de hábitos nômades, que eventualmente acampavam próximos à costa e

descartavam todo seu lixo em lugares definidos. Com o passar do tempo e das várias

reocupações, esses acúmulos tomariam a dimensão de verdadeiras montanhas de descarte.

As seguidas ocupações e abandonos dos sítios explicariam a diversidade de camadas

estratigráficas (Prous 1992; Gaspar 2000).

Na contramão desses paradigmas, as pesquisas de Paulo Duarte (1968) já atentavam

para a intencionalidade na construção de sítios concheiros, segundo o autor, esses poderiam

ser interpretados como cemitérios pré-históricos, contrariando a visão então em voga de

montículos de descarte.

Nas últimas décadas avanços na interpretação destes sítios foram adquiridos por

meio de análises sistemáticas dos vestígios. Pesquisas realizadas por zooarqueólogos

(Figuti 1992; Klökler 2000) demonstraram, qualificando e quantificando a fauna

encontrada nos sítios, que essas populações teriam sua alimentação baseada principalmente

na pesca, sendo a coleta de moluscos um complemento alimentar. Além disso, hipóteses de

baixa mobilidade foram suportadas pela análise de isótopos e colágeno em estudo realizado

por De Masi (1999) em sambaquis da Ilha de Santa Catarina, constatando que esses grupos

se alimentavam com recursos captados em diferentes épocas do ano, ocupando de modo

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permanente sítios centrais durante todas as estações, colocando em cheque o modelo

vigente de nomadismo.

No início da década de 1990 trabalhos na bacia do Rio Una, litoral norte do Rio de

Janeiro (Gaspar 1991), lançaram novas luzes ao debate, apresentando uma análise integrada

de conjuntos de sambaquis e seu contexto ambiental. A autora propõe que grupos

populacionais articulados, ocupavam um mesmo território e dividiam áreas de pesca, caça e

coleta, em detrimento do nomadismo marcado por pequenos grupos de grande mobilidade

territorial. A autora retoma com maior vigor a questão da intencionalidade na construção

desses concheiros que seriam “resultado de um orquestrado trabalho social” (Gaspar 2000:

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conchas não se deve somente ao descarte alimentar, mas também é entendido como

material construtivo (Gaspar & DeBlasis 1992; Afonso & DeBlasis 1994).