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2. Um “intelectual orgânico” da extrema-esquerda: Daniel Bensaïd ou o primado da

2.4. Os sombrios anos 1980: entre política e profissão

Membro da direção da LCR, no final dos anos 1970, Bensaïd continuou a se engajar na defesa da herança leninista-revolucionária a partir dos novos desafios que emergiram com os debates no âmbito da esquerda política e intelectual. Além da crítica aos reformistas “stalinistas” ou “eurocomunistas”, Bensaïd se dedicou, no fim da década, à “desconstrução” dos novos discursos sobre a autogestão proferidos sobretudo pela CFDT e pelas correntes em torno de Michel Rocard no PSU e, depois, no PS. Desde o final da década de 1970, Bensaïd buscou revelar como os discursos em defesa da autogestão, deslocados de toda perspectiva de classe, quer dizer, de todo projeto de transformação revolucionária da sociedade, acabavam na maior parte dos casos recaindo em uma forma de reformismo cuja valorização da vitalidade da “sociedade civil” seria apenas um primeiro passo na direção da adesão às políticas neoliberais – através de uma utopia tecnocrática e modernizadora, na qual a austeridade orçamentária era compreendida como uma necessidade para a retomada da competitividade. É nessa perspectiva que ele publicou, em 1980, o livro L’anti-Rocard ou les haillons de l’utopie, no qual analisa, na esteira de alguns dos seus textos precedentes, as condições de possibilidade a partir das quais o discurso “autogestionário” de Michel Rocard e de uma parte da CFDT convergiam com alguns dos principais dogmas neoliberais, em mais uma demonstração da capacidade do sistema de se apropriar de elementos que, até outrora, formavam parte dos ideais antagônicos.

Em um contexto caracterizado pelo refluxo das lutas sociais e políticas do movimento operário, as proposições em torno da autogestão, da parte de Michel Rocard e seus congêneres, articulando-se à aceitação do liberalismo político e da democracia formal e, assim, permanecendo dentro dos limites estreitos da ordem capitalista, acabavam por favorecer o discurso neoliberal, pronto a aceitar pequenas bolhas de “autogestão” ou, o que é mais nítido, de “associativismo”. “Em período de austeridade e de reorganização internacional do

capitalismo, o encorajamento das práticas associativas constitui, portanto, o verso esquerdo da ideologia neoliberal”353. Na contramão deste “parlamentarismo autogestionário”, Daniel

Bensaïd opõe a “autogestão socialista”, no quadro da luta pela hegemonia proletária354.

Ao longo dos anos 1980, em seguida ao recuo das lutas sociais e política na Europa, Daniel Bensaïd foi designado pela direção da IV Internacional para seguir de perto o processo de construção do Partido dos Trabalhadores no Brasil, em particular de sua seção local, a “Democracia Socialista” (DS). Nessa época, o Brasil representou, para Bensaïd (e, igualmente, para Löwy), uma passageira contra-tendência ao declínio da esquerda política e intelectual europeia e à ascensão do turbilhão neoliberal. A formação do PT, em fevereiro de 1980, contrastava, à época, com a paisagem da esquerda mundial. “Não somente ela era contemporânea da contra-ofensiva liberal na Europa e na América do Norte, mas também precedia por pouco os primeiros sinais da desindustrialização em certos países latino- americanos”.

Por isso, ela gerou grandes expectativas na esquerda mundial, e no Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional em particular: a DS – que se tornaria a seção brasileira da IV Internacional em 1985 – engajou-se ativamente no processo de formação do partido. Ernest Mandel, por exemplo, enxergava o Brasil, naquela época, “como a terra de todos os renascimentos e de todas as esperanças”. Munido de um “racionalismo sociológico inabalável”, recorda Bensaïd, “Ernest [Mandel] visualizava no Brasil uma espécie de equivalente tropical da Alemanha bismarckiana, berço do movimento operário moderno”, dado o proletariado massivo e concentrado engendrado pelo “milagre econômico” da década de 1970. Mandel “estava convencido que nós (a IV Internacional) poderíamos desenvolver no país, rapidamente, uma organização revolucionária de vários milhares de militantes”356.

Trabalhando no Comitê Executivo Internacional (1981-1986) do SU, cuja sede havia retornado a Paris – depois de anos em Bruxelas –, e tendo estabelecido sólidas amizades com os intelectuais brasileiros exilados na França ou na Argentina, além de manejar razoavelmente o “portunhol”, Bensaïd foi o “indicado” para esta “aventura”357. Por esta razão, visitou inúmeras

vezes o país no decorrer da década de 1980 (de duas a três vezes por ano!), a tal ponto que o

353 Daniel Bensaïd, L’anti-Rocard ou les haillons de l’utopie. Paris : La Brèche, 1980, p.42, 43.

354 Cf. aussi, D. Bensaïd & Antoine Artous, « Hégémonie, autogestion et dictature du prolétariat ». In : Critique

communiste, n° 16, juin 1977.

356 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.303.

357 Em um “balanço” posterior, Bensaïd afirma, sobre a experiência no Brasil na década de 1980: “Em relação ao

Brasil se transformou em uma de suas grandes paixões, o que se evidencia no grande número de referências na sua autobiografia – à experiência brasileira ele consagrou um capítulo inteiro do seu livro autobiográfico, intitulado “E agora, Zé?”, sob inspiração do poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade358. Daniel Bensaïd chegou mesmo a participar das massivas assembleias do movimento operário no estádio da Vila Euclides, em São Bernardo, que reuniram mais de 60 mil pessoas. Desde então, Daniel Bensaïd “estabeleceu laços profundos de amizade no Brasil, iniciando-se com júbilo à sua vida cultural, social e política”359. Em 1980, na primeira visita, a DS contava com apenas 60 militantes; no final da década, a corrente contabilizava cerca de mil militantes, e recolhia em torno de 10% dos votos dos delegados nos congressos do partido. Bensaïd participou ativamente desse processo.

Em textos do período, como “Brésil, nouvelles victoires dans la construction du Parti des travailleurs”, de 1982, Bensaïd demonstra um surpreendente conhecimento dos meandros da realidade social e do cenário político brasileiro, assim como das relações de forças internas ao PT (moderação da direção estadual paulista, posição mais à esquerda das seções do Rio Grande do Sul etc.)360. Em meio aos limites do processo de “abertura” democrática, ele saúda

a independência política de classe do PT, que lograra elaborar uma linha autônoma em relação à “oposição burguesa” ao regime (PMDB, ao redor do qual orbitava o PCB), mencionando a este respeito um artigo de Francisco Welfort, então membro da direção nacional do partido, na Folha de São Paulo. À época, Bensaïd parecia alimentar bastante otimismo em relação à evolução do PT, apostando – como o fazia a DS, à diferença de outras correntes trotskistas – na possibilidade do partido se transformar num partido revolucionário de massas. Em uma entrevista realizada em 1982 com o “célebre” líder operário doravante dirigente partidário, Bensaïd se regozija em face da defesa intransigente, por parte de Lula, da necessidade da independência de classe, à luz da qual – evitando tanto o “vanguardismo quanto o eleitoralismo” – se tornaria possível construir uma perspectiva socialista à brasileira, correspondendo “aos interesses do povo brasileiro, às suas necessidades, às suas particularidades”361. Em referência

ao sindicato polonês Solidariedade (liderado por Lech Walesa), que enfrentava a repressão da ditadura burocrática “socialista”, Lula afirma: “Eu acredito que o socialismo é a única solução possível no mundo inteiro”, um socialismo democrático, acrescenta ele, com controle dos

358 Daniel Bensaïd, Une lente impatience, op.cit., p.294-329.

359 João Machado, “Brésil”, in: François Sabado (org.). Daniel Bensaïd, l’intempestif. Paris: La Découverte, 2012,

p.120, 121.

360 Daniel Jebrac (Bensaïd), “Brésil, nouvelles victoires dans la construction du Parti des travailleurs”, in: Inprecor,

n.126, maio de 1982.

trabalhadores sobre a produção; por isso, lamentava que, diante de uma organização autônoma dos trabalhadores, “um regime que se pretende socialista use dos mesmos procedimentos para massacrar os trabalhadores que o regime capitalista”.

Bem diferente era a situação na França, cuja atmosfera cinzenta foi confirmada pelo chamado “tournant do rigor” promovido por François Mitterrand em 1983/4. Ao contrário do que postulara a LCR à época, a nova orientação do governo, explicitamente social-liberal, não provocou as reações esperadas no movimento operário e popular. Como afirma Fanny Gallot, “no início dos anos 1980, a LCR parece desorientada pelo pouco de reação que provoca na sociedade a política de austeridade levada a cabo pela esquerda do governo reunida em torno de François Mitterrand”362. Através de um governo “socialista”, os ventos neoliberais

chegavam aos poucos na França, abrindo um novo ciclo político que não seria parcialmente contestado senão em novembro de 1995, com o grande movimento social contra as reformas do governo de Alain Juppé.

Além das viagens constantes, e do trabalho na direção da Internacional (no CEI), Daniel Bensaïd dedicava-se nos anos 1980 à edição mensal da revista do SU, Inprecor, à codireção (1984-1990), ao lado de Pierre Rousset, do “Institut International de Recherche et de Formation”, sediado em Amsterdam, e, a partir de 1984, às aulas na Universidade Paris VIII (Saint-Denis) como professor assistente. Em 1983, Bensaïd obteve seu título de doutorado em ciência política, na Universidade de Montpellier, sob a orientação de Michel Miaille, tendo como avaliador (“rapporteur”) Paul Alliès, então militante da LCR. Com o título “Pouvoir politique et construction du socialisme”, tratava-se de um doctorat sur travail, em que o pretendente apresenta e recompila sua obra já produzida, avaliando-se então a pertinência (ou não) da outorga do título. Embora o texto de sustentação tenha “desaparecido”, é possível conjecturar, pelo título e pela época, que a explanação tenha se baseado largamente nos argumentos expostos no livro A Revolução e o Poder (1976), bem como em outros textos menores da época363.

Nesse período, embalado pelo otimismo com a situação brasileira, bem como com os possíveis desdobramentos da crise nos países do leste europeu, Bensaïd parece hesitar em

362 Fanny Gallot. « Le ‘travail ouvrier’ de la LCR et de LO : le cas de Renault Cléon ». Trotskismes en France.

Dissidences, vol.6, 2009, p.153. Em várias das entrevistas realizadas, os interlocutores (Alain Krivine, Lucien

Sanchez e Antoine Artous) confirmaram que o momento posterior ao “tournant do rigor” foi bastante difícil para a organização, dando o sinal de que, talvez, um ciclo estava se fechando.

363 Nem Sophie Bensaïd, nem Paul Alliès, nem Michel Miaille, e tampouco a biblioteca da Universidade de

Montpellier possuem um exemplar do texto. No site da biblioteca aparece a inscrição: “Thèse introuvable à Montpellier”. O próprio Daniel Bensaïd tampouco menciona a realização desse doutorado, nem na sua “autobiografia” (2004) nem no seu relatório para a obtenção da habilitação para orientar teses (2001), este último igualmente destinado à apresentação da sua obra produzida até então.

perceber a dimensão da mudança histórica que estava em curso, malgrado os indícios internos e externos à LCR – que passava por uma verdadeira hemorragia militante – de que os ventos haviam tomado outro rumo. Seria apenas em meados da década de 1980 que Daniel Bensaïd começaria a perceber a dimensão da virada histórica que estava se iniciando. Em um texto intitulado “Contribution à un débat nécessaire sur la situation politique et notre projet de construction du parti”, publicada na revista Critique Communiste em janeiro de 1986, pode-se observar interrogações sobre a necessidade de um questionamento da estratégia da LCR, tendo em conta a virada histórica que havia começado na Europa em meados da década de 1970364. Se, em uma entrevista de 1978, Bensaïd já reconhecia a emergência de uma “nova situação política” em relação àquela do pós-maio, mas não uma “mudança de período” – estaríamos ainda segundo ele na época da “atualidade da revolução” –, no texto de 1986 ele menciona diretamente o “colapso de um projeto não substituído”, aquele baseado na esperança de um transbordamento dos partidos reformistas tradicionais – desmascarados pelo exercício do poder –, tendo como resultado o avanço organizacional para além da vitória eleitoral da esquerda365.

O fim do jornal Rouge quotidien, dois anos após seu lançamento, em janeiro de 1979, constituía uma expressão do fracasso dessa perspectiva otimista.

É nesse contexto de transição, de mudança de época, entre 1985/6, que Daniel Bensaïd “descobre” a importância da obra de um pensador até então pouco explorado pela esquerda radical, mas cuja reflexão o ajudaria a confrontar os novos desafios de uma nova época, sob o signo da crise (do socialismo burocrático, do marxismo e da própria esquerda): trata-se de Walter Benjamin (1982-1940), filósofo alemão, marxista heterodoxo, cuja principal contribuição à cultura política da esquerda foi sua tentativa de elaborar uma concepção da história em ruptura com as ideologias do progresso. O primeiro texto no qual Bensaïd menciona explicitamente Benjamin é Estratégia e Partido, livro composto a partir de cursos que ele ministrou em uma escola de formação da LCR em 1986367. Trata-se apenas de uma nota de rodapé, mas cuja perspectiva revelava a démarche benjaminiana de Bensaïd: ele cita as teses de Benjamin a fim de criticar as concepções evolucionistas, lineares, do progresso histórico, seja em sua versão reformista, gradualista, enfim, socialdemocrata, seja na sua variante stalinista. “Na sua teoria e mais ainda na sua prática, a socialdemocracia se orientou por uma concepção do progresso que emitia uma pretensão dogmática”, escreve Benjamin na tese XIII. A este

364 Daniel Bensaïd, “Contribution à un débat nécessaire sur la situation politique et notre projet de construction du

parti”, in: Critique Communiste, n.48, 1986. Disponível em: http://danielbensaid.org/Contribution-a-un-debat- necessaire?lang=fr.

365 Cf. Daniel Bensaïd, “France - Actualité de la révolution. Entretien”, in: Inprecor, n. 29, maio de 1978. 367 Daniel Bensaïd, Stratégie et Parti. Paris: Éditions La Brèche, 1987.

conformismo do progresso, pleno de confiança no desenrolar do “tempo vazio e homogêneo”, Benjamin opõe uma concepção do tempo ancorada no presente, compreendido como tempo por excelência da política. O socialismo, portanto, não seria a última estação de uma evolução histórica inelutável, mas antes o resultado de uma interrupção, de uma atualização que é também uma bifurcação, o instante da decisão, enfim, da estratégia. É por isso que, para Benjamin, muito além do progresso, é a atualização a categoria principal de uma concepção revolucionária da temporalidade histórica.

Em Benjamin, Bensaïd encontrou uma espécie de “bússola” a fim de compreender uma época histórica que se abria, para a esquerda política e intelectual, sob o signo da crise e da derrota. É exatamente essa capacidade benjaminiana de pensar “a contratempo” que, aos olhos de Bensaïd, carrega uma atualidade incontestável e intempestiva. Nas suas palavras: “a vida de Benjamin não cessou de bater a contratempo. Em plena revolução alemã, quando se define o destino da batalha, da qual Hitler será apenas o epílogo, ele está longe. Quando ele se volta para o bolchevismo, é para encarar com vigor o Termidor stalinista e a burocracia arrogante. Quando ele atravessa os Pirineus, a rota para a América já está fechada. Não se passa mais. Esse deslocamento, essa marginalidade aguçam a percepção da história que se faz”368.

Em 1989, com o início da derrocada do “socialismo real”, a débâcle se completa. Ainda mais porque também no Brasil e na América Latina 1989 marcou um tournant regressivo, materializado nas derrotas eleitorais dos sandinistas na Nicarágua e de Lula e do PT no Brasil. Conjuntamente, esses acontecimentos contribuíram para consolidar a mudança histórica em curso, deixando a totalidade da esquerda em uma situação mais do que difícil. Como se não bastasse, no plano pessoal, a descoberta de que era portador de grave doença (HIV), em 1990, impôs-lhe algumas transformações bruscas na organização de sua vida cotidiana, o que acabou por reforçar o sentimento de que uma nova época estava emergindo. Afastado da militância cotidiana e das funções de dirigente político – muito embora sempre tenha continuado militante e representando um papel fundamental nos debates no interior da LCR, até a sua autodissolução em 2009, no momento da formação do Novo Partido Anticapitalista (NPA) –, Daniel Bensaïd dá início a um novo período de seu percurso político e intelectual, caracterizado por uma produção teórica infatigável (mais de 25 livros em 20 anos), tornando-se um dos mais importantes intelectuais da esquerda anticapitalista francesa e europeia, para além das fileiras da LCR.

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